sábado, 17 de março de 2012

Aeroporto

A claridade surge no horizonte, e Valdomiro ainda se encontra no aeroporto, esperando o voo.

É sexta-feira de Carnaval, e ele se junta a um elenco de rostos. Seu olhar vagueia pelo salão, procurando distrair-se. Algumas pessoas estão deitadas no chão, outras nas cadeiras cochilam.

Um homem e uma mulher parecem recém-casados, tal a ‘melação’. Valdomiro lembra-se da ‘patroa’ em casa e de que no início do namoro e do casamento era aquela mesma paixão, aquela efervescência de hormônios; talvez fosse até mais intensa do que o casal que agora espia. Mas o tempo passou, o mato cresceu, e a rotina, a presença das crianças e depois dos netos chegados precocemente fizeram o fogo se extinguir, deixando só um espectro do que fora.

Valdomiro olha para o relógio com impaciência. Cada ponteiro caminha tão lentamente, que parece não se mexer. Uma lentidão de operários em greve branca.

Uma mulher senta-se do seu lado. Ela empurra um carrinho de bebê de dois lugares, e os gêmeos choram desafinadamente. Valdomiro suspira porque prevê que o dia será longo, compassivamente longo.

O garotinho de verde faz birra, não querendo a chupeta que a mãe tenta lhe impingir, enquanto o outro, de azul, bate as perninhas, chora e berra ainda mais alto. Ambos parecem estar num concurso para medir quem ultrapassa o limite de decibéis que os ouvidos humanos conseguem aguentar.

Ele pensa em tomar um cafezinho para ver se fica mais animado, mas, dando mostras de sua presença, a úlcera expele fogo, tal qual uma dragoa com TPM, e ele desiste da ideia.

Uma velhota, com acompanhante, senta-se à sua esquerda. A idosa não para de falar um só minuto, e a outra, provavelmente a empregada, olha placidamente em volta. Deve estar acostumada ao falatório de metralhadora giratória da patroa. O pior é que a voz da anciã é horrível, fina, penetrando nos ouvidos como um punhal estreito, frio e afiado.

Valdomiro não aguenta. Está no meio de dois fogos cruzados. Levanta-se e busca distração na loja de revistas e jornais. Procura o setor dos jornais, mas seu olhar é atraído pelas mulheres peladas das revistas masculinas.

Cada pose!

No tempo em que era moleque, ver mulher pelada era uma dificuldade. Tinha todo um esquema para comprar as revistinhas proibidas de Carlos Zéfiro. Teve uma vez em que ele e seu primo Betinho encontraram nas revistas de sua mãe um anúncio de sutiã e meias no qual as modelos – nem eram mulheres reais, mas desenhos – usavam espartilhos e meias sete oitavos. Foi o suficiente para ambos passarem horas e horas no banheiro.

Hoje tudo é diferente. As fotos mostram cada posição que parece ter sido feita durante uma consulta de médico de senhoras!

“Os tempos são outros”, pensa, conformado.

Compra o jornal e uma revistinha de palavras cruzadas. Não tem coragem de adquirir as revistas masculinas. Afinal, chegar em casa com aquelas publicações despertará a indignação de Isaura, sua ‘patroa’. O ciúme já não lhe visitava a vida matrimonial havia algumas décadas, mas, sabe como é, melhor não facilitar.

Além do mais, ele não tem mais idade para ficar levando revistas escondido para o banheiro, não cai bem a um senhor de sua faixa etária, por isso desistiu de concretizar a compra. Mas que ficou tentado, ah, isso ficou!

Procura um lugar para sentar-se, bem longe dos gêmeos e da matraca giratória da velhinha. O aeroporto está cheio, mas encontra um assento vago perto dos banheiros. Da porta do lavabo feminino sai uma mulher super alta. Um mulherão de mais de metro e noventa. Valdomiro sabe que existem mulheres altas, cada vez mais isso é uma realidade, mas ele fica na dúvida.

“Será mulher mesmo?” – questiona-se.

Roupa chamativa, muito maquiada, cílios que devem ter sido comprados em alguma loja especializada em maquiagem feminina para o Carnaval, um perfume forte que lhe causa uma crise de espirros, Valdomiro questiona-se mais uma vez se realmente é mulher a criatura. Na bolsa que ela usa dá para carregar o bairro de Vila Isabel inteiro e ainda sobra espaço para o Parque do Aterro do Flamengo.

“Muito exagero, muito exagero para ser uma mulher”, argumenta Valdomiro consigo mesmo.

Mas, como hoje tudo é normal, ele abre a revistinha de palavras cruzadas, procura uma caneta no bolso interno do paletó e começa a buscar as palavras certas para preencher aqueles quadradinhos.

Valdomiro gosta muito de fazer palavras cruzadas. Dizem os médicos que isso é bom para pessoas que têm a sua idade, mas não é por isso que ele faz o joguinho. É por prazer mesmo, e não para evitar aquelas doenças que afetam o cérebro e que acompanham a velhice.

Durante algum tempo, Valdomiro não prestou atenção ao burburinho natural do aeroporto, de tão concentrado que estava em encontrar as palavras certas; às vezes ele olha atrás da revista, para conferir se a sentença em que pensou estava correta; ou então espia quando não sabe mesmo que vocábulo deve escrever. Isaura diz que ele trapaceia no jogo.

