segunda-feira, 29 de novembro de 2010

A palavra

A palavra é a minha ferramenta. Assim como pode ser minha libertação, transforma-se, em questão de segundo, em prisão. Depende de mim, depende de minhas emoções encontrar a palavra certa para descrever os sentimentos. Encontrar as vogais, juntá-las às consoantes, formar frases, diálogos... descobrir no hiato a união da emoção no verbo presente.

Penso; às vezes, não sei se existo. Mas aí engulo o ar, e vejo que respiro. Faço parte do Planeta Terra. Doce consolo...

Viver não é fácil. Às vezes me calo, outras vezes preciso de todos, me exponho... me faço presente nas vidas. Dói me expor, dilacera me fazer presente, às vezes.

Guardar o sentimento é mais fácil, mas a emoção acumulada se transforma em bomba que explode no peito depois de um tempo. Aí é emoção por toda parte, indo para o céu azul como confete em carnaval. Pedacinhos coloridos, ora rosa, ora verde, preto, cinza, vermelho... desmistificando a existência. A vida real, não a imaginária.

Me encontro na palavra, às vezes me perco... mas aí engulo o ar, e vejo que respiro. Que ainda vivo. A esperança pode ainda brotar no coração.

A força da palavra é que me move. Às vezes ela pesa, outras vezes é tão leve como uma bruma que o vento leva. Levanto, sigo em frente carregando-a, ora nas costas, ora no peito, no coração. Ela, a palavra, se move em minh’alma. Passeia por meu corpo, massageia meu espírito, conhece a geografia das minhas emoções. Conectada me insere, me liga à realidade e à fantasia. Dois mundos reais no meu ser.

Penso, acho que existo. Aí engulo o ar, e respiro a palavra.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Cadeira-de-papai - Série Eu me lembro muito bem...

Eu me lembro muito bem da cadeira-de-papai do meu pai. Era confortável, larga, braços macios e ligeiramente inclinada. Acompanhando, tinha uma banqueta que também era macia, própria para colocar os pés.

Meu pai sempre sentava na poltrona de papai. Era a primeira coisa que fazia ao chegar da rua, carregando o cansaço da vida. Meu pai não era um homem de muitas palavras. Olhar atento, observava o mundo por cima dos óculos de grau.

Depois do jantar, sentava-se na poltrona para ver os folhetins televisivos. Um noveleiro de mão cheia, um fã incondicional de Balzac e Cia.

Eu me lembro muito bem que mal terminava o capítulo do dia, meu pai já cochilava na poltrona, vencido.

Era neste momento que eu me aproveitava do meu gigante e o transformava num boneco particular, penteando seu cabelo de tudo que era jeito. Meu pai nunca acordou com as estrepolias que eu fazia enquanto ele dormia.

Houve apenas uma vez em que cortei minhas fitas em pequenas tirinhas coloridas e fiz diminutos laços no seu cabelo baixo. Aí ele acordou, e não deu tempo de desfazer o penteado.

Meu pai não percebeu nada até ir ao banheiro e passar em frente ao espelho. Da sala só ouvi quando ele exclamou lá de dentro, espantado:

- Mas, filhinha!!!

Não havia raiva em sua voz, talvez apenas certo lamento e conformação, mas não fui reprimida e continuei fazendo dele meu boneco predileto na infância.

Eu me lembro muito bem de sua figura amorosamente seca, mas que muito me ensinou.

O tempo passou.
O mato cresceu.
A cadeira não existe mais.
Papai já não está por perto.
A vida é assim.

Crescer é aprender a lidar com as lembranças, frustrações e saudades.

O poeta já disse: “Mas como dói”.
É verdade.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Gargalhada - Série Eu me lembro muito bem ...

Eu me lembro muito bem de uma gargalhada. Minha tia Santinha gargalhava como se o pecado não existisse, como se o inferno não fossem os outros, como se a vida não tivesse um fim.

Tia Santinha era assim: feliz sem ter uma explicação plausível. Era simplesmente feliz, e ponto.
Tia Santinha era feliz num dia de sol; era feliz num dia nublosamente cinza; era feliz também nos dias chuvosos. Não eram poucos os que invejavam sua gargalhada, sua alegria, sua maneira de ser, o que ela era.

Eu me lembro muito bem de como era bom ficar com tia Santinha quando os dias estavam nebulosos ou chovia. Com qualquer outra pessoa eu não gostava de ficar nesses momentos, mas com minha tia passava a ser um dia santo. Era um dia de descobertas. Muitas descobertas. Muitas.

Tia Santinha era assim, transformadora. Arrebatadora. Era capaz de me fazer olhar de forma nova para um mesmo objeto, para uma mesma flor, para uma mesma folha de papel, desbravando um novo mundo, um novo olhar do meu olhar.

Tia Santinha era tecida de poesia. Não essa encontrada nos livros feitos por poetas. Tia Santinha era tecida pela poesia da vida. Essa poesia, imensurável, não dá para ver, não dá para falar, muito menos cheirar. É uma poesia que se sente, cujo aroma nos envolve sem sequer nos darmos conta de que estamos sentindo e sendo envolvidos.

Tia Santinha era assim e sua gargalhada permanece em mim com um frescor irreprimível.

sábado, 18 de setembro de 2010

Inveja

Ele estava deitado, apreciando o céu azul. Um papelão grosso era a cama, e o homem sujo, com barba quase chegando ao peito, desfrutava do sol de abril como se estivesse nas areias de Ipanema. O mendigo, de olhar perdido e pose de imperador intelectual, mirava fixamente a única nuvem que singrava a abóboda celeste, sem se dar conta de que estava no centro nervoso da cidade.

Pessoas passavam, algumas olhavam, outras – a maioria – já acostumadas com a miséria humana, sequer davam conta de sua figura ímpar, parecendo um profeta distraído na calçada, esperando a hora do juízo final.

Quem seria ele? Por que olhava com tanta atenção aquela nuvem que se instalara sobre o Largo da Carioca? O que ele via que os outros não viam? Por que os loucos e as crianças são sempre protegidos por Deus? Que Deus é esse que precisa protegê-los?

– ...Mas aí eu disse pra ele que não aguentava mais aquela situação e que era pra ele escolher entre eu e .... – falava uma morena baixinha para a colega alta.

– ... Eu já chegando. Não, pertinho, aqui no Largo da Carioca, me espera porque preciso .... – dizia ao celular um homem de terno.

– ... Mas, manhê, o meu pai disse que eu podia. A Sofia vai e... – reclamava a adolescente, arrastada pela mulher obesa.

Ele nada escutava. A nuvem no céu parecia ter-lhe mais importância do que todos aqueles dramas que passavam ao largo. Cada um carrega sua própria dor.

Quais eram as dores daquele homem invisível aos olhos dos outros? Será que tinha família, o que ele foi antes de ser mendigo? Um industrial que perdeu tudo? Um professor de filosofia que conjecturava a insuportável leveza do ser? Um funcionário público aposentado que fora vítima de todos os planos econômicos imputados à população? Será que ele tem o dom de falar com as nuvens? Será que elas respondem? Será? Tantos serás....

E o profeta mendigo continuava olhando aquela única nuvem, como se encontrasse ali todas as respostas que a humanidade sempre se fez e que sempre continuará se fazendo, pelo andar da carruagem.

Queria ser uma nuvem. Passear pelo céu sem a preocupação de ser mais nada. Apenas uma nuvem, semelhante a um algodão a singrar por ai. Ou, talvez (quem sabe?), o mendigo. Traçar um longo diálogo com o céu imperiosamente azul e desfrutar da vida assim, sem as amarras, sem ter que escolher entre uma coisa ou outra, desligado de qualquer compromisso a não ser aquele que traçasse comigo mesmo.

Invejo aquele mendigo.
Invejo aquela nuvem que corre o espaço ilimitado e indefinido onde se movem os astros.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Osvardo

Tem gente que pode inté duvidá, mas eu juro que é verdade. Qué dizê, foi meu avô quem contô pra mim quando era menino, e como ele não mentia, tenho cirteza que o causo é real. Ocê pode nem acreditá, mas...

Então vamu lá.

Este é um causo de um burrico. Um jumento muito especial. Especial porque ele nasceu com um chifre um pôco acima da junção dos oio. Um dedinho acima da sombrancelha, se é que burro tem sombrancelha.

Pois é. Sabe-se lá Deus o porquê da aberração, mas o jumentico tinha um chifre ali. Bem ali, veja ocê!

Não dizem nas Zuropas que lá tem cavalo com chifre que dão o nome inté de... como é mesmo, hem?!... Ah, lembrei: unicorno?!

Não... não... qué dizê... unicorne?

Pois é. Se lá tem, por que no sertão do Nordeste num pode tê tumbei? O Deus que fez o chifre no cavalo pode, muito bem, fazê um burrico tumbei com chifre. Não é, não? Pois é. É como eu digo.
Mas voltando pro causo.

O burrico nasceu no interiorzão da Paraíba, lá no cafundó onde Judas perdeu as meias, porque as botas ele já tinha perdido dez léguas antes.

Ele nasceu num pequeno sítio onde moravam o cumpadi Zezé e cumadi Madalena, que tinham um bando de menino. Tudo escadinha, seguidinho, um trás du zôtro. Zezé era cabra macho, sim, sinhô, e cumadi Madalena era uma boa parideira. Resultado: um bando de menino correndo pelo quintal, tudo barrigudinho de lumbriga.

Foi ali que nasceu o jumentinho, numa mistura de uma égua veia e cansada do esforço da lida com sabe lá Deus com quem. Mãe é só uma, mas pai pode sê quarqué um, num é não? É o que meu pai dizia.

