sexta-feira, 23 de julho de 2010

Mera coincidência/Série Adaptação

1 – INT./DIA/CAPELA MORTUÁRIA

A história se passa em 1950. No caixão, detalhe do rosto de Carapebus. O defunto aparenta ter 40 anos. Uma lágrima desliza do olho esquerdo do defunto , interruptamente. Estão no local seis pessoas: Cidinha, 35 anos, morena, que chora compulsivamente; Eusébio, branco, 45 anos, que a conforta; Maria Gertrudes, loira, 40 anos; duas crianças, uma menina de sete anos e um menino de oito anos; Raul Alfredo, 55 anos, branco. As crianças correm de um lado pro outro.

RAUL ALFREDO
(Dá um suspiro)
Um grande homem, esse Carapebus...

MARIA GERTRUDES
(Espantada)
Francamente! Justo você me dizendo isso! Ontem mesmo eu ouvi quando falou que Carapebus era um imprestável, que não servia pra nada! Que tinha dado o golpe do baú casando com a Hermengarda!

RAUL ALFREDO
(Irônico)
Mas você não sabe que basta morrer para alcançar a santidade?

MARIA GERTRUDES
(Falando para o filho)
Para com isso, Joãozinho! Vem cá, menino!


CENA 2 – INT./DIA/CAPELA MORTUÁRIA
Cidinha caminha em direção ao caixão. Eusébio tenta segurar Cidinha, sem sucesso.

CIDINHA
(Chora compulsivamente)
Não, não! Você não podia ter me deixado...

EUSÉBIO
Para Cidinha... Daqui a pouco a viúva chega e nem é bom pensar... (olha para Maria Gertrudes e Raul Alfredo e sorri sem graça)

CORTA PARA

Maria Gertrudes conversa com Raul Alfredo enquanto as crianças correm pela capela.

MARIA GERTRUDES
(Cochicha)
Cadê a viúva?

RAUL ALFREDO
(Baixinho)
Ainda não chegou. Dizem que 'tá muito abatida.

MARIA GERTRUDES
(Irônica)
Pois sim! Depois de enterrar quatro, já tem know-how suficiente. Tira isso com os pés nas costas, isso sim.

RAUL ALFREDO
(Sussurra)
Fala baixo que os outros podem ouvir!

MARIA GERTRUDES
(Indignada e irritada)
Mas eu tô falando alguma mentira? Lá na Vila chamam Hermengarda
de viúva negra do Tatuapé, né não?!

RAUL ALFREDO
(Exasperado)
O que sei é que a sua língua é maior do que a sua boca, isso sim.

MARIA GERTRUDES
Ah, você diz isso porque... (interrompe e grita para a menina) Maria Emília, para de beliscar o seu irmão, para!


CENA 3 – INT.-EXT/DIA/PORTA DA CAPELA MORTUÁRIA
Cidinha e Eusébio caminham para o lado de fora da Capela Mortuária.
Cidinha é amparada por Eusébio na caminhada.

CIDINHA
(Chorando)
Minha vida acabou! O que será de mim? Como viverei sem Carapebus? Minha vida acabou!

EUSÉBIO
Se acalma, Cidinha. As pessoas estão olhando... Daqui a pouco a viúva chega e...

CIDINHA
(Exasperada)
Aquela bruxa! Aquela sanguessuga! Ninguém me tira da cabeça que foi ela que matou Carapebus. Ninguém me tira da cabeça. Ela tem o apelido de viúva negra não é à toa.

EUSÉBIO
Ninguém nunca descobriu nada, Cidinha. Por que ela mataria Carapebus ou qualquer dos outros maridos, hein?

CIDINHA
Sei lá. Dinheiro. Poder. Sabe-se lá o que vai numa mente de uma viúva negra! Lembra como morreu o primeiro marido? Aquele que era metido a fazer versos na Revista Almanaque Família, lembra?!

