quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Natal

Eu me lembro muito bem de um Natal. Foi o primeiro Natal de que tive consciência ser Natal. A árvore de plástico com algodão intercalado entre as folhas era armada na sala de visitas, as bolas coloridas dependuradas buscavam reproduzir alguma árvore de novela que minha mãe assistia na TV.

Em todos os Natais lá em casa sempre teve rabanada. Meu pai era um grande aficionado pela guloseima e esperava o ano todo para comer a iguaria. Não adiantava fazer rabanada fora do Natal, ele não comia, não gostava.

Só o Natal era capaz de temperar com fantasia, esperança e amor aquele pão com leite, açúcar e canela em pó.

Eu me lembro muito bem desse Natal porque foi nele que ganhei um Ferrorama. Sempre me encantaram os trenzinhos que via nos filmes americanos. Vida de americano é uma coisa, vida de brasileiro é outra, mas o Papai Noel foi generoso naquele ano, e ganhei uma enorme caixa com trenzinhos, vagões e trilhos infinitos.

Eu me lembro muito bem do contentamento que senti. Naquele momento compreendi a alegria que meu pai tinha por ser Natal e poder comer rabanada. Meu trenzinho também veio temperado com fantasia, esperança e amor, e eu sorria, sorria, sorria na fé infantil de acreditar que nunca deixaria de sorrir.

Outros Natais vieram. Mas nunca mais um como aquele consegui viver. O trenzinho me acompanhou a infância inteira, mesmo depois de meu pai ter partido.

Eu cresci.
Tive alegrias, tive tristezas.
A vida seguiu, e hoje quando no Natal tem rabanada lá em casa penso no pai. Penso na sua alegria infantil e sinto saudades.

“Raiva de não ter trazido o passado guardado na algibeira”.
O poeta estava certo.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Jabuticabeira - Série Eu me lembro muito bem...

Eu me lembro muito bem de uma jabuticabeira que tinha no quintal do meu tio. Era uma árvore frondosa, de raízes profundas, copa alta, uma bela espécie, que era a alegria de todos nós, crianças.

Naquela jabuticabeira brinquei de Tarzan, aprendi a subir em árvore e fazer do balanço um belo trapézio. Foi lá que dei meu primeiro beijo, no vizinho do meu tio, de cujo nome já nem me lembro.

Contudo, eu me lembro muito bem do quanto aquela jabuticabeira ficava linda quando florescia, pintando o tronco inteiro com pequenas flores brancas, que depois caiam e faziam surgir jabuticabas doces como mel, como só a infância é capaz de produzir.

Como era bom colher cada fruta, chupando e me deliciando, até alcançar os frutos mais altos e mais doces. Doces como os sonhos e as despreocupações do meu mundo sem problemas e sem contas a pagar.

Hoje moro num apartamento perdido numa grande metrópole, mas trouxe minha infância guardada na algibeira: na sacada da sala, há um vaso de bonsai onde abrigo uma muda da jabuticabeira da casa do meu tio. A miniatura me traz lembranças e saudades armazenadas na memória.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Perfil de personagem para conto policial

DETETIVE – Horácio, um senhor de 64 anos que trabalha no Departamento de Direito Autoral da Biblioteca Nacional. Apesar de já ter tempo para se aposentar, não cogita a ideia. Tem uma filha que mora no exterior, com a qual não tem nenhum contato.

Viúvo, não tem parentes próximos. Mora na Rua do Catete, num apartamento de dois quartos, de frente, num prédio antigo. É um leitor voraz. É um dos responsáveis por ler documentos e cotejá-los, para assim autorizar, ou não, o direito autoral da obra. Tem forte faro para descobrir sucessos literários. Se ele diz que um texto será sucesso, invariavelmente a obra se torna best-seller.

Tem o aspecto de um senhor de terceira idade. É vaidoso, mas não ao extremo. Pinta os cabelos e, constantemente, vai ao podólogo; tem uma unha encravada, que com frequência o persegue e “dá sinal” toda vez que algum fato “diferente” ocorre. Lê muitos contos policiais. Não é gordo, mas tem uma pequena “saliência” abdominal. Usa um casaquinho leve, ao estilo antigo; a calça é social; e tem um canivete suíço que só usa para descascar as frutas que compra na rua.

CENÁRIO – O crime ocorrerá na área do Catete, Largo do Machado, início do Flamengo. O assassino não terá hora para atacar. Tem assassinado pessoas como mendigos, meninos de rua, porteiros, empregados, camelôs, balconistas. Foram assassinadas quatro pessoas pela manhã, três na hora do almoço, duas à tarde, e cinco à noite (início da madrugada). Das catorze vítimas, oito eram mulheres, quatro crianças e dois homens, sendo estes pessoas da terceira idade.

domingo, 25 de dezembro de 2011

Perfil de personagem para conto policial II

DETETIVE = Marina, uma adolescente que mora em Copacabana. Tem quinze anos e vive lendo, uma CDF. Tem um amigo, Roberto, que ela chama de Betinho, um ano mais novo, que é seu vizinho.

Anda pelo bairro com facilidade. Conhece cada pedacinho do local: becos, ruelas e personagens. É filha de um bancário e uma professora de História.

Não tem irmãos. Passa a maior parte do dia sozinha. Tem uma empregada, que vai ao apartamento duas vezes na semana. Ela e seu amigo Betinho percorrem o bairro de bicicleta. A dela tem cestinha na frente. É uma adolescente atípica. Não sai para a night, não tem galera para frequentar. É uma pessoa sozinha. Mariana não tem cara de nerd.

CENÁRIO = O bairro de Copacabana. São cinco assassinatos. As vítimas são sempre senhoras, entre sessenta e setenta e cinco anos, e todas recebem, dias antes, orquídeas lilases.

CRIMINOSO = É um criminoso metódico. Antes de matar, procura conhecer o perfil de cada vítima, detalhes insignificantes, como o que gosta, que remédio toma, se tem parentes etc. Mora em Botafogo. É um homem de quarenta e dois anos. Trabalha como arquivista de um grande jornal carioca. Está sempre por dentro das notícias e frequenta constantemente as Editorias de Cidades e Polícia do veículo de comunicação. É capaz de citar cada evento, com data, dia etc. Tem memória fotográfica.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Cumpadi Tonho

Cumpadi Tonho da Adorinda,

Qui Nosso Sinhô Jesuscristinho ti incontre na paz.
Eu tô meio assim, meio assado. Sabi como é, cumpadi, a veice chega dimodo qui a gente vai veiando e aí num tem nuvena pra Vigem qui dê conta dus osso.

Os minino tão bom, Milinha tá um tamanhão di moça-donzela, cê precisa espiá, os gavião já inté tão começando a rundar o sítio, mas cê cunhece o seu cumpadi, garrou mão da ispingada de chumbinho e uns três ou quatro saiu com o fiofó baliado.
Cumpadi, tô escrevinhando pro modi qui tu mi pidiu qui fosse lá falá com o cumpadi Zé pra ele modi dá nutíça pra vosmicê.

Eu fui, mas cê conheci o nosso cumpadi Zé, gradeceu o ricado e disse qui não caricia cê tê tanta preocupação, qui ele tá na paz di Nossa Sinhora das Dô.

O Paminondas continua o misminho di sempri, fedorento qui nem gambá, mas agente aperdoa pro modi qui ele é uma boa pessoa, tementi a Nosso Sinhô Jesuscristinho.
A Crô... bem, cumpadi, eu num caricia falá nada não, mas ela anda numa buniteza qui só espiando. Renovô, pintô de loro os cabelu pixaim e passa um batão virmeio qui nem romã. O ruge fica no meio das prega du rosto, mas ela acha buniteza, intão quem sou euzinha pra dizer qui não, né mermo, cumpadi?

Agora a Crô só anda di saia curta, aparicindo os cambito das perna. Tá bonita a danada, si ocê gosta de muié pintada assim e lora de famáça.

Teve um dia qui o meu marido ficô oiando pros cambito dela, mas aí eu dei biliscão e fui mi aqueixá com o padre Toninho da Pamonha. O padre inté falou com ele e agora ele zoia só cum o rabo do ói pros cambito da Crô.

É isso, cumpadi. O Zé tá bem, com saúde e amandou dizê qui não caricia pedi resposta pra carta qui vosmicê mandou qui eu tregasse prele.

O Zé Isidoro e o Chico da Gamela manda lembrança. O Nandu du Bodi, quando faiei di vosmicê, saiu de fininho, fininho, disconversando. É sim mermo esse vidão di meu Deus, né cumpadi?
A vó Ninha mandou dá a benção pro cê, viu? Lembraça pra cumadi.A bênção pros minino.De sua cumadi, Cremirda



* Este texto é uma parceria com o cumpadi Germano Ribeiro, que fez a história que está no link http://www.recantodasletras.com.br/humor/3378427Leia, comente, divulgue.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

De onde vem a história?

Ás vezes, ouço alguém perguntar para quem escreve:
“De onde vem a história?”
Penso que cada escritor/roteirista/dramaturgo tenha seu 'modus operandis'.

Já participei de um curso com o escritor Raimundo Carrero – ganhador de prêmios como o Jabuti e o da Associação Paulista de Críticos de Arte – e ele disse que suas ideias vinham das experiências que ele viveu, de lembranças de criança.

Por isso, acredito que possa haver escritores que façam uma escrita confessional. Não tem nada de mais isso.

Erico Veríssimo já disse: “A verdade, porém, é que ninguém se livra de suas próprias lembranças, nem de velhas idiossincrasias, malquerença e desejos recalcados. E, quando se trata dum romancista, essas impurezas mais tarde ou mais cedo acabam aparecendo na face ou na alma de seus personagens”.

Outro que disse algo semelhante foi Fellini: “Toda arte é autobiográfica; a pérola é a autobiografia da ostra”.

Contudo, tal possibilidade (como já disse uma roteirista amiga minha) pode gerar uma catarse pública disfarçada, porque aí, sim, a pessoa torna-se autor de uma única história.

Mas acredito que seja possível escrever de maneira pessoal e com qualidade. Mas o sucesso, com essa prática, é mais complicado.

