segunda-feira, 5 de abril de 2010

Pires

Ele é um pires. Um pires que não faz parte de nenhum conjunto. Não tem por família nenhum bule de café, nenhuma xícara, nenhum açucareiro. Não é sequer par de um pequeno bule de leite. Não tem ninguém a fazer-lhe companhia.

É um pires bonito. Não excepcional, isso não. Mas é simpático e está ali na feira hype, que vende quinquilharias antigas.

Um pires solitário, com ar de quem não foi criado na pós-pós-mudernidade. Nasceu num mundo em que o conceito de design sequer tinha sido pensado. Um mundo artesanal, onde o bonito era bonito, e pronto. A feiúra não era nunca considerada bela, e as pessoas carregavam certezas absolutas que mudavam instantaneamente.

Branco, com pequenos detalhes dourados, esses aspectos lhe dão jeito de nobreza decadente. Não é um pires feminino, desses que as mulheres da elite econômica usam ao se reunirem com as amigas para tomar chá e falar das últimas modas na Europa enquanto a guerra campeia nas ruas. Não, ele certamente não é um pires que se sirva para esses fins.

Quem sabe, com seus ares de aristocrata empobrecido, não tenha sido par de um conjunto cujo dono fosse um grande intelectual? São conjecturas sobre as quais ninguém tem certeza. Mas olhar aquele pires, tristemente solitário, faz qualquer pessoa levantar suas suspeitas. Afinal, o que aconteceu aos seus pares?

Quem foi seu dono?
De onde vem?
Para onde vai?
Perguntas fazem parte da natureza do homem.

O pires não dá respostas. Mas é possível imaginar sua existência solitária, seu jeitão encalhado a olhar quem passa, com a certeza de que dificilmente será comprado.
Se ainda fosse um prato!

Mas não. É um simples pires com um passado desmemoriado.
Ninguém dirá: Getúlio Vargas bebeu nesse pires. Ou: a Princesa Isabel comeu nesse pires.
Triste é a sina de quem é pires na vida.
De quem nasceu para ser par, mas a existência lhe fez uno.

Quem poderá dizer seu destino?
Será vendido?
Ficará encalhado?

Ou algum gato mais desavisado passará por ali, esbarrando nele e levando-o ao chão?
Mil pedaços quebrados. Fragmentos de uma história que ninguém contou, perdendo-se entre paralelepípedos.