FUSÃO


FLASH –BACK/CENA 4 – INT./DIA/ESCRITÓRIO DA CASA DA HERMENGARDA
Primeiro marido de Hermengarda sentado em frente à escrivaninha. À sua volta, exemplares da Revista Almanaque da Família, dicionários e livros de poetas parnasianos. O Primeiro Marido é baixo, gordinho, cabelo caindo no olho e tem 30 anos. Barulho de porta se abrindo e passos caminhando pelo assoalho. Detalhe apenas de uma mão jovem e gorda colocando uma xícara com líquido fumegante ao lado do Primeiro Marido; ele não lhe dá muita atenção e diz distraído.

PRIMEIRO MARIDO
Ah, obrigada, Hermengarda.

Passos se afastando. O Primeiro Marido se concentra no que está escrevendo. Para um pouco, pensa. Murmura.

PRIMEIRO MARIDO
Flor... hum... flor...

Toma um gole do líquido da xícara fumegante. Olha para o papel e diz com entusiasmo.

PRIMEIRO MARIDO
Amor! (Escreve com cuidado a palavra o papel. Depois olha a página, dá um sorriso e tomba com a cabeça, morto.)

CORTA PARA

CENA 5 – EXT/DIA/PORTA DA CAPELA MORTUÁRIA
Eusébio tenta acalmar Cidinha, mas esta continua nervosa.

EUSÉBIO
Tsiu, Cidinha... (olha para os lados) alguém pode escutar você falando contra a dona Hermengarda. Ela é uma mulher muito rica e poderosa. Não mexa nesse vespeiro, não, minha amiga... A corda sempre arrebenta pelo lado mais fraco e VOCÊ é esse lado .

CIDINHA
(Indignada)
Mas você pensa que sou só EU que desconfio dela? Acha mesmo? Hum!


CENA 6 – INT/DIA/ CAPELA MORTUÁRIA

MARIA GERTRUDES
(Em tom de fofoca)
Você nunca achou estranha a forma como o segundo marido da dona Hermengarda morreu? Dizem que suas últimas palavras foram sobre um tal balancete... Não é estranho isso? Que balancete é esse, afinal?

RAUL ALFREDO
É, realmente, o Souza tinha saúde de ferro, era muito metódico, e sua morte causou muito espanto lá na firma de Secos e Molhados. Mas daí a dizer que a dona Hermengarda matou o marido a sangue frio já é outra coisa... Acho que tudo isso não passa de mera coincidência, apenas isso. Dona Hermengarda não seria capaz de um ato tal vil, tenho certeza.

FUSÃO

FLASH –BACK/CENA 7 – INT./DIA/CASA DA HERMENGARDA
Barulho de chave na fechadura, e a porta da frente da casa de Hermengarda se abre. Surge a figura de Souza. Um homem muito alto, muito magro. Nariz comprido e de óculos fundo de garrafa. Souza caminha silenciosamente até a sala, segurando uma pasta. Usa uma capa de chuva e carrega um guarda-chuva, além da pasta. Souza tira a capa, dobra-a com todo o cuidado e a coloca no encosto da cadeira. Tira o chapéu e o coloca, junto com o guarda-chuva, num armário daquele que vemos em filmes americanos. Senta numa poltrona de encosto alto, coloca a pasta nas pernas e puxa um cachimbo do paletó. Acende-o calmamente e, depois de dar uma longa tragada e diz: .

SOUZA
Hermengarda, minha filha. Já cheguei. (abre a pasta e quando ouve o som de passos para o que está fazendo)

Som de passos pesados caminhando e barulho de carrinho. Aparece o carrinho e duas mãos jovens e gordas empurrando-o. Detalhe nas mãos. Detalhe do carrinho: um bule com um líquido fumegante, uma xícara ricamente trabalhada e um pratinho com guloseimas. Souza sorri na direção de Hermengarda, serve-se do líquido fumegante, toma um gole, pega um bolinho e o come. Bebe com prazer o chá e com um sorriso de agradecimento fala para Hermengarda, que não aparece em cena.

SOUZA
Obrigada, minha filha. O chá está divino!