Já disseram (não me lembro quem) que existem no mundo ficcional apenas seis ou sete temas e o que o resto é apenas uma repetição desses. Trabalho, pois, com esta possibilidade de alguém fazer da escrita uma confissão, apesar de concordar com a advertência de minha amiga de que o escritor pode se tornar autor de uma única história.

Eu, particularmente, não faço da minha escrita um ato de confissão porque o que adoro mesmo é criar, encontrar uma solução para a questão que levantei e a palavra certa para desenvolver o texto até o seu grande final.

Muitas vezes escrevo algo e os amigos e conhecidos ficam procurando meus sentimentos e vivências no que escrevi. Se ‘tô num dia bom, relevo. Se não, devo confessar que fico um pouco irritada, porque 90% do que escrevo não é autoral/pessoal.

Não sou o tipo de pessoa que tem amor pela adrenalina, por isso nunca tive o desejo de fazer rapel ou praticar esportes radicais. Não é a minha praia. Odeio salto alto, porque não quero ficar longe do chão.

Contudo, no campo da criação, adoro quando alguém me dá um tema (na faculdade tive vários) e sou desafiada a construir em cima desse, sem ter grandes envolvimentos emocionais com a questão. Porque o “barato” é criar. Claro que às vezes tenho mais facilidade, e outras vezes não, para desenvolver o tema dado.

Então, “de onde vem a história” da Carla?
Normalmente, minhas ideias vêm da observação da vida ou mesmo de uma coisa que entendi errado.

Darei um exemplo: o texto que fiz chamado O peso do nome, que tenho a ideia de roteirizar, surgiu de uma reportagem que ouvi. Estava fazendo o meu almoço na cozinha e deixei a televisão ligada. Escutei que algum atleta – até hoje não sei qual a modalidade dele – estava oferecendo sua vitória aos filhos Yasmim e Yago. Pensei:

- Nossa, que nome pesado para dar a um filho, Yago!

Logo em seguida pensei:

- Não, não é pesado, porque nem todo mundo sabe que Yago é a personificação da maldade em Otelo de Shakespeare.

E continuei raciocinando:
- Mas se fosse Caim…

E assim nasceu a história dos gêmeos idênticos Caim e Abel, que são do interior do Nordeste. O misbehavior de Caim é provar que ele não é o lado negro da dupla.

Outra vez, estava vendo a propaganda política (AMOOOOOO ver a propaganda política!!!!!) e entendi errado o nome do candidato. Era alguma coisa terminada em “ão”, tipo Macedão, Robertão… e entendi Carnegão. Aí pensei:

- Ninguém merece ter um apelido deste!

Depois que tive a certeza de que o cara não tinha o apelido de Carnegão (aparece o nome da criatura em legenda embaixo, né?), pensei:

- Como seria um cara que tivesse o apelido de Carnegão?

Daí surgiu a ideia para outra história, que batizei com o nome de Carnegão.

Sou apaixonada pela palavra e não preciso de muito esforço para sentar e escrever.

Também a prática da minha profissão – sou jornalista – faz com que não fique esperando a “inspiração baixar” para sentar e escrever.

Tenho dezoito anos de graduação e, desde o primeiro ano da faculdade – na verdade, já no primeiro semestre – consegui meu primeiro estágio/emprego. Por isso, são vinte e dois anos de prática.

O jornalista não tem essa de esperar ficar “inspirado”.

Ao longo desses vinte e dois anos, a minha maior experiência tem sido na editoria de política. Amo escrever sobre política e entrevistar os políticos, porque vejo que tudo não passa de um grande teatro: tem o mocinho, o vilão, o cenário, o poderoso chefão, as peripécias, os desencontros, as intrigas; tem de tudo, e esses papéis não são fixos: quem hoje é mocinho amanhã poderá transformar-se num grande vilão.

Pois então, sempre escrevi para a editoria de política. Então imagine-se a situação: meu editor me manda cobrir um “pega pra capar” na câmara ou na assembleia legislativa. Vou, presencio toda a situação, entrevisto os personagens envolvidos, depois chego à redação e digo para o meu chefe:

- Ah, hoje não ‘tô inspirada, não!

É lógico que ele me mandará falar com o departamento pessoal, porque estou na profissão errada. Jornalista tem que sentar e escrever, independente de ter dor de dente, de ter brigado com a sogra, de a mulher/marido ter dormido de calça jeans e/ou tudo isso junto e misturado. Claro que há dias em que o texto “flui” com mais facilidade.

Tive um amado, idolatrado, salve, salve, editor que dizia:
- Na nossa profissão, nem todo dia dá pra inventar a pólvora, mas todo dia tem que ter explosão.

Assim, com esta prática nas costas, eu sento e escrevo.
Não pensem que estou aqui me “gabando”, mas sim constatando um fato de quem atua na área, jornalista que trabalha em veículo diário.

Há quem argumente ainda que se você não encontra um vínculo emocional com a história, a tarefa poderá tornar-se insuportável.

No meu caso, não preciso ter envolvimento emocional com o tema, porque tenho o envolvimento emocional com a criação.

Acabei de escrever meu romance, é a história de um velho chamado Leocardio, que conta sua vida, relembrando o passado. Levei quatro anos, quase quatro anos e meio, para terminá-lo e tenho que confessar que Leocardio se tornou um grande amor de minha vida.

Sou apaixonada pelo velhinho. Sentar-me à frente do micro e escrever sua história sempre foi motivo de alegria. Ele se transformou numa “entidade” real. Se alguém me perguntar qual é o tipo de cueca que ele usa, saberei dizer. Bem sei que pode parecer bobeira, mas aquele papo de que o personagem toma forma de tal maneira que é ele que conduz a história, e não o escritor, é verdade.

Barthes tem uma explicação para isso: “Mais tarde, o personagem, que até então não passava de um nome, de um agente de uma ação, ganhou uma consistência psicológica, tornou-se um indivíduo, uma pessoa, em resumo, um ser plenamente constituído, mesmo quando nada fizesse, e, bem entendido, mesmo antes de agir, o personagem deixou de estar subordinado à ação, encarnou imediatamente a essência psicológica”.

Acredito que Leocardio tenha-se tornado esta presença real em minha vida porque a criação dele foi baseada em premissas filosóficas, para que pudesse construir sua essência psicológica.

Tive um professor amado, o Zé Carvalho, que uma vez disse: “Todo texto que fica é porque tem um princípio filosófico por trás”.
Concordo com o genial Zé.

Ninguém precisa ter noções de filosofia, saber, por exemplo, que para os sofistas a verdade é ilusória, múltipla, mutável e relativa. Que, para eles, a verdade pode mudar com o tempo, e o consenso a sobrepõe, já que ela em si não existe. O que há é um consenso entre as pessoas, e por isso é preciso levar em conta as circunstâncias históricas, culturais e sociais. E que cada sociedade em cada época terá seu consenso, não existindo a verdade/a essência das coisas.

Não é preciso saber que os sofistas apresentam o embrião da visão pragmática do significado. Por exemplo: a palavra 'rosa' é aquilo que se convencionou chamar de 'rosa'. Ela poderia chamar-se pedregulho, ‘aspissim’ ou mesmo ‘cronolongodia’, pois o significado está no uso dentro de um contexto, não existindo em cada palavra um significado a ela associado que seja a essência daquilo que está na realidade, havendo um abismo entre o real e a linguagem, no qual esta é soberana.

Ninguém precisa compreender que, na visão dos sofistas, a linguagem é um brinquedo, ela faz ser o que diz, ainda que os sofistas não neguem efeitos do real; antes, sugerem que a convicção sobre o real é feita na linguagem.

Também não é preciso conhecer que para os socráticos a verdade é real, única, universal, fixa e eterna. Que eles acreditam que o consenso se subordina à verdade, já que esse pode estar errado. Que as opiniões são somente opiniões, que não alcançam a verdade, a essência das coisas e que, por isso, para eles, a linguagem tem como objetivo ser um sistema de representação.

Sim, você não precisa saber nada disso para ler Romeu e Julieta e se emocionar com a cena do balcão em que Julieta assim declara:

JULIETA:
Oh, Romeu, Romeu! Por que és Romeu?
Renega teu pai e recusa teu nome;
Ou, se não quiseres, jura-me somente que me amas,
E não mais serei uma Capuleto.

ROMEU [à parte]:
Continuarei a ouvi-la ou devo falar-lhe agora?

JULIETA:
Somente teu nome é meu inimigo.
Tu és tu mesmo, sejas ou não um Montecchio.
Que é um Montecchio? Não é mão, nem pé,
Nem braço, nem rosto. Oh! Sê qualquer outro nome
Pertencente a um homem.
Que há em um nome? O que chamamos rosa
Com qualquer outro nome exalaria o mesmo perfume.
Assim, Romeu, se Romeu não se chamasse,
Conservaria essa cara perfeição que possui
Sem o rótulo. Romeu, despoja-te de teu nome;
E pelo teu nome, que não faz parte de ti, toma-me toda inteira!

Reafirmo: ninguém precisa saber da esgrima intelectual entre sofistas e socráticos para apreciar esse texto. Mesmo sem saber nada disso, a pessoa poderá dizer:

- Soberbo! Maravilhoso!

Agora se souber, continuará dizendo:

- Soberbo! Maravilhoso! Esse tal de Shakespeare é realmente O cara!

Não sei se minha história do Leocardio ficará, como argumentou o Zé Carvalho, de que todo texto bom fica porque tem um fundo filosófico. Mas construí o meu personagem em cima de duas premissas, duas perguntas que fiz (e conforme aquela propaganda da TV que diz que o que move o mundo são as perguntas e não as respostas, tenho esperança de que meu texto fique).

Leocardio tem uma grande amiga, Mariinha, que diz que ele é um chuchu na vida: sem gosto, sem sal, sem tempero.

O nome de Leocardio surgiu quando esta personagem escrevia no seu diário a definição desse amigo de longa data. A definição de Mariinha ficou martelando em minha cabeça. Na mesma semana em que escrevi sobre ela, assisti a uma aula de Cultura Religiosa na PUC (todos os alunos têm que fazer essa matéria, independente da graduação que cursem) na qual a professora disse que o homem nasceu para encontrar Deus. Fiquei pensando:

- E quem não encontra Deus, como fica?

