quarta-feira, 14 de julho de 2010

Um passado que não passa (*) - Série "Eu me lembro muito bem..."

Eu me lembro muito bem do medo. Do grande e implacável medo que sentia do sótão lá de casa. Escuro, denso, vazio de vida, cheio de teias de aranhas a tecer fantasmas do pretérito; eu nem tinha consciência de que existiam, mas os sentia. O medo nunca me deixou, era minha companhia toda vez que era obrigada a escalar os vinte e sete degraus que separavam o sótão do segundo andar. Para tomar coragem, o Poeta, meu cachorro vira-lata, sempre me acompanhava. Ele e minha boneca Julieta. Mas de nada adiantava ter a companhia desses parceiros constantes. O medo persistia. Insistia. Era implacável.

O silêncio ora gritava, ora sussurrava, e espremia meus ossos.

Passados tantos anos, ainda consigo sentir aquela sensação de terror, como se a qualquer momento fosse descobrir o cadáver mal enterrado de alguma lembrança do meu avô, do meu tio ou mesmo de mamãe.

Nunca vi nada.

Ninguém nunca me contou nada.

Absolutamente nada, mas eu senti.

Hoje a casa já não há. Construíram uma igreja no local. Dessas que culpam o diabo por tudo. A rua já não é mais a mesma. Algumas árvores foram cortadas. Várias casas foram demolidas também, não só a minha. A vida é outra.

Mas toda vez que passo em frente ao novo prédio, sinto como se o passado e os fantasmas do sótão viessem me chamar. Viessem me saudar. Acenar com o lenço da memória. Um passado que não passa. Uma dor que ficou. Um medo de não sei quê, que não sei por que, mas ainda existe. Um medo de triturar ossos. Insiste. Persiste.

Sempre.


(*) Homenagem ao escritor Lobo Antunes. Exercício feito no curso da Caixa Cultural do Rio de Janeiro, cujo tema foi Adaptação: a literatura no cinema, julho de 2010.