terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Bola fora

Quadra poliesportiva. Ensaio da escola de samba. Ambiente festivo, som muito alto, pessoas sambando e bebendo. O cinquentão Luiz está num canto, perto da cantina, tomando cerveja e mexendo o corpo discretamente ao balanço da música. Thiago, seu filho adolescente, está do seu lado. Ele tenta falar com o pai, que faz sinal de que não está ouvindo nada. Thiago mostra um grupo de adolescentes um pouco mais à frente e sinaliza que vai ficar com eles. Luiz faz sinal positivo.

    Thiago sai enquanto Luiz olha ao redor: um grupo de senhoras usando saias rodadas de baianas roda ao comando de um homem; crianças passistas sambam freneticamente, parecendo adultas; o mestre-sala dança em volta da porta-bandeira, num bailado delicado e reverente.

    Luiz continua olhando o ambiente, até que seus olhos encontram duas esmeraldas, que o encaram de volta. Luiz dá uma mirada de cima a baixo na jovem morena de cabelos negros e maravilhosos olhos verdes. Uma beldade feminina. A garota não era um pedaço de mau caminho, era o mau caminho inteiro.

    A morena olha sensualmente para Luiz. Ela segura um copo com um canudinho e sensualmente leva este aos lábios, sem tirar os olhos do cinquentão que, sem graça, olha ao redor, com “culpa no cartório”, como se temesse ser flagrado. Ao olhar novamente na direção onde a morena estava, Luiz nota que garota sumiu. Ele respira aliviado.

    Minutos depois, Luiz está bebericando tranquilamente uma caipirinha quando recebe um tapão no ombro. Olha para trás e dá de cara com o fanfarrão Rodolfo, seu grande amigo de infância e juventude.    

    – Luizão, sempre distraído, hem!
   
    – Rodolfo!

        Os dois se abraçam fraternalmente.

      – Há quanto tempo!
 
      – Mais de vinte anos. Você sumiu. Onde que você tava?

        Rodolfo coça a pança avantajada:

    – Ah, eu tava fazendo filho, casei, depois separei, abri uma revendedora de carro… – tira um cartão do bolso e o entrega a Luiz – Quando precisar trocar de veículo, me procura. Faço um preço camarada pro meu amigo de infância e juventude!

          Luiz pega o cartão e lê:

     – Nossa, quanta loja!

    – Pois é. Alguma coisa boa saiu do meu primeiro casamento. Ficava mais na loja do que em casa, e aí a empresa prosperou. E você? Casou?

    – Casei. Meu primeiro casamento também não foi bom, durou só alguns meses. Mas o segundo já tem 20 anos. Aquele ali é meu filho – aponta Luiz para Thiago, que ainda está entre amigos.

        Rodolfo sorri, dá um tapinha no ombro de Luiz e pergunta:

    – É pegador? Tomara que não tenha puxado você, porque na nossa época você não pegava nem gripe – Rodolfo ri da própria piada.

    Luiz, sem graça, ri desajeitadamente.

    – Eu também casei pela segunda vez. Dizem que na segunda é melhor do que na primeira, né não?! – comenta, fanfarrão.
   
        – É o que dizem! – garante, sorrindo. – Rodolfo, peraí que vou tirar uma água do joelho! Volto já.

    Rodolfo sorri.
   
    – Vai lá. Enquanto isso, vou procurar minha mulher pra te apresentar.

    Enquanto mija, Luiz olha ao redor, com cara de nojo, o banheiro masculino da escola de samba. Chega um negão e começa a urinar ao seu lado. Luiz, disfarçadamente, com o rabo do olho, nota o documento do negão, mas tira os olhos rapidamente, antes que o cara perceba.

    Luiz sai do banheiro e de repente é puxado pela camisa para um corredor meio escuro e empilhado de engradados. A morena que o estava paquerando joga-o contra a parede e o beija violentamente, deixando Luiz sem fôlego.

    – Gostosão! Tava doida pra fazer isso!

    A morena começa a abrir a camisa dele. Luiz tenta sair e argumenta, sem convencer nem a ela e nem a si mesmo:

    – Para!...... Sou casado......... Pai de família!... Não sou disso, não!...

    Mas a garota abre os botões de sua camisa e vai dando beijinhos na pele que vai aparecendo. Luiz se rende, sem lutar nada. A garota vai beijando cada vez mais para baixo. Luiz dá um murmúrio em êxtase.