Afinal, a maioria das pessoas acredita em alguma coisa, mesmo que não seja nesse Deus constituído pela igreja. Existem pessoas que acreditam em Alá, Jeová, Buda, no Sol, na Lua, na Força Cósmica, no comunismo, no socialismo ou mesmo na força do homem. Mas acreditam. E quem não acredita em nada? Por que alguém se tornaria um chuchu na vida?

Em cima dessas duas premissas desenvolvi a história do Leocardio. O romance está pronto e são quase duzentas páginas. O tempo dirá se a história ficará ou não. Como já disse, tenho esperança.
Aí alguém poderá argumentar:

- Mas você está envolvida emocionalmente com a história que criou.

Sim, porque fiquei instigada com as duas perguntas que me fiz. Contudo, torno a dizer: meu primeiro envolvimento emocional é com a criação; o envolvimento com o tema se torna secundário, ele pode surgir (como neste caso, já que as perguntas são instigantes), ou não.

E você? De onde vem a sua história?

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Orelha

Jurandir nasceu sem a orelha esquerda. Isso fez com que desde moleque deixasse o cabelo mais longo do que os outros garotos. No tempo dele, não era comum menino ter cabelo comprido, mas Jurandir se conformava porque era melhor a gozação dos guris do que todos saberem da falta do órgão da audição.

Quando algum adulto perguntava o porquê do cabelo maior do que os outros, logo dizia que era promessa da mãe, que tinha morrido. O adulto anuía com a cabeça, como se compreendesse tudo, e o deixava em paz.

Mentira dele, é claro.
A pobre da mulher sequer teve tempo de dizer qualquer coisa, pois Jurandir mal acabou de nascer, sua genitora bateu as botas, indo desta para uma vida melhor, conforme dizem os antigos. Jurandir não acredita em vida melhor depois da morte, mas…

Bem, mas não era sobre isso que estava contando, e sim da falta da orelha esquerda do dito cujo: apesar de ter somente uma orelha, não havia no mundo quem escutasse melhor. Nunca houve na história deste país e jamais haverá outro que ouça tão bem quanto Jurandir.

Sabe aqueles cachorros de raça, que nascem pela mistura de um bravo com outro “ainda muito mais pior de ruim” e que faz nascer filhotes de raça pura? Pois é. Jurandir era assim. Quer dizer… não vá pensar que Jurandir fosse um cachorro.

Não, não é isso.
O que estou tentando explicar é que sua audição era supimpa. Se um cão desses é capaz de ouvir o tique-taque de um relógio numa noite estrelada a um quilômetro de distância, Jurandir era capaz de ouvir o mesmo barulho com dez quilômetros.

Não, não é mentira, não.
Eu juro pra você.
Juro mesmo.
Seu ouvido era tão potente, que parecia uma orelha biônica.

Teve uma vez que ele escutou dois malandros planejando roubar uma velhinha da Rua Barbosa Lima. Não é que Jurandir escutou e tratou de salvar a anciã dos pilantras? Digo e repito: audição como a de Jurandir nunca vi ou ouvi falar. E duvido que alguém possa garantir que outro tenha orelha mais potente do que a dele. Tenho certeza de que, se tivesse nascido americano, iria logo parar naquelas polícias deles lá, igual aos filmes que passam na TV.

Certa vez Jurandir encontrou uma menina muito bonitinha, de olhos grandes e sorriso fácil. Seu nome era Rosa, Rosinha para a maioria das pessoas que a conhecia. O jovem mancebo (perdoe-me a redundância) ficou encantado com tanta singeleza e belezura.

Rosinha só tinha um pequeno defeito: sua risada. Era capaz de rir fininho e estridente, uma risadinha comprida, como se fosse nadador olímpico, que não precisa tomar o ar e pode cruzar a piscina quase sem tomar fôlego. Aquilo calava (ou melhor, gritava) fundo no ouvido biônico de Jurandir. Realmente, era um desarranjo quando a amada ficava alegrinha.

Jurandir não queria fazer a amada chorar, mas também era impossível conviver com tamanha agressão ao seu potente ouvido. Resultado: o namoro com Rosinha foi para o beleléu.

Jurandir ficou um pouco chateado, afinal, mal de amor é um mal pesado. Mas o tempo passou, o mato cresceu, e o mancebo levou sua vidinha de sempre.

Aí um dia ele encontrou Isaura, uma mulata com um belo par de seios e unhas grandes. Parecia uma tigresa. Só que outra vez seus ouvidos foram agredidos. A criatura só vivia gritando, falava muito alto, e isso feria os tímpanos do seu pavilhão auricular (como você pode ver, hoje estou muito redundante).

Outra vez, o mesmo resultado: o romance não prosseguiu.

Mais uma vez Jurandir viu-se jogado ao vento, sem nenhum amor, sem poder receber ou dar nenhum cafuné.
Ô, vida!

Porém Jurandir, depois de lamber as feridas, resolveu investir em um novo amor, e a escolha pela paixão recaiu sobre Ruth, uma baita de uma loirona, uns trinta centímetros mais alta do que ele.

Só que não deu certo também.
Ruth parecia ser a mulher ideal para o incauto mancebo, mas na hora que abria a boca… Vixe! Parecia que a voz grossa de um retumbante trovão vibrava no ar.
Deu certo não, e ele mais uma vez saiu chamuscado.

Jurandir já estava vexado e achando que nunca encontraria uma amada para compartilhar a vida.

Mas aí, um dia, assim de repente, como de repente deve ser todo grande amor que aparece na vida da gente, Jurandir encontrou Maria Celeste.

Foi realmente um encontro planejado no céu, porque a menina era de uma delicadeza só: falava baixinho, olhos no chão, um primor.

Foi amor na primeira olhada, dele para com ela e dela para com ele. Bonito de se ver um amor assim. E o melhor de tudo: o ouvido de Jurandir não era agredido.
Maria parecia realmente ter caído da abóbada celeste direitinho pros braços do jovem mancebo.

Quando a viu, Jurandir logo tratou meio de casar e montar moradia com a guria. Nem quis conhecer a família da amada, que morava numa outra cidade. Foi conhecer a trupe de sogros, cunhados e cunhadas no dia do casório. O apaixonado estava tão aflito com a possibilidade – remota – de perder Maria Celeste, que tratou mão de ficar na frente do juiz e do padre logo, oficializando o amor.

O casório foi uma beleza. Dava gosto de ver Maria Celeste trajando um singelo vestido branco e o mancebo, todo garboso, esperando a amada no altar. Não teve quem não marejasse os olhos, ainda que discretamente.

Foi uma bela reunião, mas teve um contraponto: foi ali que Jurandir descobriu que a sogra tinha uma voz horrivelmente horripilante. Dona Carmencita era a junção das vozes de todas as namoradas que teve antes de encontrar sua Maria Celeste. A risada era fininha como a da Rosinha; falava alto e gritado como Isaura e quando abria a boca parecia um trovão retumbando como Ruth.

Pois é, o menino Cupido quando flecha, flecha, mas sempre mostra o tanto de ironia e sarcasmo que é capaz de aprontar.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Marvada sudade

O sor cresce, amadurece. A vida continua, e cumadi Gertrudi tá ali com os zoio di onti. Dia trás dia sua dor se lastra no corpanzim e cada tiquinho é preenchido com uma marvada sudade.

Sudade do desgraçado do cumpadi, qui se enrabou com uma mulata sestrosa e qui fugiu di casa pra modi muntá moradia com a pecadora di zoio verdi qui nem beija-fló.

Os minino tão di um jeito só, jogado no quintá, sem hora di banho, sem hora di cumê, sem hora di drumi.

Eu sabia qui num ia dá boa coisa não a chegada da mulata, muita boniteza pra ficá nesse fim di mundo di meu Deus sem rumá confusão.

Cumadi inté parece difunto, desses qui só pera a morte torizá pra modi morrer. Cara chupada, amarela di tanto ficá deitada na cama sem vê sor. Zoios desbrilhado, mãos qui balança tanto qui deixa cair tudo qui tenta pegá. Uma baba desce dos canto da boca das vez qui começa alembrar do finando qui num morreu. Uma lamentação só, dá dó. Num carecia disso não, minha cumadi.

Mas é como diz os mais veio: “Mar di amô é fogo qui arde sem vosmicê vê”.

Nem drumi a criatura num é capaz. Quando consegue, é só um tiquinho di tempo, e mesmo assim é sono alertado, pronto pra modi cordá carqué mumento.

Mar di amô é o pior dos mar, e eu boto preocupação com os minino, isso sim. Modi qui eles vão ficá caso cumadi braçá mermo a morti? Uma cambada di minino, um trás do otro fazendo escadinha, corre no quintá sem a mão firme da cumadi, já qui o cumpadi caiu no vento.

Já mandei inté fazê novena pro Padim pra modi cumadi alevantar da cama e correr terreiro como fazia antes do cumpadi se enrabar com a mulata. Mas inté mumento Padim num deu jeito não.

Deve di tá ocupado com modi tendê o zotro, é mês do aniversário dele e capaz dele tê qui tá trabaiando dubrado.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Em busca do tempo perdido (*)

Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo. Na casa do meu avô era comum que se dormisse com "as galinhas", como se diz hoje em dia. Naquele tempo não havia televisão ou qualquer outro entretenimento que levasse as crianças a deitarem-se mais tarde.

Acordávamos mal raiava o dia e corríamos para o curral. Tínhamos como tarefa ordenhar Miracema, a vaca leiteira premiada de vô Tonho. O que mais gostava era de tomar o leite acabado de sair de suas tetas. Quente, espumoso, uma delícia a escorrer goela baixo. Bons tempos, boas lembranças, fatos que não voltam mais, nem que se queira, mas que estão guardados na algibeira das lembranças.

Durante muito tempo, costumávamos almoçar às dez horas. Vó Lourdes sempre estava com a comida pronta, qualquer fosse o dia da semana, às nove e trinta. Os peões da fazenda levantavam cedo, esta era a justificativa que ela dava sempre que alguém da cidade se queixava que a comida poderia sair mais tarde. Costume de roça, de gente que acorda antes do galo e a que o povo da cidade não se acostuma de jeito nenhum.

Não me recordo de quando comecei a levantar tarde, acho que foi na época da boemia, quando o raiar do novo dia sempre me encontrava na rua ou na casa de alguma rapariga. Parece estranho, mas não sinto saudades desta época, e sim do acordar na casa de vô Tonho e vó Lourdes. Foram estes os melhores dias de minha vida. Dias em que o sol sempre brilhava, em que se comia fruta no pé, saboreando a juventude em gomos, deliciosamente.