O cumpadi acreditava que a égua ficô prenha de algum burrico que surgiu naquelas redondezas, sorto no mundo, já que ele não tinha nenhum ôtro animal macho em casa pra fazê o cruzamento.
O jumentico nasceu de repente. Num dia o cumpadi Zezé deu de cumê num final de tarde pra Formosa, e no dia seguinte quando foi levá a água logo cedinho encontrô a mãe lambendo a cria. O jumentinho tinha nascido.

Num primeiro olhá, cumpadi não notô nada de errado com o filhote. O burrico, na primeira oiada, era apenas mais um jumentinho mestiço como quarqué ôtro de sua laia. Foi seu filho do meio, Desmivaldo, que notô o apetrecho no meio da testa do animal.

De início, o cumpadi não deu muita trela pro menino, que chegô com a notícia do chifre, mas depois foi lá se era realmente verdade a aberração. Num é que era mesmo?! Foi um grande alvoroço no sítio quando ficô provada a verdade da notícia que Desmivaldo trouxe pro pai.

A sogra do cumpadi, dona Hermevilda, bem que tentô colocá medo na famia, dizendo que era coisa do diabo o animal nascido daquele jeito. Cumpadi, que nunca deu trela para a cascavel domesticada, nem deu a atenção. Foi logo tratando de batizá o bicho. Se fosse realmente coisa do demo, não iria aceitá a bênção da água benta.

Toda quaresma e festa de São João, cumadi tratava meio de ir pra igreja e lá pegava um pôco de água benta, levando pro sítio duas garrafinhas pequenas. Foi com o restinho desta água benzida que cumpadi batizô o bicho com o nome de Osvardo. A escolha caiu em cima de um desafeto. Um vizinho que vorta e meia entrava em rixa com ele.

Tudo começô pro causa de um galo de briga, e o mal-entendido se perdurô durante todos aqueles anos. Por isso, quando foi escoiê o nome do burro, a figura do desafeiçoado logo surgiu na sua cabeça, e o burrico foi batizado de Osvardo.

A primeira vez que cumpadi levô seu burrico pra cidade, foi um alvoroço só. Todo mundo queria o chifrudo do Osvardo. É claro que o nome caiu na boca do povo porque é sempre assim. Quanto mais implicante que é um apelido, mais ele pega.

Quando Osvardo ficô sabendo que tinha um burrico seu xará e que esse tinha ainda por cima um chifre no meio dos oio, a raiva logo subiu fervendo as ideia. Tratô de pegá uma peixeira e ir tomá satisfação com o cumpadi Zezé. Mas como sempre tem a turma do deixa-disso, Osvardo tratô de guardá a peixeira, recolhendo a ira, mas não esquecendo. Ficô ali, rumiando a raiva, igual a um boi veio e cheio de baba.

Quando mais ressentimento o chifrudo sentia, mais caía no gosto o nome do burrico. Toda vez que cumpadi ia pra cidade, e agora ele tratô meio de sempre motivo pra ir pra cidade, era maior a algazarra. Cada dia o jumentinho do Osvardo se tornava mais e mais popular, coisa que o Osvardo-gente não conseguia.

Meu vô falou que Osvardo não era desafeto apenas do cumpadi Zezé, não. Metido a machão, daquele tipo que mastiga abelha e joga fora o mel, não havia na cidade quem não tivesse uma reclamação do valentão. Então quando o cumpadi resolveu batizá o burrico chifrudo com o nome de Osvardo, todos bateram palmas, entrando na brincadeira e se sentindo vingado de alguma forma.

Osvardo-gente já não podia corrê a cidade: em quarqué buteco que entrava sempre tinha um fio di Deus que tratava modi de fazê alguma alusão ao burrico chifrudo do cumpadi Zezé.

Aquilo foi crescendo cada dia mais. Mas justiça seja feita, chifrudo, chifrudo, o valentão do Osvardo nunca tinha sofrido de tal mar. Sua muié, sinhá Clotilde, sempre se portô de maneira santa. Era uma daquelas carolas que se enfiava na igreja di manhazinha e só saía na última missa. Diziam que era seca por dentro, por isso não tinha dado nenhum filho pro Osvardo.

E era nisso que o valentão se firmava. O cumpadi podia inté tê troçado com o nome dele, mas chifrudo ali na raça nunca foi não sinhô.

Mas é como meu vô dizia: um dia da calça e ôtro dia do calçador.

Num é que um dia a cidade amanheceu em polvorosa justamente porque sinhá Clotilde tratô meio de juntá as trouxas com um caixeiro viajante que vortimeia passava por ali? Pois é, é como digo pro sinhô. No final das contas, o Osvardo-valentão se tornô mermo um Osvardo-chifrudo, conforme previu o cumpadi Zezé.

Quando a notícia correu a cidade inteira, vexado, o Osvardo-gente não aguentô o ocorrido e tratô tumbei de fazê sua trouxa. Nunca mais ninguém viu seu rastro por muitas e muitas léguas.
Cumpadi Zezé, nem preciso dizê, ficô rindo de canjica a canjica. Uma alegria só. O burrico Osvardo virô o xodó da cidade e viveu por muitos e muitos anos. Tinha gente inté da capital que vinha o seu formoso chifre.

E todos assim viveram felizes pra sempre lá no cafundó da Paraíba. Anos depois eles ficaram sabendo que ... bem, isso é ôtro causo, né?

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Carnegão

Carnegão não nasceu Carnegão. Tinha um nome digno de cantor romântico de rádio: Marcos Antonio de Oliveira Sá.

Bonito, não? Mas aí a vida fez com que se tornasse um Carnegão. Desde pequeno, feio, mirrado, canela fina e com tendência constante a pequenos tumores na pele amarelada, logo que foi visto pelo avô – que vivia encostado nas paredes de tanto beber – foi batizado com o infeliz apelido. Pegou na hora, e o rebento teve que levar a alcunha pelo resto dos seus dias.

Não importava o lugar: na vila, no colégio, no trabalho e mesmo entre a família, quem buscasse por Marco Antonio de Oliveira Sá não encontraria; mas, se falasse em Carnegão, todos logo sabiam de quem se tratava.

Carnegão era um rapaz esforçado, de pouco estudo, é bem verdade, mas com boa vontade para o trabalho. Mesmo franzino, não recusava serviço, fosse leve ou pesado. Era um bom rapaz.

Um dia conheceu Maria Rita e se entusiasmou com a moça. Não que Ritinha fosse uma belezura. Não era feia, é preciso que se diga, mas também estaria mentindo se dissesse que ela poderia concorrer a uma vaga em qualquer concurso de Miss, ainda que fosse dessas competições de clube de interior. Mas, comparada a ele, era um pitéu de formosura.

Carnegão ficou entusiasmado quando notou que Ritinha retribuía o seu olhar numa festa de Santo Antonio. Mas cadê coragem para chegar perto e se apresentar à donzela de fita rosa nos cabelos? Vixe! Só mesmo com a ajuda de outro santo, Santo Expedito, o das causas impossíveis, ele poderia se aproximar e dizer:

- Olá, sou Carnegão.

Era um nome muito feio para apresentar a uma lindeza daquelas. O apelido estava tão entranhado nele, que Carnegão esquecia que na verdade seu nome era Marco Antonio. Quando se lembrou disso, a festa já estava no final, e Ritinha tinha ido embora fazia tempo.

- Mas também, mesmo que me apresentasse como Marcos Antonio, ela logo saberia que eu me chamo Carnegão. Alguém com certeza iria contar para ela o meu apelido infame – pensava com seus botões o apaixonado.

Carnegão decidiu tomar coragem e se aproximar da garota, mesmo assim. Ritinha era a única filha de uma família de nove irmãos. A caçula era o xodó do pai, que trabalhava na estação de trem. Alguns irmãos tinham se mudado para a capital, mas ainda sobrava um grupo grande de machos protegendo a donzela da família.

A mãe de Ritinha era dona Milu, uma rezadeira dessas que só se encontram no interior, capaz de sarar qualquer tipo de doença com sua reza forte. Uma carola que vivia na igreja e se dizia Filha de Maria, apesar de o padre Euséquio não olhar com bons olhos suas rezas avulsas para a população.

Carnegão tentava se aproximar da garota, mas sempre acontecia alguma coisa que o impedia de ter a primeira prosa com a amada. As roupas humildes também não ajudavam muito, mas o enamorado nunca foi de fugir de uma labuta.

Por isso, começou a frequentar com mais constância as missas de padre Euséquio. Ritinha vivia grudada na mãe quando ela ia à igreja. A donzela não mostrava tanta intimidade com os sacramentos como sua genitora, mas era uma maneira de sair de casa e da vigília constante do pai e dos irmãos.

Foi nessas visitas à Casa de Deus que Carnegão, com a ajuda de um moleque, começou a trocar bilhetinhos com Ritinha. Mesmo com a letra feia e mal ajambrada, ele escrevia horríveis versos de amor que encantavam a garota.

O avô de Carnegão tinha sido caminhoneiro nos seus bons tempos e sabia de cor e salteado todos tipos de frases que enfeitam as placas das traseiras dos caminhões. Com esse repertório, Carnegão foi conquistando pouco a pouco a afeição de Ritinha. Detalhe: ele nunca assinava, mas ela sabia quem era o seu trovador predileto, apesar dela não ter nenhum outro.

Depois de quase dois meses nessa lenga-lenga de bilhetinhos para cá, bilhetinhos para lá, Ritinha e Carnegão se encontraram atrás da igreja, num sábado em que se realizava o casamento da filha do coronel Soares.

A cidade inteira estava presente, e Carnegão se esforçou, é preciso ressaltar, para causar uma boa impressão. Mas, coitado!, o paletó xadrez, puído na gola e no punho direito, não ajudava muito. O pior era a água de colônia, comprada de um mascate: custou-lhe os olhos da cara, mas o mau cheiro rescendia a léguas e léguas. O cabelo parecia que a vaca tinha lambido; o mesmo mascate lhe vendera uma pomada capilar para tentar amansar os fios rebeldes, porém, em vez de melhorar a aparência, piorou.