    Luiz sai do corredor ajeitando a camisa. Rodolfo se aproxima com dois copos de cerveja. Entrega um para Luiz.

    – Toma.
   
        Os dois bebem em silêncio.
   
    – E como vai a nova vida de casado?

    – Uma beleza! Minha mulher faz tudo por mim!

    Alguém se aproxima por trás, e eles ouvem um barulho de beijo no pescoço de Rodolfo. Ambos se viram imediatamente, e Luiz vê que é a mesma morena que o pegou na saída do banheiro.
   
    – Luiz, esta é a minha mulher, Mariana!

    Luiz mostra surpresa. Ela oferece a mão para ele e diz, num sussurro rouco e sensual:

    – Muito prazer!

    Ainda com cara de surpresa, ele tenta disfarçar, mas a garota o provoca. Sem que Rodolfo perceba, Mariana passa a língua nos lábios úmidos. Luiz engole em seco.

    Sem notar o charme que Mariana joga ao amigo, Rodolfo segura a cintura da mulher e faz planos.

    – Vamu marcar um churrasco lá em casa, assim as patroas se encontram. Falando nisso, cadê a sua mulher? Deixou você voar sozinho, é? A Mari não deixa eu sair sozinho não, né, princesa? – pergunta Rodolfo dando um beijinho rápido na boca da mulher.

    Mariana retribui o beijo do marido, mas continua jogando charme para Luiz, que está cada vez mais sem graça.
    Thiago salva a situação ao se aproximar do grupo.

    – Pai, me dá uns trocados.

    Luiz tira a carteira do bolso e escolhe as notas, enquanto Rodolfo comenta:

    – Seu filho é boa pinta. Deve ter puxado à mãe porque, se dependesse de tu, saía um cruz-credo! – Rodolfo solta uma gargalhada alta.

    Thiago e Luiz se entreolham. Luiz dá o dinheiro ao filho e sorri sem graça para Rodolfo. Thiago sai.

    Mariana, de unhas vermelhas, segura o braço de Luiz e recrimina meigamente o marido.

    – Ah, tchutchuco, não fala mal assim, não, do Luiz. – ela acaricia sensualmente o braço dele. – Seu amigo parece um gatinho abandonado. Só precisa de um colinho bem quentinho.

    Mariana dá uma piscadela para Luiz, discretamente, enquanto Rodolfo ri.
   
    – Que nada, princesa! Eu e o Luiz somos amigos há muito tempo, e bota tempo nisso! E macho que é macho não fica melindrado por bobagem, não. – estufa o peito. – Mulher tem que ser bonita, mas macho tem é que ser viril. Não é, Luizão?!

    Ouve-se alguém dar um beijo no pescoço de Luiz. Todos olham para trás e dão de cara com Carlos Alberto, um moreno de olhos azuis e de barba ficando grisalha.

    Rodolfo e Mariana trocam olhares de espanto.

    Luiz e Carlos Alberto trocam um selinho e Luiz o apresenta para o casal.

    – Gente, este é o meu marido.

Personal News

Eva Regina é uma mulher que adora saber detalhes das vidas dos outros. Se a ‘rádio corredor’ fosse alguma firma registrada com CNPJ, Eva Regina seria considerada funcionária exemplar e tarimbada. Contudo, quando alguém a chama de fofoqueira ela nega veementemente e sua indignação chega à estratosfera. Ela se considera apenas “Personal News”.

    Mas garanto: quem quer saber informação da vida de alguém ou como foi que se deu o ‘bafo’ mais recente, o destino certo é bater à sua porta. Para dizer a verdade, nem precisava bater. Eva Regina trabalha com o sistema delivery. Ela vai diretamente até você para contar todos os detalhes mirabolantes e safadinhos.

    Eva Regina tem realmente muito tempo para cuidar da vida dos outros porque, afinal, seu lar é um poço de felicidade. Marido amantíssimo, Carlos Raimundo Siqueira é o homem exemplar: honesto, fiel até debaixo d’água, um modelo cristão da espécie humana dedicado à família. Os filhos, Jonathan e Wallace, então! São gênios e têm o destino certo de revolucionar diversas áreas no mundo, transformando a vida de todos nós, nascidos ou que ainda estejam por nascer. Com um lar tão perfeito e uma vida de contos de fadas de Walt Disney da década de 40, sobra-lhe muito tempo, realmente.