(*) Texto inspirado no livro de Proust, Em busca do tempo perdido.

quinta-feira, 30 de junho de 2011

A saga de João Perseu - a trajetória de um herói

Vou contar-lhes a linda história de um herói muito corajoso que enfrentou monstros e poderosos para salvar sua amada mãe.

Era uma vez, em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama em um sem número de sistemas solares, havia uma fazenda onde morava Dânea, uma linda donzela cujo pai, senhor fazendeiro dos muito poderosos, não se conformava de não ter gerado nenhum menino-macho.

O coronel Acrísio, homem muito supersticioso, não conseguia tirar da cabeça a certeza de que foi praga de uma preta velha que lhe impediu de gerar um filho para lhe perpetuar o nome, nem que fosse um filho bastardo.

Em sua juventude, garoto cheio de poder e nenhum juízo, o jovem Acrísio expulsou das terras do seu pai uma feiticeira que era cega, mas enxergava como ninguém as verdades da vida. Foi ela quem sentenciou que, por mais mulheres que tivesse, nunca sairia de sua semente um garoto, porém sua filha geraria um neto que o mataria, vertendo seu sangue ao chão e amaldiçoando todas as gerações futuras, que viveriam sem honrar seu nome e memória.

No início, o jovem coronelzinho não deu muita atenção à imprecação da feiticeira-vidente, mas, com o passar dos anos e o desejo crescente de perpetuar seu nome para a história da humanidade, começou a ficar revoltado com a maldição. Queria ter alguém que levasse seu sangue e recebesse léguas e léguas de terra boa e produtiva sobre a qual reinar.

Então decidiu mudar o destino. Acrísio determinou que enquanto vivesse – e o coronel garantia a quem quisesse ouvir que viveria ainda muitos e muitos anos – a filha continuaria donzela. Após sua morte, poderia casar e gerar uma prole.

Os anos foram passando, passando e no acúmulo dos dias se transformaram em décadas. As funestas palavras da preta velha se concretizavam em sua vida e no seu coração.

Quando gerou sua primeira e única filha, o coronel decidiu aprisioná-la num convento construído às margens do Rio Amazonas, desses que se encontram longe de tudo e de todos, onde só se veem figuras femininas e o contato com homem é negado. O convento ficava perdido nos confins da terra, lá onde Judas perdeu as meias, porque as botas ele já tinha perdido vinte e cinco léguas antes. Para lá a jovem donzela foi levada e lá foi trancada, no meio de meia dúzia de velhas irmãs de caridade que tinham como voto não ter contato com nenhum homem; sequer padre era aceito naquela comunidade religiosa, para se ter uma ideia.

Dânea quando foi para o convento ainda não tinha completado cinco anos. Largou a família vertendo muita lágrima e sem entender o porquê da separação. Apesar do chororô, o pai manteve o pé firme e mandou a filha embora.

Durante todos os anos que se seguiram Acrísio dormiu o sono dos justos, certo de que morreria, como todo mundo morre, mas não pelas mãos do próprio neto, e de que seu nome seria honrado e reverenciada seria sua memória.

Mas é como dizem, o olho do dono é que engorda o gado. Uma vez ao ano Acrísio visitava a filha para ver se tudo corria bem, se ela continuava sem contato com nenhuma figura masculina que lhe pudesse “fazer mal” e embuchar. Por causa do grande donativo que enviava ao convento, Acrísio era o único humano do sexo masculino que tinha autorização de pisar o solo daquela comunidade religiosa. Isso ocorreu durante uma década.

Um dia, quando Dânea já tinha completado quinze anos, Acrísio foi visitá-la e com surpresa ouviu – durante os poucos minutos a que tinha direito de ficar junto com a filha – ao longe um choro de um bebê.

Como a única que tinha idade para procriar era sua filha, já que todas as outras mulheres da comunidade religiosa haviam passado há muito tempo dos sessenta anos, Acrísio não se conteve e num acesso de raiva adentrou o convento em busca do som daquele choro. Uma irmã de caridade balançava uma pequena trouxa, tentando acalmar a criança, que berrava a plenos pulmões.

Acrísio tomou o embrulho de seus braços e constatou que se tratava de um menino-macho, sim, senhor. Indignado e cheio de furor assassino, foi tomar satisfações com a filha e a madre-superiora que coordenava aquele local ermo.

Dânea explicou que, numa noite de São João, quando foi olhar as estrelas brilhantes do céu às margens do Rio Amazonas, uma chuva de ouro se fez presente e no meio dela apareceu um lindo rapaz, que a seduziu. Um jovem garboso que tinha o porte de um rei emprenhou a donzela. A madre superiora confirmou a história da filha de Acrísio, garantindo que nenhum homem tinha sido autorizado a entrar no convento e que ela acreditava nas histórias da região, que diziam que em noites de São João o boto-cor-de-rosa se transforma em um belo homem para seduzir as donzelas que moravam às margens do rio.

Não houve meio de fazer o coronel entender o destino da filha, que tinha entregado sua pureza ao rei dos botos encantados e lhe gerado um neto de origem divina. Acrísio tinha certeza de que algum homem sabichão havia engambelado sua filha, embuchando-a, isso sim.

Não houve pedido e clamor que fizessem Acrísio mudar de ideia. Ele tirou a filha do convento junto com o neto por ele amaldiçoado. Sem poder fazer mais nada, a madre superiora lamentou a partida da garota e também do donativo que gordamente recebia.
Acrísio resolveu levar a filha com o rebento para a própria fazenda, mas antes telegrafou ao seu capataz, dando-lhe algumas ordens para que quando chegasse em casa já estivesse tudo pronto.

O retorno foi lento, demorado, comprido, porque a pobre garota chorava e repetia sempre a mesma ladainha do boto-cor-de-rosa que havia surgido de uma chuva de ouro… A criança, sentindo o clima pesado, também chorava e se agitava, não dando sossego ao avô, que fingia não escutar nenhum dos dois, filha e neto.

Ao chegarem, mal pôs os pés nas terras do pai, Dânea viu uma imensa caixa na beira do rio que cortava a fazenda. Em vez de levar a filha e o neto para a sede do casarão, Acrísio e seus empregados levaram Dânea e o menino para dentro da caixa. Quando a jovem entendeu o que o pai queria fazer – jogá-la dentro das águas com seu filho para que ambos morressem – ainda tentou resistir, mas no final quem levou a melhor foi o pai, que mandou que a caixa fosse atirada ao rio.

Durante sete dias e sete noites a caixa foi levada pelo rio, seguindo seu destino: o mar. Durante sete dias e sete noites Dânea passou fome e só bebia a água da chuva de ouro que sempre caía de mansinho no início da manhã, no finalzinho da tarde e na alta madrugada. Seu filho, que recebera o nome de João Perseu, alimentava-se do leite materno e quanto mais ele sugava, mais força parecia dar à jovem mãe.

João Perseu nasceu para a glória, nasceu para resplandecer, para ser herói de seu povo e já mostrava sua força ao vencer morte em tão tenra idade.

Era madrugada e uma lua cheia enorme iluminava a praia da Ilha de Sérifo quando Dânea e o jovem herói chegaram à margem sãos e salvos, apesar de todos os entraves da longa jornada. A ilha ficava a poucos quilômetros da Praia de Itapema, em Santo Amaro da Purificação, na Bahia de Todos os Santos. Foi lá que o pescador Díctis de Logun-Edê encontrou, na beirinha da praia, a grande caixa trazida pela maré. O pescador, homem vivido nas águas dos mares e dos rios, levou um grande susto quando encontrou o enorme artefato, de cujo interior se ouvia o som de choro de criança. O pescador rogou ao seu orixá de frente, Logun-Edê, que o protegesse antes de ver o que realmente havia lá dentro. Com dificuldade, Díctis conseguiu retirar Dânea e seu pequeno filho de dentro do objeto.

Díctis de Logun-Edê assim que viu Dânea ficou fascinado com a beleza da jovem, porém quando viu o menino teve a certeza de que estava na frente de um grande guerreiro, desses que nasceram para guerrear todas as guerras, em nome de todos os orixás de África ou de fora dela. Viu dentro do olho do menininho que ele havia vindo ao mundo com uma missão: proteger todos de tudo que fosse ruim ou malvado.

Dânea, tão logo se viu salva, agradeceu aos céus por ela e por seu pequeno filho terem suportado a grande viagem e por terem também encontrado uma alma caridosa que os acolheu. Díctis de Logun-Edê levou mãe e filho para sua casa – que ficava a poucos metros – e os acolheu com carinho e respeito.

Dânea nada escondeu. Contou tudo o que aconteceu desde que tinha partido da casa do pai, sua chegada ao convento, a dificuldade de se adaptar àquele tipo de vida, que era muito espartana e rigorosa, a solidão, a tristeza e a saudade da família, a revolta por ser o pai tão supersticioso a ponto de ter mandado a própria filha embora, suas visitas apenas uma vez por ano. Contou também da noite estrelada em que se deixou engambelar pelo canto do boto-cor-de-rosa, a surpresa da gravidez.

Contou tudo, tudinho mesmo. Não escondeu uma vírgula, um ponto e vírgula, um travessão, um ponto final de sua história e, mesmo assim, a alma generosa de Díctis a aceitou, não a censurou, acolheu a ela e a João Perseu.

E assim aconteceu, Dânea e o pequeno foram acolhidos pelo coração generoso de Díctis de Logun-Edê em sua casa viviam, como uma família feliz e harmoniosa, sem temer o perigo do pai insano. Dânea ainda carregava um pedaço de medo do lado esquerdo do peito, medo de o pai desnaturado descobrir que ela e o filho estavam vivos e vir com malvadeza para o seu lado. Mas isso não aconteceu. Ninguém os importunou, e o menino crescia anonimamente, como deve ser a todo herói destinado à glória.

Tudo corria em perfeita paz, ou quase. Sempre que o meio-irmão de Díctis aparecia, Dânea se sentia incomodada pelos olhares cumpridos e melosos de Polidectes de Oxossi, um homem muito poderoso em Santo Amaro da Purificação.