Mas como o amor é cego, Ritinha não notou nada disso. Excitada pelo primeiro encontro formal com o trovador amado, se descuidou e o pai percebeu quando ela saiu sorrateiramente da igreja. Seu Rutinho Condutor, como era chamado o pai da donzela, logo que viu o casal já foi levantando a voz e tomando satisfação.

Nem bem Carnegão tinha dado boa noite à amada, o pai apareceu com seu olhar de quem estava prestes a capar um porco. O rapaz, de uma palidez amarelada, ainda tentou articular algumas palavras, mas seu Rutinho não lhe deu a menor atenção.

- Ca... ca... calma seu Ru-ru-Rutinho, eu... euu... eu... te-te-tenho bo-bo-bo-boas in-in-in-ten-ten-intenções com a Ri-ri-ri-Ritinha, eu ju-ju-ju-juro!

- Quem você pensa que é para se aproximar assim de minha filha?! Ritinha é uma garota de família, tá entendendo?! – gritava, indignado, levando a filha pelo braço.

- É... é... é claro que Ri-ri-Ritinha é de fa-fa-fa-família, é por isso que te-te-te-tenho in-in-in-ten-ten... intenção se-se-se-séria com ela, quero ca-ca-ca-casar de pa-pa-pa-papel pa-pa-pa-passado – argumentava o jovem, que se tornara gago de repente.

Seu Rutinho parou, olhou para trás com olhar de desprezo e perguntou:

- Você?! Quem você pensa que é?! Qual é o seu nome?!

- Me... me... me... chamo... Car... car... car... Carnegão – disse humilde o Romeu apaixonado.

O olhar de desprezo cresceu, e Ritinha em prantos viu quando o pai disse:

- Carnegão?! Francamente! Vê se vou dar minha única filha para um infeliz que ainda por cima se chama Carnegão! Vá procurar alguém de sua laia e deixe minha filha em paz! – disse, arrastando a Julieta caipira, que tentava resistir à braveza do pai, sem sucesso.

Carnegão ficou ali parado, olhando seu amor ir embora pelas mãos do crápula do pai. A dor que sentiu pela separação poderia facilmente constar em qualquer peça de Shakespeare, mas, com um nome como o dele, dificilmente seria personagem do bardo inglês.

Desesperado, tropeçando na própria desgraça, seguiu para casa, até que no meio do caminho encontrou o avô, que lhe tinha dado o maldito apelido. Ele estava na birosca do seu Capão e, pela primeira vez na vida, o neto lhe fez companhia na bebedeira. Tomou de tudo, vinho, cerveja, pinga, conhaque e por pouco não pediu álcool puro para servir com a caipirinha.

O que Carnegão queria realmente era afogar a mágoa, o ressentimento, a vergonha de ser o que era, alguém indigno do amor de Ritinha. O que ele falou na birosca, o jovem nunca lembrou. O que comprou também não era capaz de relembrar, mas, ao acordar no dia seguinte, com uma enorme ressaca, tudo estava diferente.

Despertou com a porta esmurrada pelo avô e seu Zequinha. Mal a abriu e foi abraçado e chocalhado para tudo que era lado. O que eles diziam Carnegão não atinava, não fazia sentido. A cabeça doía mais do que tudo, e parecia que o coração tinha tomado o lugar do fígado, de tanto que este palpitava. A boca, ah a boca, meu Deus, que gosto horrível! Por isso os gritos entusiasmados de seu vô, que pela primeira vez na vida não estava bêbado, não faziam sentido, nenhum sentido.

Vendo que o neto não conseguia entender o que dizia, o vô de Carnegão decidiu preparar uma receita de levanta defunto. Como bebedor-mor da cidade, ele, mais do que ninguém, sabia como curar uma ressaca rapidinho, rapidinho.

Carnegão, depois de beber a gororoba, vomitar até acabar com toda bílis do organismo, sentou-se à mesa, então o avô e seu Zequinha lhe deram a notícia que mudou sua vida completamente.

O jovem não se lembrava de nada, isso o preparado do avô não foi capaz de restaurar, mas lhe disseram que ele tinha ganhado uma bolada na loteria federal, sozinho.

- Mas como? – perguntou Carnegão, admirado.

- Ontem, na birosca do Capão, o Zequinha aqui apareceu com o último bilhete da loteria federal, e lá naquela arruaça toda você, dizendo que desgraça pouca era bobagem, comprou com seus últimos tostões o bilhete. Hoje, o Zequinha viu que o número sorteado era o mesmo que ele tinha vendido a você, meu neto. Tu ‘tá rico! – anunciou o avô, rindo e batendo no ombro de Carnegão.

- Isso mesmo, Carnegão! Você agora é um homem rico, muito rico! – festejava o vendedor do bilhete.

- Vá lá buscar o bilhete, vá, Carnegão. Busca lá, pra gente conferir – mandou o avô.

Carnegão, ainda não acreditando na boa sorte, foi buscar o paletó puído e no bolso interno descobriu realmente um bilhete da loteria federal. Ao olhar aquele mísero papel em suas mãos, não acreditou.

- Uma nova vida! Não serei mais um simples Carnegão – murmurava baixinho consigo mesmo. Caminhou até a cozinha, e o avô e seu Zequinha viram o bendito papel.

Todos se abraçaram, festejaram e gritaram felizes.

Na mesma hora, Carnegão foi para a praça, tomou o táxi do seu Jonas, o único veículo da cidade, e foi junto o avô para a capital, em busca do dinheiro.

Enquanto isso, Ritinha, em sua casa, não tinha dormido a noite inteira, chorando, desgostosa do amor perdido. Não queria saber de comer, nem de beber. Uma tristeza de dar dó.

Quando a cidade amanheceu e a notícia se espalhou, seu Rutinho não acreditou na própria sorte, ou melhor, no próprio azar. Ele, que poucas horas antes, tinha escorraçado o infeliz, agora não só amargurava tristeza da filha, como também a perda de um genro milionário. Ritinha ficou de mal com o pai e, quando soube do ocorrido, aí e que não quis mesmo falar com seu Rutinho.

A cada dia que passava, chegavam notícias do milionário caipira. Seu Jonas ligava todos os dias para a família e contava da vida de Carnegão, das roupas novas, dos perfumes caros, do hotel de seis estrelas em que estavam hospedados. Seu Jonas foi contratado como chofer particular de Carnegão, ou melhor, Doutor Carnegão, como agora era chamado por todos.

A cada notícia, Ritinha ficava mais triste. O amor dela era verdadeiro, tanto que ela se interessou mesmo antes de ele ter ganhado toda aquela dinheirama. A pobre donzela chorava sem parar.

- Agora, na capital, Carnegão nem se lembrará de mim. Perdi meu trovador milionário – dizia, chorando para dona Milu, numa tristeza só.

Dois meses depois, Carnegão voltou à sua terra. Quando a mulher do seu Jonas contou que o novo milionário chegaria no dia seguinte, a cidade inteira se preparou para recepcioná-lo. O prefeito mandou chamar a banda municipal, as crianças do grupo escolar prepararam versinhos para recitar, o coral das Filhas de Maria cantou louvores e não havia um só estabelecimento comercial que não ostentasse em sua porta uma faixa de boas-vindas.

Carnegão, quando viu a festa em sua homenagem, não soube num primeiro momento como se comportar, mas ele já tinha aprendido o poder que o dinheiro tem e, estufando o peito, no seu melhor terno de giz riscado, sapato italiano e gel importado nos cabelos, abriu um sorriso de superioridade e desceu do luxuoso carro.

Para encurtar essa conversa, vamos aos finalmentes. Na festança, seu Rutinho, pelo intermédio do padre Euséquio, puxou uma prosa com Carnegão, ao pé do ouvido. Pediu desculpas. Alegou que perdeu a cabeça quando viu um desconhecido conversando com a filha querida, pediu desculpas outra vez, disse que, depois, com a cabeça fria, ficou sabendo que Carnegão era um rapaz direito, de família, trabalhador, pediu desculpas novamente, garantiu que a porta de sua casa estava aberta ao amigo, caso quisesse aparecer para comer uma broa com café que Ritinha preparava como ninguém, “muito melhor do que a mãe”, ressaltou o arrependido pai da Julieta caipira.

O Romeu milionário fez cara de tédio, fingindo que pouco escutava, mas o coração caipira ainda batia por sua amada.

No fim das contas, em menos de seis meses, o casal de pombinhos já estava casado, na igreja e no cartório. Festança igual nunca se viu. Nem o casório da filha do coronel Soares foi igual em boniteza. O pai da noiva estava mais feliz do que pinto no lixo. Ai de quem não tecesse elogios superlativos ao genro amado! Logo era escorraçado de seu círculo de amizade.

A vida de Carnegão mudou completamente em menos de três anos. Todos agora o chamavam de Doutor Carnegão. Tornou-se empresário de sucesso, candidatou-se para deputado federal e saiu vencedor. É feliz no casamento com Ritinha. O avô mora com o casal, e a harmonia impera no lar. Há poucos dias nasceu seu primeiro filho-homem. O avô quando viu o rebento, logo tratou de batizá-lo:

- É Carnegão Júnior!

sábado, 28 de agosto de 2010

Alameda - Série Eu me lembro muito bem

Eu me lembro muito bem da rua onde minha vó morava. Era um local onde tudo de interessante acontecia. Cada casa era um universo em si. O drama de cada família poderia ser levado facilmente para os palcos.