– Mentira! Calúnia! – nega, indignado, sempre, para quem quiser ouvir; nunca deixou de olhar as respostas de vez em quando, porém agora sempre faz isso escondido dos olhares da esposa e dos outros.

Uma voz de mulher de aeroporto se ouve nos alto-falantes. Valdomiro sempre teve vontade de conhecer aquela voz, que dá a impressão de acompanhar uma figura feminina muito bonita.

“Deve ser um tribufu!” – pensa – “Quem vê cara não vê coração, já dizia minha vó Dorinda”, lembra-se.

A voz diz que o check-in está sendo iniciado e que os passageiros devem encaminhar-se ao balcão da companhia aérea.

Quando Valdomiro faz o movimento de levantar-se da cadeira, parece que uma manada de elefantes é liberada. A empregada arrasta a velha pela mão ao mesmo tempo em que tenta levar as duas malas; a mãe com o carrinho dos gêmeos grita que tem prioridade, o casal recém-casado vai atropelando qualquer um à sua frente. Desespero total.

Valdomiro é levado naquela onda e nem sabe como sair do tumulto. A asma ataca e a úlcera dá pinotes de cavalo xucro. Ele é arrastado pela multidão insana. Ainda tenta resistir, mas é espremido entre um homenzarrão e um rapazote. O homem, que mais parece um armário, de tão largo, impede a visão de Valdomiro. Já o rapaz parece ter saído de um filme de terror, destes atuais, tal a quantidade de piercings e tatuagens que carrega, além do cabelo arrepiado, pintado de preto e roxo.

Outro homem, pesando uns cento e oitenta, pisa no pé de Valdomiro, justamente naquele pé em que joanete e unha encravada fazem parceria de Batman e Robin. Valdomiro solta um grito de dor, mas no meio daquela manada destrambelhada não é ouvido e o seu urro se perde no meio do tumulto.

Quando consegue chegar ao balcão, Valdomiro se sente triturado por uma máquina de moer carne: camisa fora da calça, cabelo despenteado, rosto vermelho, olho rútilo, boca seca como se tivesse atravessado três desertos, e mancando devido à pisada no joanete e na unha encravada dada pelo gordo.

Valdomiro pensa: “Agora, sim! Vou sair desta loucura. No avião tudo se resolverá, e logo estarei em casa!”.

De posse dos documentos necessários para entrar no avião, Valdomiro caminha pela passarela que leva ao transporte, que é mais pesado que o ar, com a certeza de que o pior já passou.

Procura seu lugar na fileira e constata que não há ninguém dos lados direito e esquerdo. Valdomiro suspira de felicidade, senta-se na poltrona estreita e fecha os olhos, esperando o momento em que o aeroplano (sim, no tempo dele avião era chamado de aeroplano) decolará.

A temperatura ambiente é agradável, e Valdomiro quase cochila, mas é acordado com um toque insistente no ombro. Abre os olhos e depara-se com o rosto vermelho e redondo do homem de cento e oitenta quilos que havia pisado ao mesmo tempo no seu joanete e na unha encravada.

E pensa: “Oh, não!”.

Sim, desgraça pouca é bobagem, Valdomiro! Acredite.
O gordo senta-se à sua direita, do lado da janelinha, e Valdomiro vê-se espremido entre o homem e sua senhora, tão gorda quanto ele.

É Carnaval, e Valdomiro sente as agruras da carne.

terça-feira, 13 de março de 2012

Carnaval

De repente, a sala foi invadida de fantasias.

Eram baianas, Supermans, Colombinas e Carlitos de diversas cores. Cada um buscava remédio para sanar suas próprias dores no Pronto-Socorro. Médicos e enfermeiras mostraram-se perdidos naquela confusão inesperada de paetês e serpentinas.

Uma baiana em crise de nervos, histericamente desesperada, gritava pela perda de seu tabuleiro, e outras, solidárias, choravam junto, tal um coro grego.

Dois Supermans em coma alcoólico precisavam, com urgência, tomar soro glicosado.

Sete Colombinas, nas cores do arco-íris, zanzavam para cima e para baixo. A van em que elas estavam tinha capotado, mas (graças a Deus!) ninguém se feriu gravemente. Apenas sofreram escoriações diversas, mas como nenhum Arlequim as acompanhasse, batiam as cabeças uma às outras, mais parecendo baratas tontas.

Um Carlito alto, magro e negro apoiava outro Carlito, baixo, gordo e branco, que tinha ferido o pé numa garrafa quebrada e sentia os cacos de vidros tragicamente penetrarem sua pele.

Uma mulher titanicamente gorda era carregada – com dificuldade – por cinco homens parrudos e um anão. A maquiagem dos olhos pintados em branco e preto derretia gota a gota, formando lágrimas cinzentas a escorrer sobre a papada flácida, até se estilhaçarem no chão. De sua boca saia uma gosma amarelada, como se tivesse comido pão com ovo mole.

Um velho trajando fralda de bebê gigante e de toquinha de babadinho mal respirava, em crise asmática. A chupeta do neném quem segurava era uma jovem fantasiada de babá sexy, que tentava consolá-lo, enquanto exigia que a enfermeira o atendesse, dando prioridade aos maiores de sessenta e cinco anos, conforme determina a lei.

Ainda não era meia-noite, e a sala do Pronto-Socorro já estava empilhada de fantasias, dores e aflições.

– Será uma longa noite adentro – profetizou, sentado num canto perto da porta do banheiro, um Pierrô roto, agarrado à sua garrafa.