Considerado o Rei da Agiotagem, conseguiu sua riqueza emprestando dinheiro a quem estivesse em dificuldade financeira. Polidectes também era ligado ao jogo do bicho e possuía várias bancas na cidade. Seu poder era lendário na região. João Perseu crescia e via o interesse do homem por sua mãe jovem e bonita.

Ele também crescia em boniteza e formosura, era alto e destemido como deve ser todo herói, por isso Polidectes de Oxossi não se atrevia a se aproximar de Dânea e tomá-la com violência.

No fundo, Polidectes não usava de violência porque tinha planos políticos: queria se lançar como vereador pela bancada do governo em Santo Amaro da Purificação nas próximas eleições. Assim, não podia facilitar fazendo algo que manchasse mais sua honra, uma vez que os adversários certamente já pegariam no seu pé por ter ligações com jogo do bicho e contravenção. Como, porém, não podiam provar nada – e quem conseguia desaparecia misteriosamente – Polidectes de Oxossi tentava seguir uma vida o mais próximo possível da ‘normalidade’ e dos bons costumes, não querendo queimar o próprio filme perante a sociedade.

Certa feita, João Perseu recebeu um convite para participar da comemoração do aniversário de cinquenta anos Polidectes de Oxossi. Seria uma grande festança no palácio que o Rei da Agiotagem havia mandado construir na Ilha de Sérifo. Díctis Logun-Edê e Dânea também foram convidados. A festa foi um grande acontecimento, e todos os puxa-sacos e os puxa-sacanas estiveram presentes.

O rega-bofe foi farto e chique, e os presentes ao aniversariante chegavam de todos os lados. Não era segredo de ninguém que o presente que o Rei da Agiotagem mais gostava de receber era um grande animal, digno de um homem poderoso: cavalo. Por isso, no meio dos festejos, já um pouco mamado de vinho e outros teores alcoólicos, Polidectes de Oxossi perguntou que presente os amigos desejavam oferecer-lhe; é claro que o coro foi um só: cavalo!

A festa foi composta apenas por bambambãs que tinham poder aquisitivo para dar um presente tão caro. Ao ver que apenas João Perseu ficou em silêncio na hora em que lançou a pergunta, Polidectes indagou diretamente ao filho de Dânea o que ele lhe daria. Constrangido, o rapaz, que não tinha dinheiro suficiente para dar um presente de tão vultosa soma, surpreendeu a todos ao dizer o que daria ao rei.

O que Polidectes de Oxossi queria e ansiava era que João Perseu lhe oferecesse Dânea, autorizando um possível relacionamento entre os dois, mas isso não aconteceu. O filho realmente não queria que a mãe se envolvesse com o Rei da Agiotagem, por mais poderoso que esse fosse. Sentindo-se pressionado, João Perseu disse em alto e bom som que não tinha condições de presenteá-lo com um animal tão oneroso, mas que estava disposto a conseguir a cabeça da Medusa – um poderoso talismã que daria a quem o tivesse a faculdade de sair-se vitorioso em todos os setores da vida.

Um grande silêncio caiu entre os presentes porque o talismã era lendário e quem o conseguisse se firmaria como o mais poderoso rei de todos os reis, não apenas em Santo Amaro da Purificação, mas em toda a Bahia e também fora dela.

Ao ouvir as palavras de João Perseu, Polidectes não acreditou que o jovem fosse capaz de tal proeza, afinal muitos tinham almejado o talismã, mas ninguém o conseguira. Por isso e para ter certeza do afastamento do rapaz da ilha – de forma que pudesse aproximar-se de Dânea com mais facilidade, a fim de seduzi-la com palavras e joias – o Rei da Agiotagem fez uma aposta com o herói.

Olhando fixamente para a mãe de João Perseu, o poderoso monarca disse que, caso o rapaz não conseguisse o talismã, Polidectes de Oxossi, poderia ir à sua casa pegar o que quisesse, e ninguém poderia impedi-lo de desfrutar do que pegara. Ao proferir essas palavras, seu olhar estava cravado em Dânea, e todos entenderam que o rei falava da mãe do jovem e do quanto desfrutaria das delícias de tê-la na cama.

João Perseu aceitou.

Como todo moço, tinha fé na própria força, tinha fé na própria coragem, muitas vezes se arriscando sem pensar nas consequências, agindo impulsivamente. Ele aceitou, e o Rei da Agiotagem sorriu satisfeito, pois tinha a certeza de que João Perseu falharia, como todos os outros falharam antes dele.

Pouco antes de sair da festa, João Perseu deteve-se no jardim a olhar para o céu estrelado, pensando como conseguiria sair vitorioso da empreitada que tinha aceitado. Era a primeira vez que o jovem se afastaria da mãe e isso apertava o seu coração.

Contava a lenda que o talismã da cabeça de Medusa era uma espécie de broche, perdido dentro de uma caverna no extremo Sul, lá onde o vento do Norte dobrava o Cabo da Górgona. Na caverna perdida estava a joia, que tinha os olhos feitos com as mais lindas e brilhantes esmeraldas que havia no universo. A lenda era muito conhecida, e até aquele dia nenhum dos que empreitaram buscar o tesouro voltou para contar história, fosse de vitória, fosse de fracasso.

João Perseu olhava para o céu quando nele surgiu a figura de um lindo casal de orixás. Eram Atená e Hermes. As figuras resplandeciam em todo poder e glória, e não havia como lhes negar a divindade. Embevecido, João Perseu ajoelhou-se e rogou-lhes proteção.

A altiva guerreira Atená disse que ela e Hermes o ajudariam, apesar de ele ter sido imprudente ao prometer a Polidectes de Oxossi a cabeça da Medusa. A deusa contou que ela e Hermes, conhecido por aquelas bandas como Exu da Encruzilhada, lhe forneceriam os meios necessários para cumprir a promessa feita. Mas antes o herói deveria dar-lhes oferendas, que não poderiam ser colocadas em qualquer lugar. Todas deveriam ser arriadas no terreiro das trigêmeas conhecidas como as irmãs Fórcis, que receberam os nomes de Enio, Pefredo e Dino. Lá ele encontraria as respostas para seguir viagem e sair vitorioso na empreitada.

João Perseu já tinha ouvido falar da fama das três irmãs gêmeas siamesas, que permaneciam tão grudadas quanto desde o momento em que nasceram. O trio morava perto da praia de Cabuçu. Não era muito longe, mas o acesso era muito difícil porque, contava a lenda, elas haviam construído várias armadilhas para impedir que visitas inesperadas surgissem de repente.

João Perseu então voltou ao interior da casa do Rei da Agiotagem e contou à mãe e a Díctis de Logun-Edê sobre a aparição dos orixás e o que eles haviam determinado que fizesse. Sem entender muito bem, mas acreditando na proteção dos deuses, Dânea abençoou o filho, que começou ali mesmo a jornada para o terreiro das Fórcis.
Exu da Encruzilhada foi à frente, abrindo o caminho do jovem herói, apesar de ser de noite. Hermes tinha a capacidade de poder trafegar tanto de dia como de noite e ele foi o guia para que João Perseu conseguisse trilhar o caminho.

Durante três dias e três noites, o filho de Dânea caminhou, desviando-se das armadilhas construídas pelas gêmeas siamesas. Sem dormir, sem comer, somente bebendo a água que encontrava em algum riacho ou acumulada nas folhas das árvores, o protegido de Exu e da guerreira Atená avançou até chegar ao terreiro das irmãs, conhecidas como As velhas por já haverem nascido com a aparência envelhecida.

Diziam as más línguas que as três haviam sido rejeitadas pelos pais assim que nasceram e que um índio-caboclo é que tinha cuidado das pequenas desde que vieram ao mundo. Certeza não se tinha, ninguém confirmava, mas certo é que estavam cada qual grudada na outra e que todas eram cegas de um olho. Feias como a fome, com apenas um dente cada uma, nada disso assustou ao jovem.

Ao chegar ao terreiro, João Perseu teve a nítida impressão de que já era esperado, mas Atená lhe havia avisado que as Fórcis eram seres muito astutos e que não ensinariam com facilidade o caminho para chegar à gruta onde se encontrava o talismã da Medusa.

Ao contar para as irmãs gêmeas que o objetivo de sua presença no terreiro era arriar oferendas aos orixás Atená e Exu, elas o aceitaram, um tanto desconfiadas, é bem verdade; mas acabaram aceitando a presença do rapaz. Elas impuseram, porém, uma condição: ele deveria passar por uma sessão de descarrego e purificações antes de ofertar os presentes aos deuses.

A purificação se daria através de banhos, ervas e comidas. Durante setenta e sete dias e setenta e sete noites, João Perseu fez tudo o que elas mandaram e purificou o corpo e a alma, e lentamente foi ganhando a confiança das gêmeas. Ao final, estava com o corpo fechado contra qualquer maldição, podendo enfrentar todos os perigos que certamente encontraria pela frente.

Protegido por Atená e Exu, as três Fórcis incorporadas ofereceram-lhe alguns objetos sagrados que o ajudariam a conseguir o talismã, pois na gruta onde o broche estava escondido havia muitas armadilhas e não seria fácil passar por cada uma delas. O rapaz deveria enfrentar diversas peripécias. Não seria fácil conseguir o precioso amuleto, que daria a quem o possuísse todo o poder e a glória.

João Perseu recebeu das mãos das siamesas um par de sandálias sagradas, capazes de fazer voar a qualquer um que as calçasse; uma espécie de alforje, para guardar o broche da cabeça da Medusa; e um capacete, que lhe possibilitava a invisibilidade.
Atená, incorporada na Fórcis Pefredo, contou ao protegido o porquê de ninguém voltar da gruta.

Segundo ela, quem olhasse para as esmeraldas incrustadas nos olhos da cabeça de Medusa virava pedra imediatamente. Era uma maldição que acompanhava o artefato há milênios e milênios, desde o tempo em que Céu e Gaia ainda não se haviam separado. Para que João Perseu não olhasse diretamente o broche – que tinha poderes divinos, como mudar de lugar por si mesmo – e saísse vitorioso, Atená deu ao filho de Dânea seu escudo de guerreira, tão polido e reluzente, que mais parecia um espelho.

De Hermes João Perseu obteve emprestada uma afiada espada de aço, que lhe seria muito útil na longa jornada.