Eu bem me lembro que havia uma casa rosa, que ficava duas moradias depois da de vovó Naná, onde morava um rapaz tido como maluco. Era o doido da rua. Seu nome era Rubem e, apesar de ter aparência de novo, pele viçosa, transparente, sem ruga, rija; apesar de tudo isso, seus cabelos eram completamente brancos. Tão alvos que mais pareciam ter visto o século passar. Mas não, ele era bem novo, apesar de ter, sim, corpo de homem feito.

Como sei que seu corpo era de homem feito apesar da pouca idade? Porque uma das maluquices de Rubem era andar pelado pela a alameda. Era moreno, alto, esguio, cabeludo, com pelos negros e encaracolados pelo corpo. As mulheres das ruas viviam numa polvorosa.

É preciso esclarecer que fui moleque da geração de 40, início de 50, e um homem andar nu tinha todo um peso que hoje não se vê. Agora as praias vivem lotadas de roupas de banho mínimas.
Rubem pouco se importava com suas vestes de Adão. Quando ele cismava, tirava a roupa onde quer que tivesse, e coitadas das moças casadouras ou solteironas. Era um choque para elas ver aquele garoto nu em pelo a circular pelas calçadas do bairro.

Rubem era um maluco calmo, não agredia ninguém, não respondia, vivia na lua, olhando para o céu procurando não sei o quê. Seu olhar azul rivalizava com a cor celeste. Sempre tive vontade de me aproximar dele, puxar conversa, falar sobre meu jogo de botão e da coleção de bolinhas de gude que tinha, da bicicleta nova que meu vô me deu e que se chamava Ximbica, mas ninguém deixava que me aproximasse. Vó Naná, quando eu passava os finais de semana com ela, sempre vigiava. Ela tinha consciência da minha preferência pelos lunáticos, apesar de eu nunca ter confessado nada.

Rubem poderia até ser maluco, mas seus olhos mostravam uma serenidade que jamais encontrei nos ditos normais. Havia paz, harmonia e calma nas janelas de sua alma, e era isso o que me atraia. Mas minha vó não se descuidava, e por isso nunca fui capaz de travar qualquer tipo de conversa com aquele garoto. Uma pena.

Os normais jamais me fascinaram. Com suas vidas certinhas, com seus gestos controlados, com seus sonhos medíocres, nada disso me atraiu. Mas Rubem, sim. Havia liberdade naquele olhar. Era como se ele tivesse saído do nosso mundo e, ao tocar o Olimpo, tenha se realizado, não mais precisando de nada que o amarrasse a esse planeta, inclusive as roupas.

Num final de semana cheguei à rua de vó Naná e não encontrei Rubem. Perguntei ao meu vô o que tinha acontecido ao jovem, e ele desconversou. Indaguei a minha vó, e ela disse que ele tinha ido viajar. Nunca mais o vi. Sumiu na poeira das estrelas, essa foi a conclusão a que cheguei naquela época. Eles não conseguiram conviver com alguém tão especial.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

A Igreja do Diabo - Série Adaptação

CENA 1 - INT/DIA/SALA DO DIABO
Diabo displicentemente sentado num trono suntuosamente ornamentado. Degusta um cacho de uvas. Ricamente vestido, tem a aparência de um homem bonito. Ao seu lado, sentada no chão, fazendo-lhe massagem no pé, está Bajuladora-mor. Sua aparência é de uma mulher baixa, gordinha, não tão bonita. Usa óculos de gatinho, vermelhos. Diabo dá um suspiro prolongado de tédio. Silêncio. Detalhe de Bajuladora-mor fazendo massagem no pé do Diabo. Outro suspiro de tédio.

BAJULADORA-MOR
(bajulando)
O que está havendo com minha Alteza profana ? Há algo que eu possa fazer?

DIABO
(suspiro de tédio)
A vida é dura. Não tem nada emocionante acontecendo! Nada de novo debaixo do céu azul. (bocejo)


BAJULADORA-MOR
Mas como não, Soberano! Com tanta guerra, tanta epidemia, tanta gente morrendo de fome, tanta violência, sua Malignidade impera no planeta Terra há séculos e séculos! Interruptamente!


DIABO
Ledo engano, Bajuladora-mor! Sou humilhado pela história, isso sim. Tenho um papel avulso, que exerço desde o início dos tempos. Não passo de um coadjuvante, nada mais! (dá um suspiro de desalento, deprimido)

BAJULADORA-MOR
Que isso, Rei das Trevas! Não, não, não! Eu me nego a pensar que uma figura tão poderosa esteja assim, caída. (risadinha) Vamos logo levantar esse moral, onde se viu isso? Vossa Malidicência é e sempre será o todo poderoso, o anjo decaído que impera no mundo. Nunca será um simples coadjuvante. Nunca!

DIABO
(começando a ficar envaidecido)
É verdade que eu já tive bons momentos. É verdade. (diz, alegrando-se) Lembra quando fizemos eclodir a Primeira Guerra Mundial? Ahhh, é a Segunda??! Tantas vidas podadas! Tantas! (rindo) Lembra como instiguei os homens a inventarem as câmaras de gás? Lembra?! Bons tempos! Bons tempos!

BAJULADORA-MOR
Lembro, sim, Maldade Imperial. Vossa Maldade recorda quando demos aos homens aquele veneno, o Agente Laranja, que exterminou tantas crianças e mulheres? Ah, a glória, né, Majestade Infernal? A glória!

DIABO
(com orgulho)
Sim, eu me lembro. (dá um suspiro e cai em desânimo) Mas agora não tem mais graça. A violência e as guerras se tornaram banais. Ninguém liga mais para as máquinas de extermínio. Meia dúzia de gatos pingados gritam, mas a indústria do armamento é mais forte. Muita gente corrupta, ninguém mais se importa, ‘tá tudo banalizado, e eu, cada dia mais , renegado ao segundo plano.

BAJULADORA-MOR
Que é isso, Soberano das Trevas?! Não, não e não. (bate palmas, tentando reanimar o patrão) O que está acontecendo é que Vossa Maldade está entediado, isso sim. En-te-di-a-do! O que precisa é usar sua maléfica mente em prol de uma maldade, que logo, logo estará entusiasmado novamente. Pense, Majestade. Pense! Eu confio que ideias mirabolantes possam sair de sua cabeça imperial. Pense!

DIABO
Hummm… não sei… poderia… não, não, isso já fiz. Hummm… acho que… não, não… isso também já fiz. Matar criancinhas?! Ah, é tão monótono! Falir um banco e deixar milhares na miséria? Isso já fiz também! Ah, Bajuladora-mor, já fiz tudo o que você possa imaginar… tudo… (demonstra ter uma ideia)… quer dizer… sim… é claro!!! Por que não pensei nisso antes??!! (dá uma risada demoníaca)

BAJULADORA-MOR
Diga-me, Rei do Submundo das Trevas! Não me esconda nada, diga!

DIABO
E se eu tivesse uma igreja, hem? Uma igreja (Bajuladora-mor bate palminhas) para combater Aquele lá de cima! (diz apontado para o céu com desprezo)

BAJULADORA-MOR
Mas que ideia maravilhosa, Alteza Real dos Infernos! (bate palmas) Bravo, bravo, bravo!!! (diz, cheia de entusiasmo)

DIABO
(continua a falar sem se importar com as palavras da Bajuladora-mor)
Sim, uma igreja. Um lugar que pudesse combater escritura com escritura. Breviário com breviário. Terei a MINHA MISSA, com vinho e pão à farta. Farei sermão exaltando todos os pecados, terei bulas, novenas e todos os demais aparelhos eclesiásticos. (diz orgulhoso, peito estufado, cabeça erguida, olhar destemido)

BAJULADORA-MOR
Sim, Rei de todas as Majestades dos Martírios! Sim! Sim! (diz batendo palminhas)

DIABO
(caminha pelo ambiente, cheio de pose)
O meu credo será o núcleo de todos os homens. Enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será ÚNICA. Não acharei NENHUM CONCORRENTE, não enfrentarei nenhum Maomé ou Lutero. Há muitos modos de afirmar, mas só um de negar tudo! (diz, cada vez mais soberbo)

BAJULADORA-MOR
Bravo! Já ganhou, já ganhou, já ganhou! Lindo!!!!!

DIABO
Mas antes precisamos falar com o Aquele lá de Cima (diz, apontando para o céu)

BAJULADORA-MOR
Precisa mesmo, sua Alteza Vil?

DIABO
Coisas de praxe… coisas de praxe. Além disso, será um bom momento de eu mostrar o meu poder e desafiá-Lo. Ele e aquele seu Filhinho de meia pataca! (diz com desprezo e inveja) Vamos, é tempo.

CORTA PARA

CENA 2 – INT. DIA/SALA DE DEUS
O ambiente tem uma suave e bela luz. É uma sala grande, mas vazia de objetos e adornos. Deus tem a aparência de um ancião bondoso. Cabelos brancos, barba alva, veste um camisolão marrom, semelhante aos usados pelos Franciscanos. Os pés estão descalços e há a sua volta serafins, crianças, velhos e mulheres. Um grupo de serafins canta uma música suave. Deus e alguns outros anjos caminham, confortando a todos. Deus passa a mão na cabeça das crianças; dá tapinhas nos ombros e se detém para conversar com um homem velho. Todos tentam ajoelhar-se na sua frente, mas Deus não deixa. Entra o Diabo, pisando duro, com uma longa capa, ricamente vestido. É necessário ter um contraste grande entre a roupa de Deus e a do Diabo.

DIABO
(orgulhoso)
Vim comunicar a você algo.

DEUS
(olha para o Diabo e diz, bondosamente)
O que você quer agora?

DIABO
Não venho pelo seu servo Fausto (rindo). Mas venho por todos os Faustos dos séculos e dos séculos.

DEUS
(bondosamente)
Explique-se, meu filho. O que Fausto tem a ver com isso?

DIABO
Lembra-se daquele Fausto que vendeu a própria alma depois de uma barganha comigo? Lembra-se?