Detalhe do corpo da frente de Hermengarda. Não aparece seu rosto, só o vestido preto, com pequenas flores vermelhas e suas mãos gordas cruzadas na frente da barriga. Souza bebe mais um gole, sorri na direção de Hermengarda e deixa a xícara no carrinho. Pega a pasta e, quando vai tirar os papéis de dentro, olha espantado para o alto, como se tivesse sentindo uma dor, leva a mão à garganta e sussurra.

SOUZA
Hermengarda, minha bondosa Hermengarda. Só levo dessa vida uma tristeza. A de não ter podido fechar o balancete de 1922.

CORTA PARA


CENA 8 – EXT./DIA/PORTA DA CAPELA MORTUÁRIA
Cidinha e Eusébio fumam. Ela está mais calma. Dá uma baforada e diz mordaz.

CIDINHA
Lembra de como morreu o capitão Albernaz de Melo? Um homem como aquele, vendendo saúde por todos os poros! No dia em que morreu, encontrei-o na Academia Militar. O terceiro marido da Hermengarda era metido a fazer discursos e na ocasião ficou falando por mais de duas horas sobre o marechal Floriano Peixoto e Rui Barbosa. Ninguém aguentava mais aquele discurso enfadonho. Quando mais tarde fiquei sabendo de sua morte, levei um susto enorme. Saiu da academia, foi pra casa e catapoum! Esticou as canelas... Ninguém me tira da cabeça que foi coisa da bruxa.

FUSÃO

FLASH –BACK/CENA 9 – INT./DIA/COZINHA DA CASA DA HERMENGARDA
Capitão Albernaz de Melo sentado à mesa. Detalhe da mesa: uma sopeira com uma concha dentro, o prato do capitão está com restos de comida. Ele acabou de comer. Detalhe no prato: restos de feijoada e laranja. O capitão tem 50 anos, cabelos e barba grisalha. Ele veste uma farda do Exército e em frente a esta há um guardanapo grande servindo de babador. Limpa a boca com o guardanapo.

CAPITÃO
(Diz autoritário)
É só isso, Hermengarda?

Barulho de louça. Detalhe apenas de uma mão de uma mulher madura e gorda, que oferece a xícara com um líquido fumegante para o capitão. Ele pega a xícara e toma um gole. Olha na direção da mão, toma mais um gole, vira os olhos e cai com o rosto dentro do prato com restos de feijoada. Som de um suspiro feminino.

HERMENGARDA
(Diz com pesar, sem aparecer sua imagem)
Coitado! Mais um que morre logo depois de fazer o seguro de vida. (suspiro) 'Tadinho!

CORTA PARA

CENA 10 – EXT./DIA/PORTA DA CAPELA MORTUÁRIA
Eusébio mais uma vez tenta acalmar os ânimos de Cidinha, sem sucesso.

EUSÉBIO
Calma, Cidinha. O carro da dona Hermengarda está chegando. Vê se não vai fazer nenhum escândalo. Você não tem nenhuma prova. Tudo pode ter sido mera coincidência.

Comboio de carros pretos chega à Capela Mortuária. O carro preto mais luxuoso para em frente ao lugar onde está Eusébio e Cidinha. A porta se abre e aparece o detalhe de uma perna de mulher gorda e velha. Depois o detalhe do corpo da mulher obesa, que vai aparecendo aos poucos. Hermengarda é uma mulher imensa, com papadas e óculos de gatinho. Caminha altiva em direção à capela. Usa um vestido preto muito chique, com várias joias em ouro, diamantes e rubis. Hermengarda tem aparência de 60 anos.

CORTA PARA


CENA 11 – INT./DIA/CAPELA MORTUÁRIA
Hermengarda em frente ao caixão de Carapebus. Olha com superioridade para o morto. Uma lágrima escorre do olho esquerdo do defunto.

CORTA PARA

Maria Gertrudes sussurra para Raul Alfredo.

MARIA GERTRUDES
Quem será o próximo?

FIM

PS: Exercício feito em cima do conto de José Cândido de Carvalho Viúva em quatro maridos, que consta no livro Os mágicos municipais. O exercício fez parte do curso da Caixa Cultural do Rio de Janeiro, cujo tema foi Adaptação: a literatura no cinema, julho de 2010.