A orixá guerreira disse-lhe, ainda, que o broche estava protegido por várias entidades do Vale do Hades e que só com muita astúcia e valentia pegaria o amuleto. Duas soldadas também protegiam o broche, as Górgonas Ésteno e Euríale, avisou Atená.
Munido dos presentes dados pelos deuses, João Perseu saiu do terreiro das três Fórcis e caminhou em direção à gruta das Górgonas, que ficava no meio de uma densa floresta.

A viagem foi longa.

Por muitas vezes o herói precisou acalmar o coração impaciente, que queria chegar logo e lutar. Ao final de trinta e três dias de viagem marítima, chegou à caverna no extremo Sul, onde o vento do Norte dobrava o Cabo da Górgona. Na caverna perdida, estava a joia, que tinha os olhos feitos com as mais lindas e brilhantes esmeraldas que havia no universo.

A cada passo que o protegido de Atená dava, surgia uma armadilha para impedir sua entrada. Porém o filho de Dânea com uma divindade luminosa tinha nascido para a glória, para brilhar, e uma a uma, utilizando as armas dada pelos orixás, foi vencendo as armadilhas.

O local tinha várias câmeras escuras, e cada uma ele ultrapassou. Quando chegou à última câmera, encontrou o broche e, protegendo-o, as duas Górgonas, conforme tinha avisado Atená. João Perseu, cobrindo-se com o capacete da invisibilidade, colocou na água das guardiãs um líquido que logo as fez adormecer.

Assim que desacordaram, João Perseu tirou o capacete da invisibilidade, voltando a ficar visível. Aproximou-se, então, do altar onde estava o broche. Ao tentar pegá-lo, surgiu à sua frente uma grande cabeça de monstro, com serpentes venenosas no lugar dos cabelos.

Esta era a verdadeira Medusa, que protegia o broche. Lembrando-se dos presentes dados pelos deuses, João Perseu utilizou o escudo de Atená para localizar o mostro; com a espada dada por Exu, cortou-lhe a cabeça peçonhenta, que rolou pelo altar até o chão.

Em seguida, pegou a cabeça do monstro e o broche que havia ido buscar, jogou-os no alforje e caminhou para a saída. Justamente neste momento, contudo, as duas Górgonas acordaram e foram ao seu encalço.

Com as sandálias voadoras e novamente colocando o capacete, João Perseu voou floresta afora, fugindo da perseguição.

O herói só respirou aliviado ao chegar ao barco e içar vela para retornar à Ilha de Sérifo, levando consigo o broche, que entregaria ao Rei da Agiotagem, e também a cabeça da verdadeira Medusa, que ainda lhe seria útil em sua grande jornada de herói.
Foram trinta e três dias de volta para casa, e João Perseu a cada porto via sua história o anteceder. Todos já conheciam sua vitória e honravam seu nome, sem mesmo o ter visto.

No meio do caminho, encontrou um marinheiro que contava a história de uma linda donzela chamada Andrômeda, que sofria no Oriente. João Perseu ficou tentado a ir ao encontro da jovem, que sofria agrilhoada em um rochedo à beira-mar, mas ele não podia. Sua missão era entregar o broche a Polidectes, pois senão sofreria sua amada mãe. E assim fez. Após um mês e três dias chegou ao palácio de Polidectes de Oxossi e ofereceu-lhe o broche, conforme o prometido.

Quem viu o herói entregando o presente pode jurar de pés juntos que na face do poderoso rei só se via decepção. Na verdade, o que ele queria era a mãe de João Perseu na cama. Mas como promessa é promessa e a do jovem herói tinha sido cumprida, também ele teria que cumprir a sua parte e deixar Dânea intocada.

A mãe do rapaz, ao saber da chegada do filho, foi ao seu encontro imediatamente, mas este já tinha ido para o porto. Decidira ir ao Oriente e cumprir, assim, sua missão de herói. Dânea ainda conseguiu despedir-se do filho, minutos antes de sua partida para uma nova aventura.

Ela se conformou, apesar de chorar um pouco. Dânea sabia que a missão de seu rebento era esta: ser herói e lutar contra aquilo que a maioria não luta, em nome de um bem maior. João Perseu, seguindo o seu caminho, foi salvar a jovem Andrômeda.

Uma longa jornada João Perseu empreendeu até chegar ao Oriente e salvar Andrômeda do monstro que a queria devorar.

Mas isso já é uma outra história.

terça-feira, 31 de maio de 2011

Desconhecidos

Desconhecidos numa sala de espera. Um silêncio um tanto quanto constrangedor se instala. Uns olham para os outros buscando algum assunto.

Um senhor de óculos mexe a mochila.
A senhora gorda que traz um coração numa longa corrente no pescoço mexe no cabelo.
O garoto de óculos olha, hipnotizado, para o chão.
O senhor careca anota numa caderneta alguns números, fazendo contas.
A senhora de xale dá um longo suspiro – “ai, ai”.

Uma jovem negra entra na sala e todos dão apressadamente um “bom dia”. A impressão que se tem é que agora a conversa vai deslanchar, mas um silêncio de catedrais reina novamente.

O que cada um espera?
O que cada um almeja na vida?
Será que a gorda espera dar seu coração para alguém?
Será que o senhor de mochila espera a juventude de volta?
Será que o garoto de óculos espera que no chão apareça um buraco de onde surja um Pokémon para resgatá-lo?

Será que o careca almeja ter todas as suas contas pagas e que a ex-mulher deixe de atazaná-lo para que possa viver em paz com a atual mulher?

E a senhora de xale? Espera o que com tantos gemidos de “ai, ai”? Será que é alguma cantora de fado arruinada?

E a garota negra? O que espera com a mão no queixo e olhar perdido para a parede verde? Será que espera que nasça diante dos seus olhos alguma esperança?

Tantas vidas.
Tantos mistérios.
Tantos desejos.
Tantas desilusões perdidas numa sala de espera.
Esperam.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Jogado

Fazia tempo que ele estava ali na estante da livraria, na sessão de contos e crônicas, mas ninguém, ninguém mesmo!, o comprava. Para dizer a verdade, sequer suas folhas eram folheadas.

Não era um livro cujo autor fosse famoso, não, não era. Era uma simples coletânea de autores anônimos que tentavam a sorte no mundo das letras.


O livro de contos ficava lá jogado, no meio da estante, esperando que um filho de Deus o olhasse e – doce ilusão! – o levasse para casa. Mas seu dia ainda não chegara e, para ser sincera com você, nem sei se chegaria, já que fazia tempo que o pobre do livro estava lá, perdido no meio de nomes como Machado de Assis, Gustave Flaubert, João do Rio, Moacyr Scliar... Gente importante, sim senhor! Gente de gabarito. Gente que é chique dizer que se leu, ainda que na verdade não se tenha passado da leitura da orelha. Como competir no meio de gente tão importante, não é mesmo? Não dá. Por isso o coitado do livro de contos ficava lá esquecido. Desde que foi colocado na prateleira, ninguém sequer o folheou. Já contei isso, não? Pois é, para você ver a solidão do coitadinho. Dava pena...


Também, convenhamos!, a capa não chamava a atenção de ninguém. Eu não quero falar mal, longe de mim fazer comentários depreciativos, mas realmente com aquela capa horrível não havia cristão que se aventurasse a passar os olhos nas histórias dos coitados dos autores.
E o título?! Vixe! Nem se fala! Parecia extraído de algum livro de romance-sentimental, desses que vendem em banca e têm sobrenome de autora estrangeira: Donald, Parker, Beverley, Jordan, Simmons, Roberts... Livros para moças, como diriam alguns.

Então, não é para falar mal, juro que não é, mas com um título daquele, ah, não havia jeito de atrair o leitor distraído e impulsivo, que comprasse um livro num momento de compulsão de ter e não de ser. ’Tadinho do pobre! Também, quem mandou colocar um livro desses num estabelecimento tão chique como aquele? Cá entre nós, eu acho que o dono da livraria quis agradar algum conhecido colocando na prateira aquele livro de contos de autores anônimos. Se contar isso para alguém, eu vou jurar que é mentira, mas que deve ter sido isso, ah deve!, porque não há nenhuma explicação para colocar o irrisório livreco naquela prateleira da livraria chique.


E o infeliz e desventurado do livro fica lá na estante, esperando que alguma musa de Homero – ou mesmo de Hesíodo, vá lá – inspire um leitor a folheá-lo, cumprindo, assim, minimamente seu destino: ser lido.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

ABISMO

Todo dia é sempre a mesma coisa. Chego à cozinha e ela já se encontra lá. Cabelo desfeito do sono, camisola amassada, rosto inchado, parece que veio direto da cama.
Chego e falo bom dia, e ela nada responde. Me olha. Apenas me olha, com aquele olhar escuro de poço sem fundo. Já me perdi naquele olhar. Evito olhá-la de frente, não quero mais me perder naquele abismo que ela carrega e em que por muitas vezes me precipitei.

Ela me olha, insiste no olhar, e adagas invisíveis vão perfurando meu corpo. Sinto, mas finjo não sentir.
Como.

Como sempre a mesma coisa que ela coloca na mesa.
O café tem gosto de requentado.
Ponho pouco açúcar, minha vida não é nada doce.
O pão ela sequer tira do saco da padaria.
É sempre o mesmo requeijão sobre a mesa.
Odeio requeijão, mas como mesmo assim.
Ela não sabe dos meus gostos.
Ela esqueceu os meus gostos.
Ela é quem gosta de requeijão, não eu.

Eu a vejo de esguelha, encostada na pia e de braços cruzados, esperando.
Esperando não sei o quê.
Nunca soube.

Ela me olha, não desgruda os olhos de mim, e busco no jornal uma proteção, uma barreira que me impeça de ser vítima do seu precipício.
Eu a vejo.
Eu a enxergo.
Mas não quero ver.

Leio o jornal, mas as letras se embaraçam, as frases ficam soltas, e não consigo entender.
Não entendo nada.
Minha vida é um nada.

O bendito jornal é um escudo que me protege a cada manhã.
Seu silêncio me massacra, me mata. Quero gritar, quero falar, quero... Eu sei o que quero e o que eu não quero, e não quero mais este silêncio e o seu olhar de juiz a me julgar toda manhã.