DEUS
Sim, lembro, meu filho.

DIABO
Pois agora os Faustos de todos os séculos e séculos virão a mim! Todos. Esses aqui (com desprezo, mostra todos que estão na sala) serão os últimos homens que virão para Sua casa! Não tarda muito, e o céu ficará semelhante a uma casa vazia. Eu garanto! Sabe por que isso acontecerá? Porque o que VOCÊ cobra é muito alto. EU VOU EDIFICAR uma hospedaria barata. Vou FUNDAR UMA IGREJA. Anote bem: já é tempo de obter vitória sobre VOCÊ e esse seu FILHINHO!

DEUS
(calmamente, sem se abalar)
Vieste dizê-la e não legitimá-la, não?

DIABO
Tem razão. Estou cansado de minha desorganização, do meu reinado casual. É tempo de obter a vitória final e completa. Então, vim dizer a você isso, com lealdade, para que não me acuse de dissimulação. Não parece uma boa ideia? (sorri, sarcasticamente)

DEUS
Tsiu… tsiu… tsiu… O que está buscando é apenas aplauso. Tudo vaidade…

DIABO
(mais orgulhoso)
Sim, tem razão. O amor-próprio gosta de ouvir aplausos do mestre. Verdade é que, neste caso, seria o aplauso de um mestre vencido. (diz com escárnio)

DEUS
Você me deixou curioso. Por que motivo, cansado há tanto de sua própria desorganização, só agora pensou em fundar uma igreja?

DIABO
(Sorri, com certo ar de escárnio e triunfo)
Tenho amadurecido uma ideia. Sabe como surgiu?

DEUS
Diga.

DIABO
Depois de muito observar os homens e mulheres, pensei nas virtudes que você instituiu. As virtudes podem ser comparáveis a rainhas cujo manto de veludo tivesse como arremate franjas de algodão. Como você bem sabe, o algodão é um tecido frágil, que se esgarça facilmente. Ora, o que estou propondo é puxar essas franjas e trazê-las todas para a minha igreja.

DEUS
O que você fala não passa de uma velha retórica. Você é vulgar, o pior defeito que pode acontecer a um espírito da tua espécie. Tudo que diz ou vá dizer está dito e redito pelos moralistas do mundo.

DIABO
(irritado)
Olha bem. Muitos corpos que se ajoelham aos seus pés, nos templos do mundo, suas pupilas centelham de curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do pecado. Não quero parecer que me detenho em coisas miúdas; não falo, por exemplo, na placidez com que este juiz de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o seu amor e uma comenda… (estufa o peito de orgulho) Vou a negócios mais altos…

DEUS
É um assunto gasto, e se não tem força, nem originalidade para renovar um assunto, melhor que se cale ou retire. Olha para esse pessoal aqui à minha volta. (aponta para homens, mulheres, crianças e serafins) Veja em cada rosto os sinais de tédio que você lhes dá. Vai, vai, funda a sua igreja. Chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens. Vá!

Diabo ainda tenta dizer alguma coisa, mas Deus faz sinal para que ele fique em silêncio. O Diabo sai pisando duro e deixa Deus na sala. Deus dá um suspiro.

DEUS
(com pesar)
Esse menino… tsiu… tsiu…

CORTA PARA

CENA 3 – INT/DIA/SALA DO DIABO
O Diabo está em sua sala e a Bajuladora-mor vai taquigrafando o que ele diz. O Diabo caminha, enquanto fala.

DIABO
Não podemos perder um minuto sequer. Precisamos espalhar os novos dogmas, e para isso começarei no tête-à-tête. Nada como a propaganda boca a boca. Depois, o céu não tem limite. (diz, ironicamente)

BAJULADORA-MOR
(vacilante)
Mas, Mestre da Maldade… Vossa Alteza Vil… não teme encontrar uma CERTA resistência entre os mortais? Afinal… vamos dizer… hum… sua figura é um tanto quanto di-fa-ma-da pelo pessoal lá de cima… (apontando para o céu)

DIABO
Eu sei, mas vou provar para a humanidade que o Diabo não é tão feio quanto parece. (olha-se no espelho arrumando a sobrancelha) Sim, sou o Diabo, mas não este envolto em enxofre, o terror das crianças que Aqueles lá de cima propagaram durante milênios. Mas o próprio Diabo, verdadeiro e ÚNICO, o próprio GÊNIO da NATUREZA. (diz com soberba)

BAJULADORA-MOR
Mas como faremos isso? Sei que vossa Maldade tem a eternidade para trabalhar, mas se ficarmos apenas no boca a boca levará muito tempo e sua Magnânima Maldade já disse que tem pressa, pressa de fundar a nova igreja.

DIABO
Ah, mas os homens estão muito avançados em suas tecnologias. Vamos usar o que eles têm de melhor para propagar os nossos dogmas.

CORTA PARA

CENA 4 – EXT./DIA/PRAÇA
O Diabo conversa com dois jovens, que escutam com atenção o que ele diz.

CORTA PARA

CENA 5 – INT/DIA/FILA DE SUPERMERCADO
O Diabo conversa com três mulheres, uma grávida, outra já idosa e uma com aparência de executiva.

CORTA PARA

CENA 6 – EXT/DIA/PORTA DE ESTÁDIO DE FUTEBOL
O Diabo está no meio de uma rodinha de torcedores de futebol, de vários times. Gesticula entusiasmadamente, e todos lhe prestam atenção.

CORTA PARA

CENA 7 – EXT/NOITE/PORTA DE UMA BOATE
O Diabo e um grupo grande e barulhento chegam. Enquanto o Diabo conversa com alguns, os outros membros vão distribuindo panfletos para figurantes.

CORTA PARA

CENA 8 – INT/NOITE/SALA DE VISITA
Uma família assiste à televisão. Câmara deriva: detalhe dos rostos do pai, da mãe, dos dois filhos, da avó e da empregada doméstica, que está atrás do sofá batendo à mão uma massa de bolo. Som da voz do Diabo, até que a câmara focaliza a tela da TV, mostrando a imagem do Diabo. Todos estão hipnotizados.

DIABO
Você que está cansado, que não tem mais esperança. Você que sempre seguiu as virtudes impostas pelos representantes do Aquele lá de cima (diz apontado o céu) e que nunca recebeu nada em troca, venha para a minha igreja. Traga suas velhas virtudes e troque-as por novinhas em folha. Troque por novas, que são naturais e legítimas. Vivemos num novo mundo, numa nova época. Somos homens e mulheres do século XXI! Como ficar utilizando virtudes de mais de dois mil anos?! Por quê?!

CORTA PARA

CENA 9 – INT/NOITE/QUARTO
Mulher com aparência de 40 anos, esparramada na cama, comendo um balde de sorvete, presta a atenção à TV como se tivesse hipnotizada. A sua volta, há vários pacotes de comida, como biscoitos, balas e refrigerantes.

DIABO
Por que falar mal da gula, hum?! Ora, veja você, (diz apontando o dedo) há quem condene esse prazer tão maravilhoso! Não podemos esquecer o valor de ordem literária e histórica que esse tema já gerou. Também não há como negar o valor intrínseco dessa virtude! Quem negaria o quanto é maravilhoso sentir na boca e no ventre os bons manjares, em grande volume, muito mais do que sentir o gosto dos maus bocados ou a saliva do jejum! Esse negócio de que a gula é pecado, convenhamos!, não convence mais ninguém! Se você engordar, basta tomar uns remedinhos, e pronto! O que não dá é para ficar jogando fora tanta comida, não é mesmo?! VOCÊ MERECE comer qualquer coisa em QUALQUER quantidade que queira! VOCÊ MERECE!

CORTA PARA

CENA 10 – EXT/DIA/CARRO PARADO NO TRÂNSITO
Um homem ouve pelo rádio a voz do Diabo. O homem está irado, devido ao trânsito parado.

DIABO (em off)
O que seria do mundo sem a ira?! Afinal, graças a ela Homero existiu para o mundo. Onde estaria o poeta grego se ele não tivesse escrito sobre a ira de Aquiles? Onde? Por que o homem deve engolir tudo, pensar duas vezes e não extravasar sua ira? Guardar para quê?! Me diga, pra quê?! Você não é santo, nem precisa ser. Quem grita consegue o respeito dos outros, isso sim! É disso que você precisa, dane-se o resto, o importante É VOCÊ!

CORTA PARA

CENA 11 – INT/NOITE/SALA DE VISITA
Um velho conta o dinheiro, com avidez, enquanto na TV se ouve a voz do Diabo. Detalhe do rosto do velho.

DIABO (em off)
Você é chamado de avarento? Sua família não o compreende, diz que você é um grande pão duro? Abandonaram você justamente por isso?! Você não está mais sozinho! A avareza é mãe da economia.

CORTA PARA

CENA 12 – INT/NOITE/QUARTO
A televisão está ligada e um homem de 40 anos tenta tirar a roupa de uma adolescente que aparenta ter uns 13 anos, a menina mostra resistência. Ela presta a atenção ao Diabo, que aparece na TV. O homem não presta atenção, sua preocupação é tentar tirar a roupa da adolescente.

DIABO
A soberba, a luxúria, a preguiça precisam ser reabilitadas, isso sim. As coitadas foram renegadas ao segundo plano. Por que não se entregar à luxúria? Você merece, você precisa saber o seu valor! Com tantas mulheres e homens no mundo, por que não desfrutar os prazeres da carne?! Não importa a idade, vale tudo, o que importa é o prazer!

