sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Lili Bénie

Lili era uma jovem com muitos sonhos, grandes sonhos... Ela vivia com os pés vinte centímetros longe do chão, e não era usando sapatos de salto alto. Era sonhando mesmo. Sonhando com uma vida de estrelato, onde seria capa de importantes revistas não só no Brasil, mas mundo afora.

Nada modesta a menina, no quesito sonhador. Seu ego era todo trabalhado na purpurina e nos strass.

Para ela, o céu não tinha limite e a estratosfera não era suficiente. Sua meta era chegar à mesosfera, bem ao lado de Meryl Streep, Angelina Jolie e Jennifer Lawrence, ou qualquer nova queridinha que aparecesse nas revistas de celebridades ou desfilasse sua graça num dos renomados tapetes vermelhos.

Contudo, a pobre da Lili não tinha – como direi sem ser cruel? – um talento suficiente para galgar a fama e o estrelato nos palcos, nas telonas, nas telinhas. Mas cá entre nós: às vezes a pessoa dá sorte, e talento não é o fator preponderante no exercício da profissão.

Lili não queria ser apenas mais um rostinho bonito no meio de tantos outros – não, senhor! Ela almejava que seu nome passasse no Enem do tempo, onde só os bons ficam nos livros da história e da arte, perpetuando seus nomes, mãos e pés na calçada da fama.

Dedicada a menina era, convenhamos. Logo tratou meio de se matricular num curso de teatro, implorando que os deuses lhe ouvissem o pedido de glória. Mas cada fala sua era o retrato mais pungido da canastrice.

Seu “Bom dia” soava de uma maneira tão falsa, que as Louis Vuitton da Saara ou da Vinte e Cinco de Março pareciam mais legítimas e verdadeiras no seu sotaque made in China.

Não foi uma, nem duas, nem mesmo dez vezes que diretores, dramaturgos, professores, colegas de palco e de tela falavam mal da pobre Lili, por trás; alguns mais cruéis falavam na frente mesmo, mandando ela ir para casa fazer outra coisa, pois o palco não era seu lugar.

Mas, se brasileiro não desiste nunca, Lili, uma mistura de portugueses, espanhóis, negros e turcos, levantava a cabeça e seguia em frente, acreditando que seu lugar era a glória – entre as estrelas. Contudo, a cada nova tentativa, levava a porta na cara.

Quando alguém, com delicadeza, para não ferir seus brios – sabe como é todo artista, né? – tentava lhe sugerir que buscasse outra profissão, Lili dizia em alto e bom som o quanto era uma incompreendida, o quanto sua arte estava à frente do seu tempo, o quanto era injustiçada, o quanto... o quanto... o quanto...

A ladainha era grande, e a criatura cheia de boas intenções virava as costas e ia embora, deixando-lhe fazer o seu discurso em cima da caixa de fósforos.

Mas é o que já disse: às vezes o imponderável acontece, e talento não é fator preponderante no exercício da profissão. Foi o que aconteceu com Lili, veja você.

De tanto ficar escutando a ladainha da criatura, que lhe pentelhava o saco a toda hora, o velho e bom Dioniso, o pai do teatro grego, resolveu matar dois coelhos com uma cajadada só.

Explico: os grandes atores e atrizes que morrem ficam lá no céu do Olimpo desfrutando dos prazeres do convívio com seus pares que muito contribuíram para as artes no mundo.

Contudo, eles sentem falta mesmo é do teatro e volta e meia retornam aos camarins para desfrutarem daquela energia que só o palco é capaz de ter. Para um ator, não há céu, por melhor que seja, que tenha mais encanto do que o cheiro de uma coxia e a expectativa da casa cheia.

Então, o velho fanfarrão do Dioniso resolveu atender ao mesmo tempo Lili e a velha guarda dos atores e atrizes do Olimpo.

Eles poderiam usar a novata atriz como seu “cavalo”, incorporando na aprendiz das artes (na verdade, não é incorporar, não, pois a física diz que dois corpos/almas não podem ocupar o mesmo lugar no espaço. O certo é dizer que trocam energias fluídicas, viu, gente? Procurei no Santo Google).

Mas, voltando: então, de repente, não mais que de repente (Salve, poetinha!!), Lili, que era tida como uma canastrona de marca maior, passou a interpretar diferentes papéis com uma competência fora de série.

Nunca antes na história deste país se viu uma transformação tão grande. O que ninguém sabia era que nomes nacionais – e até internacionais – vinham trocar energias fluídicas com a pequena.

