quarta-feira, 4 de abril de 2012

Careca

Licínio nasceu careca.

Nada de mais nascer careca, poderão argumentar os mais desavisados.
É verdade.
A beleza de um bebê está em, muitas das vezes, ele nascer careca, vermelho e sem dente.

Contudo, ele realmente nasceu careca e, com a passagem dos meses, que se acumularam em anos, não nasceram sequer alguns fiozinhos de cabelo.

Nada.
Nadica de nada.
Era só testa, sem um mísero fio de cabelo para lhe voar aos olhos. Era portador de uma testa obsessiva, lustrosa e fluorescente.

Pergunte a um homem se ele gosta de ser careca: a maioria esmagadora dirá um sonoro e retumbante ‘não’. Mesmo os que sobram podem não querer admitir, mas, lá no fundo de suas calvas generosas, dirão que a resposta também é um ruidoso e ressonante ‘não’!

Veja você, então: se é difícil para um homem adulto ser portador de um crânio desprovido de tufos capilares, imagine uma criança em formação, tendo que brincar com outros pequenos na escolinha, ir ao parque e participar das festinhas infantis, que sempre existiram e sempre existirão, para desespero de alguns pais.

Não há quem não se emocione com crianças, mas estes anjinhos que os Céus enviam podem muitas vezes se transformar em pestinhas a infernizar a vida de algum coleguinha. Hoje tem até nome científico para isso, o tal do bullying, mas no tempo de Licínio não tinha não, e o pobre sofria, porque criança careca não era muito frequente na aurora de sua vida.

Hoje criança desfila com penteado de tudo que é maneira: os últimos dos moicanos, pajens, Mauricinhos etc., etc., etc.… Vai conforme a moda e o gosto do freguês.

Mas no tempo dele não era assim que a banda tocava. Todas as crianças deveriam ter cabelos comportados e cortados conforme mandavam os bons modos e costumes.

Menino de cabelo grande?
Nem pensar!
Menina de cabelo curto?
Fora de cogitação!
Com isso, o pobrezinho do Licínio não se encaixava em nenhuma das regras.

O pior era que em sua família todos tinham uma vasta cabeleira, homens, mulheres, crianças e velhos. Da parte tanto da mãe como do pai nenhum careca se via nas reuniões familiares. Só ele é que sofria do mal da ‘carequice’ na família.

Com isso, as crianças da própria família começaram a lhe dar os mais terríveis apelidos, que o constrangiam e irritavam: aeroporto de mosquito, pouca telha, bola de sinuca, cabeça de ovo – só para lembrar alguns.

Como sofria!
'Tadinho dele!, era o que diziam as almas caridosas.

Me dá um medo de gente assim… nem é bom falar! Gente que começa a frase dizendo que o outro é 'tadinho… sei não… este é um tipo de compaixão que humilha, e gente que tem prazer em humilhar o outro, sei não… pode até se revestir de cristão, mas na verdade…

Bem, voltemos ao coitado… quer dizer, voltemos a sua careca lustrosa, que começou desde que nasceu e o acompanhou quando chegou à puberdade e juventude.

Nos bailinhos… hiiiiiiiiii… era um desacerto, porque nenhuma garota, por mais mal-ajambrada, queria dançar com a criatura.

Corria à boca pequena que Licínio tinha uma doença contagiosa no couro cabeludo.

Esclareço desde já que tudo não passava de fofoca. Nenhum médico, especialista, pai de santo, padre ou pastor diagnosticaram qualquer problema físico que pudesse gerar a falta de cabelos, muito menos a presença de qualquer tipo de doença contagiosa.

Teve um psicólogo, muito renomado em sua época, que disse que seu problema poderia ser de ordem emocional.

Não descarto esta possibilidade, nós, seres humanos, somos um feixe enorme de emoções, certo? Mas acho que também há um pouco de exagero, porque, afinal de contas, pode ter sido apenas um karma (ou destino ou então má sorte…) que ele teria que viver, sei lá!

O que sei é que Licínio chegou à juventude e só deu seu primeiro beijo aos vinte e sete anos.
Imagine você! Um virgem!
Sim, porque nem as prostitutas aceitavam sua companhia, com medo de pegar a decantada doença que a rádio corredor tratou de anunciar para toda a cidade. Elas aceitavam pegar sífilis, gonorreia, mas ficar careca, ah, isso não!

Nem cantar perto dele o famigerado refrão “É dos carecas que elas gostam mais” se podia. Licínio logo dizia, revoltado, para quem quisesse ouvir:

– Mentira!

Também, pensa bem, ele comeu a vida inteira o pão que o diabo amassou por três dias! Então era natural o tom de revolta.

Mas quem pensa que sua vida começou a melhorar, a se normalizar, após o primeiro beijo da amada, pode perder a esperança. Licínio beijou e, logo em seguida, já tratou meio de casar com a única moça que lhe aceitou os afagos pueris.