CORTA PARA

CENA 13 – INT/NOITE/PÚLPITO DA IGREJA
Igreja completamente abarrotada de gente. O local, de dimensões gigantescas, é ricamente ornamentado. Vitrais retratam os sete pecados capitais. Há pessoas sentadas no chão e em pé. O Diabo discursa no púlpito; gesticula, enquanto câmeras de TV mostram sua imagem em grandes telões do lado de fora da igreja. Os fiéis batem palmas, sorriem, gritam aleluia a cada frase de efeito do Diabo. Bajuladora-mor comanda um coro vestido de vermelho. A roupa é rica, semelhante à dos destaques de chão das escola de samba, sem os adornos na cabeça e nas costas, porém.

DIABO
(com grande eloquência)
Pois eu lhes digo: de que valem as vinhas do Senhor, se as vinhas do Diabo são muito mais prósperas e belas?! Nas minhas vinhas, que são linguagens diretas e verdadeiras, nunca, eu disse NUNCA, faltará a cada um de vocês os mais belos frutos do mundo. Eu disse NUNCA!

MULTIDÃO
(grita com entusiasmo)
Aleluia! Aleluia!

DIABO
Durante séculos e séculos lhes foi dito que a fraude, a mentira é algo pecaminoso. Pois eu lhes digo, digo com todas as letras possíveis, que a FRAUDE é o BRAÇO ESQUERDO do homem. O braço direito é a FORÇA. Muitos homens são canhotos, eis tudo. Aceito que os homens possam escolher serem canhotos, usando a fraude, ou destros, usando a força. Porém não admito, não admito de forma alguma!, que um fiel meu seja NADA, nem canhoto, nem destro. Esse negócio (fala com desprezo) de amor ao próximo, caridade… qual o quê! Pois sim, isso nunca deu nada a ninguém! O mundo precisa ser conquistado! Vocês querem conquistar o mundo?

MULTIDÃO
(detalhe no rosto de uma perua)
Simmmmmmm! (detalhe de um homem comum) Simmmmm! (detalhe do rosto de um executivo) Simmm! (detalhe de uma senhora idosa)

DIABO
Querem ou não querem?

MULTIDÃO
Simmmmmm!

DIABO
Cada homem e mulher tem seu preço, e você (diz apontando a um da plateia) deverá cobrar caro, se quiser ter valor. Apenas o dinheiro importa. É a coisa mais importante desta vida. Dinheiro, beleza, poder e sexo. Se tiver dinheiro, tudo mais virá a reboque.

MULTIDÃO
Aleluia!

DIABO
A venalidade é o exercício de um direito superior a todos. Se você pode vender a sua casa, o seu boi, o seu sapato, o seu chapéu, coisas que são suas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de você, como é que não pode vender a sua opinião, o seu voto, a sua palavra, a sua fé, coisas que são mais do que suas, porque são a sua própria consciência, isto é, você mesmo?! Pois não há mulheres que vendem os cabelos? Por que não pode o homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro homem anêmico? Me digam?! Por que não pode?! Francamente. VOCÊ PODE TUDO! Tudo o que desejar será seu se me adorares. (aponta para uma pessoa da plateia) Você aceita?!

JOVEM
(detalhe do rosto de um jovem na multidão)
Sim!

DIABO
E você aceitará ser meu fiel? Promete cumprir o que eu determinar?

VELHO
Sim, sim!

DIABO
Eu não exijo muito. Não estou aqui a pedir igual ao Outro lá de cima (aponta o céu com desprezo) nada do que vocês já não fazem. Uns mais constantemente; outros, às vezes. O que peço é que cada um deixe esse negócio de amor ao próximo de lado. Com efeito, o amor ao próximo é um grave obstáculo à nossa igreja. Essa regra foi inventada por Aquele lá de cima e seu Filhinho insuportável! (com desprezo) É uma simples invenção de parasitas e negociantes inadimplentes. Não se deve dar ao próximo senão indiferença, em alguns casos, desprezo ou mesmo ódio. Entenderam? Amor ao próximo está proibido, terminantemente proibido!

MULTIDÃO
Sim!

DIABO
(olhar irônico e malicioso)
Há apenas uma exceção. Você pode amar ao próximo quando este se tratar de uma dama alheia, porque essa espécie de amor tem a particularidade de não ser outra coisa mais do que o amor do indivíduo a si mesmo. Vão e pequem, pequem muito!

CORTA PARA

CENA 14 – INT/DIA/ESCRITÓRIO DO DIABO NA TERRA
Diabo está sentado em frente à sua mesa de trabalho, mexendo no computador. O telefone toca, ele atende. A cena é composta de silêncio e fala do Diabo. Ele escuta o que diz a pessoa que está do outro lado da linha. Não ouvimos a voz de quem telefonou.

DIABO
Sim. (silêncio) Mas isso não é possível. Deve estar havendo algum engano… (silêncio) Mas… Não, você deve estar enganado, não… Não posso acreditar que… (silêncio). Eu mesmo vou averiguar isso! (diz batendo o telefone com força no gancho)

CORTA PARA

CENA 15 – EXT/MADRUGADA/RUA QUASE DESERTA
Um grupo de voluntários dá sopa para uns mendigos. Um desses mendigos é o Diabo, disfarçado. Um voluntário aproxima-se e, sorrindo, oferece-lhe um prato de sopa.

DIABO
Eu acho que conheço o senhor de algum lugar…

VOLUNTÁRIO
Deve ser porque toda sexta-feira venho aqui dar sopa para irmãozinhos como você.

DIABO
É… pode ser… (silêncio, toma algumas colheradas) Mas você não frequenta a Igreja do Diabo?

VOLUNTÁRIO
(assustado, para de sorrir na mesma hora e vai se afastando)
Não…

DIABO
(vai atrás do homem que se afasta)
Mas não foi você que esteve junto com o Diabo no último sábado?

VOLUNTÁRIO
Não, é claro que não. Eu não conheço esse senhor. Nunca o vi. (diz, tentando fugir do Diabo)

DIABO
Não é você discípulo do Diabo? Não é?! (pressiona)

VOLUNTÁRIO
Não! Já disse que não! Me deixe em paz! (sai correndo)

CORTA PARA

CENA 16 – EXTERIOR/DIA/PORTA DE UMA IGREJA CRISTÃ
Diabo disfarçado de vendedor de cachorro-quente. Em sua companhia, a Bajuladora-mor, que o ajuda a vender o produto. As pessoas saem de um templo religioso. É bom que se diga que não é a igreja do diabo.

DIABO
Veja, Bajuladora-mor, aquele ali não é o maior ladrão de jóias da cidade?

BAJULADORA-MOR
Sim, Alteza Perversa. É ele, sim.

Detalhe do rosto do homem, que tenta esconder o rosto usando um chapéu. Desce as escadas e, disfarçadamente, dá algumas notas para a criança mendiga que está à porta. Detalhe do rosto do Diabo: fica furioso.

CORTA PARA

CENA 17 – INT/NOITE/ESCRITÓRIO DO DIABO NA TERRA
Diabo, disfarçado de vendedor de balas, entra seguido pela Bajuladora-mor. Vai tirando o disfarce conforme caminha para sua mesa. Xinga e blasfema.

DIABO
Não, não é possível que esses desgraçados tenham feito isso! Não é possível! Eles estavam indo tão bem… Como eles podem ter me traído desta maneira! Por quê? Por quê?… (indaga-se, desesperado) Me dá a lista dos que me traíram…

Bajuladora-mor busca a lista em cima da mesa. São vários papéis. Diabo folheia a lista, que tem umas 50 folhas.

DIABO
Veja só isso! Um absurdo! Ah, mas isso não vai ficar assim, não! Quem Ele (aponta para cima) pensa que é?! Deus?! Pois sim! Eu vou tomar satisfação com aquele sujeitinho! Eu fui honesto, fui lá, avisei, e agora Ele quer me puxar o tapete desta maneira?! Ele vai ver com quantos paus se faz uma crucificação.

Diabo caminha, resoluto, para a porta.

CORTA PARA

CENA 18 – INT/DIA/SALA DE DEUS
O ambiente tem uma suave e bela luz. É uma sala grande, mas vazia de objetos e adornos. Deus conversa com um grupo de crianças. Está sentado e conta uma história. As crianças riem. Entra o Diabo, pisando duro e gritando. Alguns serafins tentam impedi-lo de se aproximar de Deus, mas Deus faz sinal para deixar que o Diabo passe. Deus continua com o mesmo roupão marrom.

DIABO
(com o dedo em riste, gritando)
Você não tinha o direito de fazer isso! Não tinha, ‘tá ouvindo?!

DEUS
(calmamente)
De que você me acusa, Diabo?

DIABO
Eu quero saber, eu exijo saber o que você fez! O que você fez para que as pessoas começassem a fazer o bem, mesmo tendo se filiado à minha igreja! Minha igreja é ótima! Elas estavam ótimas, sendo sovinas, roubando, nadando na luxúria e na comilança, não se importando com o próximo. Agora, DE UMA HORA PARA OUTRA, uma lista grande de meus fiéis começou a dar sopa aos pobres, esmolas aos mendigos, auxiliar os doentes… (indignado) Isso é um absurdo! Eu SEI que VOCÊ fez alguma coisa, EU SEI! (diz, bufando e apontando o dedo para Deus)

DEUS
O que você quer, pobre Diabo? Você não disse que as capas de algodão têm agora franjas de seda como as de veludo tiveram, outrora, franjas de algodão? Que quer você, Diabo? (sorrindo e abrindo os braços mansamente) É a eterna contradição humana.

FIM

Adaptação do conto de Machado de Assis, A igreja do Diabo

A igreja do Diabo - Série Adaptação/Escaleta Dramática

•Diabo em sua sala entediado:
O Diabo está na sala tendo por companhia sua Bajuladora-mor. Tem a ideia de fazer uma igreja, pois cansou de seu lugar secundário na história.

•Diabo encontra com Deus:
O Diabo encontra com Deus e anuncia que fará uma igreja. Deus aceita, não se importando com o projeto do Diabo.