    Dias atrás, ela estava na sala da clínica de fisioterapia esperando ser chamada. Eva Regina está com bursite no ombro. Cá entre nós: deve ser alguma lesão por esforço repetitivo, de tanto tricotar a vida dos outros, não é mesmo?!

    Voltando: Eva Regina estava esperando ser chamada, quando entra uma jovem, de uns 25 anos, magra, linda e loira, falando ao celular. Vivemos numa época propícia para pessoas com o perfil de competência de Eva Regina. Não se tem mais o pudor de não tratar coisas íntimas ao telefone em alto e bom som. Eva Regina, quando ouviu que a jovem estava contando a alguém detalhes de seu final de semana, logo ligou a “butuca”, querendo saber pormenores para poder compartilhar. Eva Regina é tão competente em sua função de “Personal News”, que pouco importa se ela conhece ou não os envolvidos, ou se alguém do seu grupo saiba quem são as pessoas em questão. O importante é passar a informação, porque o mundo não pode viver sem saber o que acontece na vida íntima de desconhecidos e de que lado eles dormem na cama, se é que dormem!
   
    - Ah, foi um final de semana lindo, Pri! Realmente, o meu gato é muuuuuuuito quente.

    Eva Regina, que estava folheando uma revista de fofoca de celebridades, logo largou o exemplar e começou a prestar atenção, fingindo que assistia a um programa de culinária na TV.

    - Ele me levou naquele resort famosérrimo, encontramos até aquele galã da Globo da novela das sete, como é o nome dele mesmo? Vê lá no meu Face, eu postei uma selfie com ele.

    Eva Regina não se contém e começa a mandar mensagens pelo WhatsApp para suas colegas de tricô, relatando tudo o que a menina fala e não deixando de fazer comentários próprios. Apesar do braço doendo, ela se mostrava competente e ágil.

    - Pois é. Fomos comemorar as bodas de papel. Eu sei, Pri, que bodas de papel é de um ano de relação, mas não importa. São os oito meses mais felizes da minha vida – suspira a garota.

    “Eles estão juntos há oito meses. Veja você: hoje em dia é assim, mal se conhecem e vão já pra cama. Por isso os homens não têm mais respeito pelas moças de família. Viraram tudo periguetes” – escreve Eva Regina no WhatsApp.

    - Você precisa ver o anel de esmeralda e diamante que ele me deu, amiga! – ri a garota, toda feliz, olhando a joia no dedo.

    “Ela ganhou um anel de esmeralda e diamante enormeeeeee. Pelo jeito, o namorado tem dinheiro ou então o anel é falso” – digita Eva Regina.

    - Eu te digo miga, o negócio é pegar tiozinho. Estes garotos não estão com nada. Não troco o meu guti-guti por nenhum cara de vinte.

    “Ah, agora tá explicado: ela tá namorando um velho! O cara é um tiozinho. Deve ser um velho babão mesmo. Pouca vergonha, isso!” – digita, eufórica.

    - Ele já prometeu que nas férias vai me levar para Bariloche.

    “O tiozinho tá podendo mesmo. Ele vai levar a periguete para Bariloche. Deve ser milionário! Pouca vergonha. O final dos tempos já chegou mesmo. Vê se na minha época isso aconteceria? Minha lua de mel foi em Caxambu, e foi muito bom! Exibida, isso é que ela é!” – escreve Eva Regina, despeitada.

    - Ah, mas até lá ele já se separou da bruxa da mulher! Ele me ama, já prometeu! – garante a jovem.

    “Ihhhh, o tiozinho é casado. Tá corneando a mulher! Coitada! Dá pena, não é mesmo? Nem todo mundo consegue viver um casamento tão feliz como o meu. Vai ver que a mulher do tiozinho é uma bruaca, não se cuida. Eu não. Faça chuva ou faça sol, vou ao pedólogo uma vez por mês e só faço o retoque das raízes do cabelo no salão! Fazer em casa? Jamais!” – garante.

    - Mas ele vai MESMO lagar a mulher! Ele prometeu – enfatiza a jovem para a amiga do outro lado da linha.

    “Bem feito! O tiozinho tá enrolando ela. Ele prometeu que vai largar a mulher, mas até agora nada. Bem feito! É como tá na Bíblia: aqui se faz, aqui se paga” – comemora Eva Regina.