Não importava se fosse homem ou mulher, se tivesse morrido há muito tempo ou fosse um defunto recente, se sabia ou não falar português. Nada disso importava. Nomes como Cacilda Becker, Fred Astaire, Oscarito, Laurence Olivier, Grande Otelo, Chaplin, Sérgio Cardoso, Marlene Dietrich, Zacarias, Marlon Brando, José Wilker, Giulietta Masina... a lista é longa. Para encurtar: pense num ator ou atriz famoso, de renome, com um enorme talento? Pensou? Pois Lili recebia a entidade, acredite se quiser.

Com esta parceria divina, Lili logo ultrapassou as fronteiras tupiniquins e passou a atuar e desfilar nos tapetes internacionais, virou figurinha fácil no Oscar e em festivais de cinema, televisão e teatro, sempre levando uma estatueta para a casa.

É claro que ela passava por situações constrangedoras em determinados momentos, tipo: quando alguma entidade não se contentava em apenas atuar no palco, mas queria cair na gandaia, ou quando uma entidade duelava com outra para atuar ao mesmo tempo enquanto uma cena acontecia.

Teve aquela vez em que ela fazia um caipira, o seu santo de frente naquele momento era Mazzaropi e Sir Laurence Olivier começou a declamar Hamlet em pleno estúdio.

Ninguém entendeu nada, e foi a maior zoeira porque ninguém sabia que o talento de Lili era forjado e abençoado por Dioniso, que lá de cima ria muito, divertindo-se com o pandemônio; no final, ele mandou separar os dois “espíritos de porco” que brigavam pelo corpo de Lili.

Com isso, Lili acabou ganhando fama entre os seus como alguém de “personalidade forte” (que na verdade é um eufemismo para dizer que a criatura em questão é terrível de se relacionar, egocêntrica e mal-educada).

Mas não pense que isso prejudicou sua carreira, longe disso! As revistas de celebridades adoravam, e os cofres da dublê de atriz só foram engordando mais e mais.

Aprendam, babies, ser fofo não dá Ibope. No máximo rende algumas notinhas de três linhas numa coluna de fofoca de segundo escalão.

E foi assim que Lili fez fama e fortuna, perpetuando seu nome na história como uma das melhores atrizes não só de sua geração, mas entre la crème de la crème, entre as melhores de todos os tempos, uma atriz completa.

Dioniso de vez em quando olha lá de cima, esfrega as mãos e dá uma enorme gargalhada, num contentamento só.

Pesadelo

Um cheiro tétrico invade minhas narinas. Estou de quatro, rastejando num lamaçal pestilento e pegajoso. Sinto nojo. Não consigo controlar meu corpo. Começo a evacuar ao mesmo tempo em que vomito. Sinto-me um ser repugnante. Sou repugnante. Rastejo por aquele lamaçal. Olho para os lados e nada enxergo. Uma névoa maléfica me cerca. Meu corpo dói. Ouço o eco dos meus próprios gemidos num silêncio sepulcral. A velha sensação de desamparo cresce. Sinto-me abandonado e perdido num mar de silêncio. Chamo por minha mãe, por meu pai, por Horácio, mas só os ecos de minhas palavras repercutem  no ambiente infecto. Sei que não adianta gritar. Sei também que tenho que me virar sozinho. Não tenho esperança. Tento sair daquele lamaçal rastejando, mas não consigo. De repente, vejo uma cabeça de homem surgir no lamaçal. Num primeiro momento, só a cara. O homem vai crescendo e transforma-se num imenso monstro, com dentes afiados e uma boca descomunal, que cheira a podridão. Eu sei que vou morrer. Eu tenho certeza de que vou morrer, mas fico paralisado. Não consigo fazer absolutamente nada. O homem-monstro abre a boca e avança sobre meu corpo. Grito desesperadamente.

        Acordo.
    O corpo treme sem controle.
Olho para o lado e vejo Renata, deitada, nua, dormindo numa serenidade angelical.
    Eu também estou nu e tremo convulsivamente.
    O sol despontando no horizonte entra pela porta de vidro, iluminando o quarto.
    Visto a roupa e saio.
    Na sala me sirvo de um uísque. O líquido queima a garganta. O gosto é horrível, mas bebo mesmo assim, de um só gole.
    Abro a porta de vidro que dá para a varanda. O dia vai amanhecendo lentamente. Uma bonita mistura de azul, rosa e laranja compõe o cenário.
    O mar, de um azul translúcido, é lindo de se ver.
    Lembro-me dos versos da música de Marina: “e tudo o que eu posso te dar é solidão com vista pro mar”.
    É o pior tipo de solidão: um horizonte infinito, descomunal, sem expectativa, sem esperança. Numa monocromia de céu e mar monótona.
    Sinto vontade de chorar.
    Não sou de chorar.
    O pomo de Adão sobe e desce.
    O uísque começa a fazer o efeito de esquentar o corpo, mas a alma de iceberg continua intacta.