O dia amanhece e tudo é igual. Dia após dia, tudo se repete.
O sol não traz novidades.

Seu silêncio acusador – não consigo entender. Ela não diz nada. Eu também nada digo, e assim somam-se os dias, intercalados com noites melancolicamente sombrias. Vivemos assim e sinto que a vida parou dentro de nós.

Eu continuo a ler o jornal. Ao abrir o copo de requeijão, a tampa escapole e voa para o ladrilho.
Não me abaixo.
Não quero sair da proteção do escudo do jornal. Continuo a ler, sem entender. Não entendo nada.

Um desespero vem me subindo, chegando ao peito e trazendo um gosto amargo à boca.
Não sei o que fazer.
Não sei.

Levanto depressa em busca de respostas no mundo. Arrasto a cadeira, saio e deixo-a parada na pia, com os braços cruzados, me olhando, me acusando, querendo uma resposta que não tenho para dar.
O precipício me chama, e fujo.
Fujo desesperado para o mundo.



Nota da autora: Este conto faz parte do projeto de um livro de contos chamado COTIDIANO. São ao todo quatro contos: ACORDAR, CEGUEIRA, ABISMO e DORMIR. Para melhor compreender o total da obra, sugiro que leia as quatro histórias nesta sequência.

DORMIR

A claridade da luz artificial da rua invade o quarto através das persianas, mostrando o contorno de um corpo na cama. A porta do quarto é aberta lentamente e em seguida fechada. Pés descalços caminham e seguem até o banheiro. A luz é acessa. O chuveiro é ligado. Ouve-se a porta do boxe sendo fechada. Silêncio. O chuveiro é desligado e a porta do boxe é aberta. Pés caminham em direção ao quarto, formando pequenas poças no tapete. A luz difusa do banheiro projeta uma sombra do corpo que caminha em direção à porta do guarda-roupa, que é aberta. A mão tateia, procurando a camisola no meio da pilha de roupas. O roupão é jogado no piso. As mãos vestem a camisola. Pés caminham em direção da cama, mãos levantam o edredom, e o corpo se deita. Silêncio. O corpo vira, e dois pares de olhos se encaram na penumbra do quarto iluminado pela luz do banheiro e pela claridade artificial da rua. Silêncio. A mão toca a pele da coxa do outro corpo devagar. Silêncio. Os corpos se aproximam. As bocas se buscam. Silêncio. Os corpos se enroscam. Mãos tiram as roupas com avidez. Silêncio. Ouvem-se respirações entrecortadas. Silêncio. Um gemido. Silêncio. O barulho dos corpos se chocando é ouvido. As respirações tornam-se mais apressadas. Dois longos gemidos inundam o ambiente. Silêncio. A luz do banheiro ilumina a cama desfeita. O corpo levanta e pega a camisola do chão. Mãos vestem a camisola. Pés caminham até o banheiro. A mão desliga a luz e os pés voltam para a cama. O corpo deita-se. Silêncio. Um ronco suave ouve-se no ambiente. Dois olhos olham para o teto. O ronco baixinho continua a ecoar no quarto escuro. Um suspiro profundo se ouve também.

Nota da autora: Este conto faz parte do projeto de um livro de contos chamado COTIDIANO. São ao todo quatro contos: ACORDAR, CEGUEIRA, ABISMO e DORMIR. Para melhor compreender o total da obra, sugiro que leia as quatro histórias nesta sequência.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

SUMIÇO

Um dia ela se levantou e quando se olhou no espelho notou que o olho direito tinha sumido. Simplesmente sumido de sua face branca. A sobrancelha ainda estava lá, mas o olho e os cílios não. Olhou intrigada para a face refletida no espelho. Ainda tentou procurar pelo chão do banheiro o órgão perdido, mas não encontrou. Pensou que talvez o gato o tivesse arrancado no meio da noite e ela, que tem sono profundo, sequer tivesse notado.

Procurou o bichano, mas ele estava calmamente refestelado na sua almofada predileta e mal lhe deu atenção.

Como farei para sair? Os outros vão notar que meu olho sumiu! Ai, meu Deus, justo o meu olho tinha que sumir?! Justo ele?!

Deus não lhe deu nenhuma ‘pelota’ e ela se conformou com ir para o trabalho sem o olho direito.

Que falassem, pensou, dando de ombros.

Saiu à rua e ninguém a parou. Ninguém sequer olhou para sua falta de olho. As pessoas passavam por ela, mergulhadas nos seus próprios problemas, e ela ficou ainda mais espantada com a nova situação. Afinal, perder um olho, ainda mais o direito, não é algo tão comum assim. Mas ninguém, ninguém mesmo a olhou, e ela seguiu para o trabalho sem causar nenhuma controvérsia entre os transeuntes.

Ah, mas no trabalho eles vão notar que perdi o olho. Do jeito que a rádio corredor é, rapidinho vão notar – pensou, conformando-se.

Passou pela portaria, pegou o elevador, subiu quinze andares e em nenhum momento uma alma sequer notou que seu olho direito estava faltando. Nada. Nenhum comentário. Nenhum disse-me-disse. Nada. Nadica.

Mas que coisa!

Quando chegou ao escritório de contabilidade ninguém a olhou também. Ela começou a ficar espantada porque inicialmente pensou que todos fossem notar a ausência do globo ocular. Mas ninguém falou nada.

Os dias foram passando e ninguém a olhava. Ela bem que tentou chamar a atenção se vestindo com roupas extravagantes, pintou o cabelo de vermelho pica-pau, as unhas ficaram verdes e azuis, os lábios roxos, tirou a sobrancelha. Nada adiantou. Ninguém a olhava. Quer dizer, teve uma vez que ela bem notou que a Terezinha e a Gertrudes olharam para o seu sapato de pele de oncinha falsificada, mas para o rosto, nada.

O sapato sequer serviu de comentário entre as duas, foi só uma olhadinha rápida dessas que a gente dá quando o ônibus passa depressa em frente ao outdoor: não causa espanto, e a curiosidade não precisa ser satisfeita, de tão efêmera que é.

E assim os dias foram passando, formando meses, tornando-se anos, e ninguém olhava sua falta de olho. Um dia ela acordou, depois de mais de trinta anos, e encontrou seu olho grudado numa fresta, atrás da porta. O gato já tinha morrido havia muito tempo e hoje ela morava sozinha com um vira-lata sem as pernas traseiras.

O globo ocular deve ter rolado enquanto ela dormia, caído e se escondido numa fresta que ninguém notou. Ainda era o mesmo, ou quase. O tempo passou e ele estava cheio de teias de aranha, muito sujo, um pouco arranhado, mas ainda era o seu olho.

Quando ela encontrou o olho direito, primeiro levou um pequeno susto, desses que a gente tem quando acha uma coisa há muito perdida. Depois olhou profundamente seu olho, deu um pequeno suspiro, levantou da cadeira, foi ao banheiro e jogou o olho na privada, dando a descarga em seguida. Deu de ombros e seguiu a vida, o resto de vida que ainda tinha.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Sem sentir

Era uma vez uma linda menininha que um dia decidiu não sentir mais nenhuma emoção. Ela havia nascido com medo de sentir não apenas as emoções ruins, mas também as boas. A qualquer emoçãozinha que a menininha se visse prestes a sentir, uma grande onda de pavor subia ao seu coração, e ela cavava um pequeno buraco, onde quer que estivesse, e enfiava o rosto, tal qual fazem os avestruzes.

O jardim de sua casa vivia esburacado, e sua mãe estava cansada de tanto reclamar. Mas nada adiantava. A menininha tinha medo de sentir. Com isso, ela pouco saía de casa, pouco falava, era muito solitária e tinha apenas por companhia os buracos vazios à sua volta.

Ela não conseguia sequer chorar, porque chorar significaria sentir alguma coisa, e a menininha recusava-se a sentir. Então uma coisa estranha aconteceu. Os buracos que havia no jardim de sua casa começaram a sumir. Um a um foram desaparecendo. Mas eles não sumiram no mundo, não; só mudaram de lugar: foram parar dentro da linda menininha.

Ela começou a sentir o vazio que os buracos deixavam. E aquilo a incomodava. Sentir um buraco no peito, um buraco na testa, um buraco nas costas, um buraco em cada parte do seu diminuto corpo era muito ruim, muito ruim mesmo. Teimosa e orgulhosa, não queria pensar e menos ainda sentir o vazio que os buracos deixavam.

Com isso, cada dia era mais longo que o anterior, porque, pode não parecer, mas buraco pesa pra dedéu. É um mundo que se carrega e, como ela tinha vários buracos, cada dia ficava mais difícil levantar da cama, brincar, sorrir. Ter tantos vazios começou a fazer muito mal à menininha. Ela, que antes enxergava tudo colorido, começou a ver só em preto e branco. Certa vez, ela assistia à televisão na casa de sua avó, e os artistas apareciam todos em preto e branco.

Foi assim que ela começou a ver o mundo. Seu ursinho cor-de-rosa, que ganhou da tia Sonia, de repente se transformou em cinza, um cinza feio. Seu copo, que tinha a figura de um sapo verde, de um dia para o outro ficou preto, branco e cinza. O cinza começou a imperar em sua vida. Para qualquer lugar que olhasse, só enxergava o preto, o branco e os vários tons de cinza.

Tudo isso acontecia por conta dos buracos que carregava. O pior é que a cada dia os buracos incomodavam mais e mais: ardiam, doíam, fediam, coçavam… Ih, era um horror! Um horror horrorizante!!! Mas a menininha continuava com o firme propósito de não sentir. Até que um dia algo aconteceu. Ela estava no jardim de sua casa, numa linda manhã de primavera – que, diga-se de passagem, ela não era capaz de ver, nem de sentir – a menininha ficou pensando em quanto problema arranjou para sua vida, por ter medo de sentir. Aqueles pensamentos a fizeram ficar cada vez mais triste, com um olhar perdido, porque ela cavara tantos buracos para se esconder, que acabou caindo neles, e não sabia como voltar.

Ela ficou pensando, pensando, pensando em como poderia sair daquela enrascada em que ela própria se metera. Aí se lembrou de sua avó, que sempre dizia que cada menininha tinha um anjinho que lhe tomava conta e que, quando ela estivesse em qualquer apuro, poderia ajudá-la. A menininha, apesar de ser menininha, não acreditava muito em anjinho, não. Ainda se fosse em fada… “Será que menininhas como eu têm alguma fada-anjinho que lhes poderia ajudar?” – perguntava-se. “Bem, não custa nada tentar”.