    - Não, os filhos dele me adoram! O pai já prometeu que, saindo de casa, todos nós vamos viver em Miami!

    “Ih, eles vão viver em Miami! Ela, o tiozinho e os filhos dele. Pelo jeito a mulher do tiozinho não é boa bisca, pois até os filhos gostam da periguete!” – digita.

    - Ah, mas eu não sou boba não!... – garante à amiga.

    “Ih, ela deu uma dura no tiozinho...” – escreve rapidamente Eva Regina.

    - Eu disse pra ele: “Carlos Raimundo Siqueira! Eu não nasci para ser a outra de ninguém, viu? Ou você larga a bruaca da sua mulher ou então terminamos tudo”. Ele começou a chorar e disse que...

    Neste momento Eva Regina ficou com o dedo suspenso no ar, congelada com a revelação da jovem. Só se ouvia o sinal de apito das mensagens chegando pelo Whatsapp, querendo saber o resto da história.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Lili Bénie

Lili era uma jovem com muitos sonhos, grandes sonhos... Ela vivia com os pés vinte centímetros longe do chão, e não era usando sapatos de salto alto. Era sonhando mesmo. Sonhando com uma vida de estrelato, onde seria capa de importantes revistas não só no Brasil, mas mundo afora.

Nada modesta a menina, no quesito sonhador. Seu ego era todo trabalhado na purpurina e nos strass.

Para ela, o céu não tinha limite e a estratosfera não era suficiente. Sua meta era chegar à mesosfera, bem ao lado de Meryl Streep, Angelina Jolie e Jennifer Lawrence, ou qualquer nova queridinha que aparecesse nas revistas de celebridades ou desfilasse sua graça num dos renomados tapetes vermelhos.

Contudo, a pobre da Lili não tinha – como direi sem ser cruel? – um talento suficiente para galgar a fama e o estrelato nos palcos, nas telonas, nas telinhas. Mas cá entre nós: às vezes a pessoa dá sorte, e talento não é o fator preponderante no exercício da profissão.

Lili não queria ser apenas mais um rostinho bonito no meio de tantos outros – não, senhor! Ela almejava que seu nome passasse no Enem do tempo, onde só os bons ficam nos livros da história e da arte, perpetuando seus nomes, mãos e pés na calçada da fama.

Dedicada a menina era, convenhamos. Logo tratou meio de se matricular num curso de teatro, implorando que os deuses lhe ouvissem o pedido de glória. Mas cada fala sua era o retrato mais pungido da canastrice.

Seu “Bom dia” soava de uma maneira tão falsa, que as Louis Vuitton da Saara ou da Vinte e Cinco de Março pareciam mais legítimas e verdadeiras no seu sotaque made in China.

Não foi uma, nem duas, nem mesmo dez vezes que diretores, dramaturgos, professores, colegas de palco e de tela falavam mal da pobre Lili, por trás; alguns mais cruéis falavam na frente mesmo, mandando ela ir para casa fazer outra coisa, pois o palco não era seu lugar.

Mas, se brasileiro não desiste nunca, Lili, uma mistura de portugueses, espanhóis, negros e turcos, levantava a cabeça e seguia em frente, acreditando que seu lugar era a glória – entre as estrelas. Contudo, a cada nova tentativa, levava a porta na cara.

Quando alguém, com delicadeza, para não ferir seus brios – sabe como é todo artista, né? – tentava lhe sugerir que buscasse outra profissão, Lili dizia em alto e bom som o quanto era uma incompreendida, o quanto sua arte estava à frente do seu tempo, o quanto era injustiçada, o quanto... o quanto... o quanto...

A ladainha era grande, e a criatura cheia de boas intenções virava as costas e ia embora, deixando-lhe fazer o seu discurso em cima da caixa de fósforos.

Mas é o que já disse: às vezes o imponderável acontece, e talento não é fator preponderante no exercício da profissão. Foi o que aconteceu com Lili, veja você.

De tanto ficar escutando a ladainha da criatura, que lhe pentelhava o saco a toda hora, o velho e bom Dioniso, o pai do teatro grego, resolveu matar dois coelhos com uma cajadada só.

Explico: os grandes atores e atrizes que morrem ficam lá no céu do Olimpo desfrutando dos prazeres do convívio com seus pares que muito contribuíram para as artes no mundo.