•Diabo começa a convencer os homens a ingressarem em sua igreja:
O Diabo conversa com grupos de homens e mulheres. É um grupo pequeno. Depois aparece na TV. Posteriormente, compra um espaço na TV e tem um programa.

•Diabo contabiliza o grande número de adeptos de sua igreja e, seu sucesso:
Diabo contabiliza o número de adeptos. A Bajuladora-mor aparece dizendo que há boatos de que os homens estão indo contra os seus mandamentos. O Diabo constata que é verdade.

•Diabo encontra-se com Deus, queixando-se:
Diabo encontra-se com Deus e queixa-se da situação. Diz que, apesar do número enorme de adeptos conseguidos, várias vezes encontrou seus fiéis praticando o amor ao próximo. Deus responde que isso faz parte da natureza humana.

(*) Texto adaptado do conto A igreja do Diabo de Machado de Assis

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Encapotada - Série "Eu me lembro muito bem..."

Eu me lembro muito bem de um casaco que minha vó Maria usava. Era grande, pesado, próprio para os invernos rigorosos de São Paulo. Acostumada com o calor das praias cariocas, aquele casaco com estampa xadrez em preto e branco sempre me lembrou aconchego. O xadrez era pequenininho e, quando o via sendo usado por vó Maria, ficava contando os quadradinhos sem nunca ter chegado a um resultado.
Quando ela saía de noite e eu ficava em casa, tinha a certeza de que na volta os bolsos dela trariam pequenas guloseimas, como um saco de pipoca ou amendoim, balas, jujubas ou alguma cocada preta, a minha preferida.
Nada melhor havia para uma menina de sete anos do que sentar em seu colo e ser envolvida pelos braços amorosos, com o corpo aconchegado no casaco. Ele se transformava num grande cobertor, em que meu corpo e o de vó Maria eram protegidos do frio.
Anos mais tarde, quando viajei para a Europa e enfrentei em Paris um inverno rigoroso, fui obrigada a procurar um casaco num brechó, já que em tempos de estudante a grana era curta e as compras não podiam ser feitas nas ricas boulevards.
Caçando uma roupa apropriada que diminuísse o frio de uma carioca tropical, encontrei um casaco semelhante ao de vó Maria. Não igual, porque o xadrez francês era um pouco maior. Mas pode-se dizer que os dois casacos eram primos-irmãos. Levei-o para casa e, durante todo aquele inverno infernal e os que se seguiram, usei-o. A saudade ficou mais fácil de ser suportada. Tinha o aconchego proustiano a me envolver.
Vó Maria morreu há décadas. Seu casaco não sei que fim levou. Mas o meu continua guardado no armário e, quando a saudade bate forte, ligo o ar-condicionado na potência máxima e vou dormir encapotada.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Mera coincidência/Série Adaptação

1 – INT./DIA/CAPELA MORTUÁRIA

A história se passa em 1950. No caixão, detalhe do rosto de Carapebus. O defunto aparenta ter 40 anos. Uma lágrima desliza do olho esquerdo do defunto , interruptamente. Estão no local seis pessoas: Cidinha, 35 anos, morena, que chora compulsivamente; Eusébio, branco, 45 anos, que a conforta; Maria Gertrudes, loira, 40 anos; duas crianças, uma menina de sete anos e um menino de oito anos; Raul Alfredo, 55 anos, branco. As crianças correm de um lado pro outro.

RAUL ALFREDO
(Dá um suspiro)
Um grande homem, esse Carapebus...

MARIA GERTRUDES
(Espantada)
Francamente! Justo você me dizendo isso! Ontem mesmo eu ouvi quando falou que Carapebus era um imprestável, que não servia pra nada! Que tinha dado o golpe do baú casando com a Hermengarda!

RAUL ALFREDO
(Irônico)
Mas você não sabe que basta morrer para alcançar a santidade?

MARIA GERTRUDES
(Falando para o filho)
Para com isso, Joãozinho! Vem cá, menino!


CENA 2 – INT./DIA/CAPELA MORTUÁRIA
Cidinha caminha em direção ao caixão. Eusébio tenta segurar Cidinha, sem sucesso.

CIDINHA
(Chora compulsivamente)
Não, não! Você não podia ter me deixado...

EUSÉBIO
Para Cidinha... Daqui a pouco a viúva chega e nem é bom pensar... (olha para Maria Gertrudes e Raul Alfredo e sorri sem graça)

CORTA PARA

Maria Gertrudes conversa com Raul Alfredo enquanto as crianças correm pela capela.

MARIA GERTRUDES
(Cochicha)
Cadê a viúva?

RAUL ALFREDO
(Baixinho)
Ainda não chegou. Dizem que 'tá muito abatida.

MARIA GERTRUDES
(Irônica)
Pois sim! Depois de enterrar quatro, já tem know-how suficiente. Tira isso com os pés nas costas, isso sim.

RAUL ALFREDO
(Sussurra)
Fala baixo que os outros podem ouvir!

MARIA GERTRUDES
(Indignada e irritada)
Mas eu tô falando alguma mentira? Lá na Vila chamam Hermengarda
de viúva negra do Tatuapé, né não?!

RAUL ALFREDO
(Exasperado)
O que sei é que a sua língua é maior do que a sua boca, isso sim.

MARIA GERTRUDES
Ah, você diz isso porque... (interrompe e grita para a menina) Maria Emília, para de beliscar o seu irmão, para!


CENA 3 – INT.-EXT/DIA/PORTA DA CAPELA MORTUÁRIA
Cidinha e Eusébio caminham para o lado de fora da Capela Mortuária.
Cidinha é amparada por Eusébio na caminhada.

CIDINHA
(Chorando)
Minha vida acabou! O que será de mim? Como viverei sem Carapebus? Minha vida acabou!

EUSÉBIO
Se acalma, Cidinha. As pessoas estão olhando... Daqui a pouco a viúva chega e...

CIDINHA
(Exasperada)
Aquela bruxa! Aquela sanguessuga! Ninguém me tira da cabeça que foi ela que matou Carapebus. Ninguém me tira da cabeça. Ela tem o apelido de viúva negra não é à toa.

EUSÉBIO
Ninguém nunca descobriu nada, Cidinha. Por que ela mataria Carapebus ou qualquer dos outros maridos, hein?

CIDINHA
Sei lá. Dinheiro. Poder. Sabe-se lá o que vai numa mente de uma viúva negra! Lembra como morreu o primeiro marido? Aquele que era metido a fazer versos na Revista Almanaque Família, lembra?!

FUSÃO


FLASH –BACK/CENA 4 – INT./DIA/ESCRITÓRIO DA CASA DA HERMENGARDA
Primeiro marido de Hermengarda sentado em frente à escrivaninha. À sua volta, exemplares da Revista Almanaque da Família, dicionários e livros de poetas parnasianos. O Primeiro Marido é baixo, gordinho, cabelo caindo no olho e tem 30 anos. Barulho de porta se abrindo e passos caminhando pelo assoalho. Detalhe apenas de uma mão jovem e gorda colocando uma xícara com líquido fumegante ao lado do Primeiro Marido; ele não lhe dá muita atenção e diz distraído.

PRIMEIRO MARIDO
Ah, obrigada, Hermengarda.

Passos se afastando. O Primeiro Marido se concentra no que está escrevendo. Para um pouco, pensa. Murmura.

PRIMEIRO MARIDO
Flor... hum... flor...

Toma um gole do líquido da xícara fumegante. Olha para o papel e diz com entusiasmo.

PRIMEIRO MARIDO
Amor! (Escreve com cuidado a palavra o papel. Depois olha a página, dá um sorriso e tomba com a cabeça, morto.)

CORTA PARA

CENA 5 – EXT/DIA/PORTA DA CAPELA MORTUÁRIA
Eusébio tenta acalmar Cidinha, mas esta continua nervosa.

EUSÉBIO
Tsiu, Cidinha... (olha para os lados) alguém pode escutar você falando contra a dona Hermengarda. Ela é uma mulher muito rica e poderosa. Não mexa nesse vespeiro, não, minha amiga... A corda sempre arrebenta pelo lado mais fraco e VOCÊ é esse lado .

CIDINHA
(Indignada)
Mas você pensa que sou só EU que desconfio dela? Acha mesmo? Hum!


CENA 6 – INT/DIA/ CAPELA MORTUÁRIA

MARIA GERTRUDES
(Em tom de fofoca)
Você nunca achou estranha a forma como o segundo marido da dona Hermengarda morreu? Dizem que suas últimas palavras foram sobre um tal balancete... Não é estranho isso? Que balancete é esse, afinal?

RAUL ALFREDO
É, realmente, o Souza tinha saúde de ferro, era muito metódico, e sua morte causou muito espanto lá na firma de Secos e Molhados. Mas daí a dizer que a dona Hermengarda matou o marido a sangue frio já é outra coisa... Acho que tudo isso não passa de mera coincidência, apenas isso. Dona Hermengarda não seria capaz de um ato tal vil, tenho certeza.

FUSÃO

FLASH –BACK/CENA 7 – INT./DIA/CASA DA HERMENGARDA
Barulho de chave na fechadura, e a porta da frente da casa de Hermengarda se abre. Surge a figura de Souza. Um homem muito alto, muito magro. Nariz comprido e de óculos fundo de garrafa. Souza caminha silenciosamente até a sala, segurando uma pasta. Usa uma capa de chuva e carrega um guarda-chuva, além da pasta. Souza tira a capa, dobra-a com todo o cuidado e a coloca no encosto da cadeira. Tira o chapéu e o coloca, junto com o guarda-chuva, num armário daquele que vemos em filmes americanos. Senta numa poltrona de encosto alto, coloca a pasta nas pernas e puxa um cachimbo do paletó. Acende-o calmamente e, depois de dar uma longa tragada e diz: .