Carminha era uns cinco anos mais velha (na verdade, oito; mas ela diminuía a idade entre os familiares), não era bonita, mas também não era feia. Era comum. Muito comum. Extremamente comum. Um tanto quanto seca no trato, é bem verdade. Mas o enamorado não se importou.

Licínio mal sabia a fria em que estava entrando. Com medo de ficar sozinho, acabou se casando com a primeira que apareceu, literalmente, e que se mostrou uma megera que mais parecia a união de todas as madrastas das histórias infantis. Desde que pôs a aliança no dedo, em frente a padre e juiz, ela fez da vida de Licínio um pequeno inferno, humilhando-o de todas as maneiras.

Desculpe o palavreado, mas era ela quem “colocava o pau” em cima da mesa, mandava e desmandava em casa e na vida do infeliz. Como sofreu, o bendito!

Ela o fazia de gato e sapato, não importando se tinha gente perto ou não. Já na lua de mel, a recém-casada botou suas manguinhas de fora. Conta-se à boca pequena que Carminha só esperou a aliança no dedo para mostrar como era realmente o seu caráter. Dizem também as más línguas que ela já não era menina-moça e que se casou com ele só por medo de ficar para titia, porque, convenhamos, idade ela já tinha.

Quando chegou o primeiro e único filho, a situação já tinha piorado muito. Ela só cumpriu o que mandavam os bons costumes do tempo: mulher tinha que casar e gerar, pelo menos, um filho. Ser mãe amantíssima era o que mais lhe convinha, e Carminha apenas utilizou o pobre para que seu objetivo de vida se concretizasse.

Agora, veja você, além de ser careca num tempo em que os carecas não estavam na moda nem nada, ainda tinha que aguentar a esposa megera e o insuportável filho. Que via crucis, não é mesmo? Sim, porque Carminha casou na verdade com o filho.

Era uma agarração para cá, uma agarração para lá, que só Freud explica.
Nem Jung explica, nem Jung!

O garoto recebeu o nome de Eusébio. Eusebiozinho, como era chamado por todos. O diminutivo já demonstra a falta de caráter da criatura. Nem sempre o diminutivo quer dizer falta de caráter, mas no caso dele era. Era alguém menor, com o ego inflado graças à figura materna.

- Graças a Deus - dizia Carminha em alto e bom som para quem quisesse ouvir - Eusebiozinho tem uma vasta cabeleira e não é careca como o imprestável do pai - clamava, humilhando ainda mais o marido.

Era ou não um inferno a vida do infeliz?
Pois é.
E comparada ao inferno em que vivia, a ‘carequice’ às vezes até era esquecida.

Quer dizer, só um pouco. Porque, na verdade, Licínio, sempre que se via no espelho ou tinha sua imagem refletida em algum lugar, lembrava-se do seu grande infortúnio e que toda desgraça acontecida em sua existência tinha o selo da ‘carequice’ a lhe imputar a falta de cabelos.

E assim os anos foram passando, passando… passando… passando… Licínio se acomodou com as humilhações no sacrossanto lar e com a vidinha sem sal no trabalho; virou aquele homem bonachão, funcionário público de baixo escalão, que ia da casa para o trabalho e do trabalho para casa, usava pijama e chinelas e via pela TV uma vida que nunca teve e que nunca teria.

Certo dia, já com idade avançada, morreu dormindo em frente ao aparelho de televisão. Carminha e o filho sequer choraram, afinal se livraram do traste do imprestável.

Seu enterro se deu numa tarde fria e chuvosa, e apenas a mulher, o filho e meia dúzia de parentes distantes e vizinhos apareceram para acompanhar o corpo até sua última morada.

Contudo, um fato estranho aconteceu tempos depois. Sobre seu túmulo nasceu um pé de milho, apenas um pé. Um único e exclusivo pé. A espiga era muito pequena, raquítica mesmo, mas o cabelo do milho era grande, vistoso, parecendo uma trança de Rapunzel.

Um exagero, diziam alguns.
O administrador do cemitério mandou cortá-lo umas três vezes, mas o pé de milho sempre voltava a crescer do mesmo jeito, e o cabelo se tornava lustroso, forte, encorpado.
Uma belezura!

Tempos depois, começou a ocorrer uma romaria ao seu túmulo. Desde o momento em que um homem começou a tomar o chá daquele cabelo de milho, os próprios cabelos começaram a crescer e as entradas que tinha pronunciadas sumiram completamente. Imagine a confusão que houve no cemitério quando a notícia se espalhou!

Pois é. O que teve de homem querendo um chumaço de cabelo do moribundo careca não está no gibi!
Virou santo para o povo: São Licínio, o protetor dos calvos e carecas.

Amém!