E a menininha começou a sentir uma coisinha muito estranha no peito. Era como se fosse um solzinho, do tamanho de um grão de feijão. Então a menininha, que não sabia como chamar a fada-anjinho, fechou os olhos, juntou as duas mãozinhas e disse em alto e bom som:

– Fada-anjinho, por favor, me ajude! Sou apenas uma menininha que tem medo de sentir!

Falou isso e parou. De olhos fechados estava, de olhos fechados ficou. Nada diferente sentiu. Com medo de abrir os olhos – sim, porque a menininha era muito medrosa, teimosa e orgulhosa – ficou ainda alguns momentos parada. Então decidiu contar até dez e só então abrir os olhos. Tudo continuava o mesmo.

O jardim continuava igual às fotografias antigas que a avó tinha em casa, em preto, branco e cinza. Porém, ao olhar mais detalhadamente em volta, viu uma linda borboleta azul pousada num canteiro de margaridas. Tudo estava branco, preto e cinza, mas na linda borboleta ela conseguia enxergar seus maravilhosos tons de azul. Ela viu quando a borboleta voou e veio pousar em seu colo. Era uma borboleta muito linda, mas era estranha. Tinha cara de gente, não de borboleta.

Foi aí que a menininha entendeu que aquela borboleta era sua fada-anjinho, que veio atender ao seu chamado. A fada-anjinho logo começou a falar com voz de gente, e a menininha prestou muito atenção.

– Menininha, ouvi o seu chamado e vim ajudá-la. Não tenha medo de sentir qualquer emoção – aconselhou a fada-anjinho.

– Mas as emoções são muito fortes, e eu sou apenas uma menininha, tenho muito medo.

– Eu sei que é apenas uma menininha, mas, se continuar a não querer sentir, sua vida ficará cada dia pior. Tudo a sua volta se tornará cada dia mais triste. Passará a enxergar só preto. Até o cinza e o branco vão sumir. Você só verá a escuridão. O mundo é tão bonito, há tantas coisas que você precisa ver e apreender… Mas você precisa entender que temos que viver todo tipo de emoção, porque senão não vamos crescer. Você não quer crescer, estudar, viajar, ter uma casa grande e bonita? Então! Para isso precisa crescer, não é verdade? – perguntou docilmente a fada-anjinho.

– É… eu quero – disse a menininha, meio desanimada, mas com um grãozinho de esperança no peito.

Depois de um pequeno silêncio, ela indagou à fada-anjinho:

– Mas como faço para parar de sentir medo?

– Você nunca deixará de sentir medo. Há momentos em que sentir medo é bom. O que você pode fazer é, mesmo sentindo medo, agir. Não deixar que o medo faça você ficar parada. – aconselhou a fada-anjinho.

– Mas como faço então para agir mesmo quando o medo vier muito forte?

– Ah, para isso eu vou dar de presente a você, um objeto especial. Ele é mágico! – disse a fada-anjinho, sorrindo – Feche os olhos e estenda as mãos!

Assim fez a menininha. Ao sentir um pequeno peso nas mãos, abriu os olhos e viu um caderno com ilustrações de borboletas. Parecia, no entanto, um caderno comum, apesar das alegres figuras das borboletas.

A menininha ficou intrigada, olhando para aquele caderno. Ele não parecia especial, muito menos mágico. Nas histórias que sua mãe lia antes de ela dormir, os livros mágicos eram grandes, cheios de figuras e salamaleques. Aquele caderno não tinha nada de especial! Ela olhou para a fada-anjinho e perguntou, sem muita fé:

– Isso é mágico?! Mas é apenas um caderno! – questionou a menininha.

A fada-anjinho riu e garantiu:

– Acredite: é um caderno mágico, sim. As melhores coisas da vida são assim, simples! Se você, a cada vez que tiver medo de sentir, escrever nele, sua vida vai melhorar muito! Você vai crescer, e os buracos que habitam você diminuirão, até sumirem. Para tirá-los de dentro de você, só escrevendo. Cada vez que escrever, mais e mais as palavras que escrever taparão os buracos que você criou. Um a um serão fechados, e sua visão também voltará ao normal. Passará a ver tudo colorido. O mundo terá todas as cores. Você passará a sentir emoções boas e também as más, porém será, ainda assim, feliz. Creia. Você crescerá e será feliz! – garantiu a fada-anjinho, sorrindo.

– Mas… e quando o caderno acabar? – questionou a menininha.

– Quando este acabar, basta comprar qualquer outro que tenha borboletas na capa. Qualquer caderno com borboletas é um caderno mágico, você sabia disso? – perguntou.

A menininha sacudiu a cabeça, admitindo a própria ignorância.

– Sim – continuou a fada-anjinho – creia: qualquer caderno que tenha borboletas é mágico. Se pegar um que não tenha e pintar borboletas nele, o caderno fica mágico na mesma hora.

Em seguida, a linda borboleta azul bateu as asas e começou a voar. Antes de sumir completamente, olhou para trás e disse:

– Siga as borboletas. Você será feliz!

E a menininha seguiu.
Hoje ela não é mais uma menininha. Cresceu. Transformou-se numa linda mulher. Uma mulher que é feliz e tem uma pilha enorme de cadernos cheios de borboletas em casa. A pilha cresce, mais e mais, a cada ano.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Acordar

A claridade invade o quarto entrando pelas frestas da persiana. Um ronco se ouve no ambiente. O relógio marca seis horas. A estridente campainha ecoa. A mão apalpa o ar até encontrar o aparelho e desligá-lo. A mão afasta devagar as cobertas, jogando-as no chão. O corpo lentamente se levanta, as pernas se põem para fora da cama. O som de um espreguiçar se ouve. O corpo toma impulso e se levanta da cama, arrastando as chinelas. A persiana é levantada e a claridade inunda o ambiente. As chinelas se arrastando dirigem-se ao banheiro. A porta é fechada com um estrondo. Silêncio. Ouve-se a descarga da privada e, em seguida, o som de um chuveiro sendo aberto. Um cantar desafinado se escuta. O chuveiro é desligado. Silêncio. A porta do banheiro se abre de repente. As chinelas se arrastam e formam pequenas poças de água, molhando o tapete desgastado. A porta do guarda-roupa é aberta com um estrondo. A mão busca a calça azul, abre a gaveta e pega a roupa íntima e, em seguida, a camisa branca. As roupas são jogadas sobre a cama. O roupão cai no tapete e as mãos vão vestindo o corpo. Calçam-se os sapatos. A porta do quarto é aberta e os passos vão em direção à cozinha. No caminho, perto da porta,a mão pega o jornal. Na cozinha, a mesa posta, senta-se, abre o jornal e começa a tomar o café da manhã.

Nota da autora: este texto faz parte projeto COTIDIANO - LIVRO DE CONTOS.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Cegueira

Todo dia é a mesma coisa. Ele chega, resmunga um bom dia e senta para tomar o café. Não me olha. Não me vê. Não me enxerga. Nunca.

Ele come sempre a mesma coisa, não muda. O café preto, amargo como a minha vida, tem que estar pelando. O pão, no saco da padaria, tem que estar ainda quente. O requeijão tem que ser sempre light, da marca mais cara.

Ele não vê nada.
Não enxerga nada.
Só lê o jornal.
O bendito jornal.

Seu silêncio me oprime, me comprime. Quero gritar, quero falar, quero... nem sei bem direito o que quero, mas tenho certeza do que eu não quero e não quero este silêncio.

O dia amanhece e nunca traz novidades. Mesmo no domingo, tudo é o mesmo, só mudam os horários das refeições.

Seu silêncio nada me diz. Eu também não digo nada. Vivemos assim, envolvidos numa nuvem taciturna. Sinto que a vida parou aqui dentro.

Ele continua a ler, entre um gole de café e uma mordida no pão com requeijão. O jornal não traz notícias minhas. Mas ele continua a ler. Um desespero e uma impotência invadem meu peito. Não sei o que fazer. Não sei de não saber.

Ele levanta da mesa e abandona o jornal, migalhas espalhadas sobre a toalha, um resto de café sobra na xícara. São os rastros que ele deixa. A tampa do copo de rejeição permanece no piso de ladrilho. Ele não se digna a abaixar para pegá-la. Ele arrasta a cadeira e sai apressado. O mundo o chama lá fora. O mundo, vasto mundo.

Eu fico. Oprimida no rastro do seu silêncio. As migalhas permanecem sobre a mesa. Migalhas, como a minha vida.



Nota da autora: este texto faz parte projeto COTIDIANO - LIVRO DE CONTOS.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Música - Série Eu me lembro muito bem...

Eu me lembro muito bem de uma música. Não qualquer música, mas a canção de ninar que minha mãe cantava para mim. Ainda sou capaz de me lembrar de sua voz afinada a embalar-me numa melodia de amor. De um amor incondicionalmente meu.

Eu me lembro muito bem, ah, como me lembro! De que eu era feliz e sabia que era feliz. Feliz por ter seus braços a me envolver, a me embalar, aconchegando-me ao seu peito.

Eram várias as músicas que compunham o repertório que me fazia dormir. Nunca fui de me entregar facilmente aos braços do Morfeu. A vida me chamava, e dormir era uma das últimas coisas que queria fazer, naqueles dias.

Mas a voz suave, serena de mamãe mansamente me envolvia, e eu me deixava levar para o mundo dos sonhos. Para o mundo onde o “não” não existia e o “sim” era pura realidade.

Eu me lembro muito bem, ah, como me lembro!, de como era bom habitar essa terra, naquela época. Como era bom ouvir as canções antigas que minha mãe cantava!

Hoje já não escuto sua voz, mas escuto a minha a embalar minha menina de cabelos negros e olhos grandes como a esperança. Ela ri, e seu riso traz um quê de melodia das notas do pretérito da canção de ninar de minha mãe.

Eu me lembro muito bem e quem sabe no futuro minha menina também vá escrever poucas palavras contando que se lembra muito bem da voz de sua mãe?

O tempo passa, mas o amor se transforma e fica.