SOUZA
Hermengarda, minha filha. Já cheguei. (abre a pasta e quando ouve o som de passos para o que está fazendo)

Som de passos pesados caminhando e barulho de carrinho. Aparece o carrinho e duas mãos jovens e gordas empurrando-o. Detalhe nas mãos. Detalhe do carrinho: um bule com um líquido fumegante, uma xícara ricamente trabalhada e um pratinho com guloseimas. Souza sorri na direção de Hermengarda, serve-se do líquido fumegante, toma um gole, pega um bolinho e o come. Bebe com prazer o chá e com um sorriso de agradecimento fala para Hermengarda, que não aparece em cena.

SOUZA
Obrigada, minha filha. O chá está divino!

Detalhe do corpo da frente de Hermengarda. Não aparece seu rosto, só o vestido preto, com pequenas flores vermelhas e suas mãos gordas cruzadas na frente da barriga. Souza bebe mais um gole, sorri na direção de Hermengarda e deixa a xícara no carrinho. Pega a pasta e, quando vai tirar os papéis de dentro, olha espantado para o alto, como se tivesse sentindo uma dor, leva a mão à garganta e sussurra.

SOUZA
Hermengarda, minha bondosa Hermengarda. Só levo dessa vida uma tristeza. A de não ter podido fechar o balancete de 1922.

CORTA PARA


CENA 8 – EXT./DIA/PORTA DA CAPELA MORTUÁRIA
Cidinha e Eusébio fumam. Ela está mais calma. Dá uma baforada e diz mordaz.

CIDINHA
Lembra de como morreu o capitão Albernaz de Melo? Um homem como aquele, vendendo saúde por todos os poros! No dia em que morreu, encontrei-o na Academia Militar. O terceiro marido da Hermengarda era metido a fazer discursos e na ocasião ficou falando por mais de duas horas sobre o marechal Floriano Peixoto e Rui Barbosa. Ninguém aguentava mais aquele discurso enfadonho. Quando mais tarde fiquei sabendo de sua morte, levei um susto enorme. Saiu da academia, foi pra casa e catapoum! Esticou as canelas... Ninguém me tira da cabeça que foi coisa da bruxa.

FUSÃO

FLASH –BACK/CENA 9 – INT./DIA/COZINHA DA CASA DA HERMENGARDA
Capitão Albernaz de Melo sentado à mesa. Detalhe da mesa: uma sopeira com uma concha dentro, o prato do capitão está com restos de comida. Ele acabou de comer. Detalhe no prato: restos de feijoada e laranja. O capitão tem 50 anos, cabelos e barba grisalha. Ele veste uma farda do Exército e em frente a esta há um guardanapo grande servindo de babador. Limpa a boca com o guardanapo.

CAPITÃO
(Diz autoritário)
É só isso, Hermengarda?

Barulho de louça. Detalhe apenas de uma mão de uma mulher madura e gorda, que oferece a xícara com um líquido fumegante para o capitão. Ele pega a xícara e toma um gole. Olha na direção da mão, toma mais um gole, vira os olhos e cai com o rosto dentro do prato com restos de feijoada. Som de um suspiro feminino.

HERMENGARDA
(Diz com pesar, sem aparecer sua imagem)
Coitado! Mais um que morre logo depois de fazer o seguro de vida. (suspiro) 'Tadinho!

CORTA PARA

CENA 10 – EXT./DIA/PORTA DA CAPELA MORTUÁRIA
Eusébio mais uma vez tenta acalmar os ânimos de Cidinha, sem sucesso.

EUSÉBIO
Calma, Cidinha. O carro da dona Hermengarda está chegando. Vê se não vai fazer nenhum escândalo. Você não tem nenhuma prova. Tudo pode ter sido mera coincidência.

Comboio de carros pretos chega à Capela Mortuária. O carro preto mais luxuoso para em frente ao lugar onde está Eusébio e Cidinha. A porta se abre e aparece o detalhe de uma perna de mulher gorda e velha. Depois o detalhe do corpo da mulher obesa, que vai aparecendo aos poucos. Hermengarda é uma mulher imensa, com papadas e óculos de gatinho. Caminha altiva em direção à capela. Usa um vestido preto muito chique, com várias joias em ouro, diamantes e rubis. Hermengarda tem aparência de 60 anos.

CORTA PARA


CENA 11 – INT./DIA/CAPELA MORTUÁRIA
Hermengarda em frente ao caixão de Carapebus. Olha com superioridade para o morto. Uma lágrima escorre do olho esquerdo do defunto.

CORTA PARA

Maria Gertrudes sussurra para Raul Alfredo.

MARIA GERTRUDES
Quem será o próximo?

FIM

PS: Exercício feito em cima do conto de José Cândido de Carvalho Viúva em quatro maridos, que consta no livro Os mágicos municipais. O exercício fez parte do curso da Caixa Cultural do Rio de Janeiro, cujo tema foi Adaptação: a literatura no cinema, julho de 2010.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Um passado que não passa (*) - Série "Eu me lembro muito bem..."

Eu me lembro muito bem do medo. Do grande e implacável medo que sentia do sótão lá de casa. Escuro, denso, vazio de vida, cheio de teias de aranhas a tecer fantasmas do pretérito; eu nem tinha consciência de que existiam, mas os sentia. O medo nunca me deixou, era minha companhia toda vez que era obrigada a escalar os vinte e sete degraus que separavam o sótão do segundo andar. Para tomar coragem, o Poeta, meu cachorro vira-lata, sempre me acompanhava. Ele e minha boneca Julieta. Mas de nada adiantava ter a companhia desses parceiros constantes. O medo persistia. Insistia. Era implacável.

O silêncio ora gritava, ora sussurrava, e espremia meus ossos.

Passados tantos anos, ainda consigo sentir aquela sensação de terror, como se a qualquer momento fosse descobrir o cadáver mal enterrado de alguma lembrança do meu avô, do meu tio ou mesmo de mamãe.

Nunca vi nada.

Ninguém nunca me contou nada.

Absolutamente nada, mas eu senti.

Hoje a casa já não há. Construíram uma igreja no local. Dessas que culpam o diabo por tudo. A rua já não é mais a mesma. Algumas árvores foram cortadas. Várias casas foram demolidas também, não só a minha. A vida é outra.

Mas toda vez que passo em frente ao novo prédio, sinto como se o passado e os fantasmas do sótão viessem me chamar. Viessem me saudar. Acenar com o lenço da memória. Um passado que não passa. Uma dor que ficou. Um medo de não sei quê, que não sei por que, mas ainda existe. Um medo de triturar ossos. Insiste. Persiste.

Sempre.


(*) Homenagem ao escritor Lobo Antunes. Exercício feito no curso da Caixa Cultural do Rio de Janeiro, cujo tema foi Adaptação: a literatura no cinema, julho de 2010.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Pires

Ele é um pires. Um pires que não faz parte de nenhum conjunto. Não tem por família nenhum bule de café, nenhuma xícara, nenhum açucareiro. Não é sequer par de um pequeno bule de leite. Não tem ninguém a fazer-lhe companhia.

É um pires bonito. Não excepcional, isso não. Mas é simpático e está ali na feira hype, que vende quinquilharias antigas.

Um pires solitário, com ar de quem não foi criado na pós-pós-mudernidade. Nasceu num mundo em que o conceito de design sequer tinha sido pensado. Um mundo artesanal, onde o bonito era bonito, e pronto. A feiúra não era nunca considerada bela, e as pessoas carregavam certezas absolutas que mudavam instantaneamente.

Branco, com pequenos detalhes dourados, esses aspectos lhe dão jeito de nobreza decadente. Não é um pires feminino, desses que as mulheres da elite econômica usam ao se reunirem com as amigas para tomar chá e falar das últimas modas na Europa enquanto a guerra campeia nas ruas. Não, ele certamente não é um pires que se sirva para esses fins.

Quem sabe, com seus ares de aristocrata empobrecido, não tenha sido par de um conjunto cujo dono fosse um grande intelectual? São conjecturas sobre as quais ninguém tem certeza. Mas olhar aquele pires, tristemente solitário, faz qualquer pessoa levantar suas suspeitas. Afinal, o que aconteceu aos seus pares?

Quem foi seu dono?
De onde vem?
Para onde vai?
Perguntas fazem parte da natureza do homem.

O pires não dá respostas. Mas é possível imaginar sua existência solitária, seu jeitão encalhado a olhar quem passa, com a certeza de que dificilmente será comprado.
Se ainda fosse um prato!

Mas não. É um simples pires com um passado desmemoriado.
Ninguém dirá: Getúlio Vargas bebeu nesse pires. Ou: a Princesa Isabel comeu nesse pires.
Triste é a sina de quem é pires na vida.
De quem nasceu para ser par, mas a existência lhe fez uno.

Quem poderá dizer seu destino?
Será vendido?
Ficará encalhado?

Ou algum gato mais desavisado passará por ali, esbarrando nele e levando-o ao chão?
Mil pedaços quebrados. Fragmentos de uma história que ninguém contou, perdendo-se entre paralelepípedos.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Diário de Mel

É duro ter 15 anos. Odeio do fundo do meu coração a idade que tenho.
Agora fico eu aqui, igual a uma idiota, em pleno sábado, não podendo me encontrar com a Carol e a Duda, porque a babaca de minha mãe se lembrou de ser mãe e acha que pode mandar na minha vida!
Tô doida para completar 18 anos e poder sair deste inferno que é a minha casa. Este clima de ‘família Doriana’ é um saco! Papai e minha mãe só vivem para brigar. É uma batalha para decidir se o café deve levar adoçante ou açúcar, e eu ali, no meio, presenciando esta merda de família que se perde a cada dia mais.
Odeio isso.
Odeio minha mãe.
Odeio minha vida.
Merda!