Contudo, eles sentem falta mesmo é do teatro e volta e meia retornam aos camarins para desfrutarem daquela energia que só o palco é capaz de ter. Para um ator, não há céu, por melhor que seja, que tenha mais encanto do que o cheiro de uma coxia e a expectativa da casa cheia.

Então, o velho fanfarrão do Dioniso resolveu atender ao mesmo tempo Lili e a velha guarda dos atores e atrizes do Olimpo.

Eles poderiam usar a novata atriz como seu “cavalo”, incorporando na aprendiz das artes (na verdade, não é incorporar, não, pois a física diz que dois corpos/almas não podem ocupar o mesmo lugar no espaço. O certo é dizer que trocam energias fluídicas, viu, gente? Procurei no Santo Google).

Mas, voltando: então, de repente, não mais que de repente (Salve, poetinha!!), Lili, que era tida como uma canastrona de marca maior, passou a interpretar diferentes papéis com uma competência fora de série.

Nunca antes na história deste país se viu uma transformação tão grande. O que ninguém sabia era que nomes nacionais – e até internacionais – vinham trocar energias fluídicas com a pequena.

Não importava se fosse homem ou mulher, se tivesse morrido há muito tempo ou fosse um defunto recente, se sabia ou não falar português. Nada disso importava. Nomes como Cacilda Becker, Fred Astaire, Oscarito, Laurence Olivier, Grande Otelo, Chaplin, Sérgio Cardoso, Marlene Dietrich, Zacarias, Marlon Brando, José Wilker, Giulietta Masina... a lista é longa. Para encurtar: pense num ator ou atriz famoso, de renome, com um enorme talento? Pensou? Pois Lili recebia a entidade, acredite se quiser.

Com esta parceria divina, Lili logo ultrapassou as fronteiras tupiniquins e passou a atuar e desfilar nos tapetes internacionais, virou figurinha fácil no Oscar e em festivais de cinema, televisão e teatro, sempre levando uma estatueta para a casa.

É claro que ela passava por situações constrangedoras em determinados momentos, tipo: quando alguma entidade não se contentava em apenas atuar no palco, mas queria cair na gandaia, ou quando uma entidade duelava com outra para atuar ao mesmo tempo enquanto uma cena acontecia.

Teve aquela vez em que ela fazia um caipira, o seu santo de frente naquele momento era Mazzaropi e Sir Laurence Olivier começou a declamar Hamlet em pleno estúdio.

Ninguém entendeu nada, e foi a maior zoeira porque ninguém sabia que o talento de Lili era forjado e abençoado por Dioniso, que lá de cima ria muito, divertindo-se com o pandemônio; no final, ele mandou separar os dois “espíritos de porco” que brigavam pelo corpo de Lili.

Com isso, Lili acabou ganhando fama entre os seus como alguém de “personalidade forte” (que na verdade é um eufemismo para dizer que a criatura em questão é terrível de se relacionar, egocêntrica e mal-educada).

Mas não pense que isso prejudicou sua carreira, longe disso! As revistas de celebridades adoravam, e os cofres da dublê de atriz só foram engordando mais e mais.

Aprendam, babies, ser fofo não dá Ibope. No máximo rende algumas notinhas de três linhas numa coluna de fofoca de segundo escalão.

E foi assim que Lili fez fama e fortuna, perpetuando seu nome na história como uma das melhores atrizes não só de sua geração, mas entre la crème de la crème, entre as melhores de todos os tempos, uma atriz completa.

Dioniso de vez em quando olha lá de cima, esfrega as mãos e dá uma enorme gargalhada, num contentamento só.

Pesadelo

Um cheiro tétrico invade minhas narinas. Estou de quatro, rastejando num lamaçal pestilento e pegajoso. Sinto nojo. Não consigo controlar meu corpo. Começo a evacuar ao mesmo tempo em que vomito. Sinto-me um ser repugnante. Sou repugnante. Rastejo por aquele lamaçal. Olho para os lados e nada enxergo. Uma névoa maléfica me cerca. Meu corpo dói. Ouço o eco dos meus próprios gemidos num silêncio sepulcral. A velha sensação de desamparo cresce. Sinto-me abandonado e perdido num mar de silêncio. Chamo por minha mãe, por meu pai, por Horácio, mas só os ecos de minhas palavras repercutem  no ambiente infecto. Sei que não adianta gritar. Sei também que tenho que me virar sozinho. Não tenho esperança. Tento sair daquele lamaçal rastejando, mas não consigo. De repente, vejo uma cabeça de homem surgir no lamaçal. Num primeiro momento, só a cara. O homem vai crescendo e transforma-se num imenso monstro, com dentes afiados e uma boca descomunal, que cheira a podridão. Eu sei que vou morrer. Eu tenho certeza de que vou morrer, mas fico paralisado. Não consigo fazer absolutamente nada. O homem-monstro abre a boca e avança sobre meu corpo. Grito desesperadamente.

        Acordo.
    O corpo treme sem controle.
Olho para o lado e vejo Renata, deitada, nua, dormindo numa serenidade angelical.
    Eu também estou nu e tremo convulsivamente.
    O sol despontando no horizonte entra pela porta de vidro, iluminando o quarto.
    Visto a roupa e saio.
    Na sala me sirvo de um uísque. O líquido queima a garganta. O gosto é horrível, mas bebo mesmo assim, de um só gole.
    Abro a porta de vidro que dá para a varanda. O dia vai amanhecendo lentamente. Uma bonita mistura de azul, rosa e laranja compõe o cenário.
    O mar, de um azul translúcido, é lindo de se ver.
    Lembro-me dos versos da música de Marina: “e tudo o que eu posso te dar é solidão com vista pro mar”.
    É o pior tipo de solidão: um horizonte infinito, descomunal, sem expectativa, sem esperança. Numa monocromia de céu e mar monótona.
    Sinto vontade de chorar.
    Não sou de chorar.
    O pomo de Adão sobe e desce.
    O uísque começa a fazer o efeito de esquentar o corpo, mas a alma de iceberg continua intacta.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Cida Cinderela - um folhetim televisivo

A telenovela brasileira é filha do folhetim do século XIX e descendente direta dos Romances de Cavalaria do século XIV. Mesmo passadas tantas décadas, ainda hoje vemos a estrutura do folhetim e a do melodrama serem utilizadas nas produções. Um exemplo disso é o sucesso que teve a novela Cheias de Charme, da Rede Globo, em 2012.

Os autores Filipe Miguez e Isabel de Oliveira revolucionaram o horário das 19 horas, trazendo inovações (por exemplo, utilizar a internet para lançar o clip que colocaria o trio das empregadas no mundo dos famosos), mas tendo como base uma estrutura dramática já consolidada.

A personagem Maria Aparecida, Cida para os íntimos, é o retrato de uma Cinderela que ainda carrega no peito os sonhos e anseios de uma jovem donzela de folhetim. Donzela moderna, é bom que se diga, apropriada às aventuras do século XXI, mas que ainda procura um príncipe para chamar de seu. Até a escolha do nome da personagem, Cida, parece ser o diminutivo do nome da personagem de contos de fadas, Cinderela, uma nobre que vivia como gata borralheira na cozinha, tendo como ‘carrasca’ uma madrasta má e suas duas filhas insuportáveis.

Cida-Cinderela, no século XXI, é filha de empregada, pobre, mora no quartinho dos fundos, tem como amparo somente uma madrinha que lhe dá o amor de mãe. Cida, como não podia deixar de ser, tem o coração nobre, característica de uma mocinha de folhetim. Vive de favor na casa dos Sarmentos, tendo a carteira profissional assinada, somente depois que completa 19 anos. Antes disso, recebia pelo trabalho apenas moradia, roupas doadas pelas filhas do patrão e comida e tinha que aturar a patroa-má, Sônia. Mais Cinderela não poderia haver.

Na verdade, não é apenas Cida o retrato da Cinderela dos dias atuais, contada por Filipe e Isabel. A novela teve como protagonistas três empregadas domésticas que se veem lançadas ao sucesso depois de ter o hit “Vida de empreguete” vazado na internet. Cada uma com características próprias, têm em comum a busca de uma vida melhor: Maria do Rosário quer ser cantora e compositora, Maria da Penha sonha em ser enfermeira e pagar as contas em dia e Maria Aparecida quer ser jornalista.

Três Marias que trazem para o horário das 19 horas os anseios e sonhos presentes no imaginário da classe C; anseios característicos de todas as classes sociais, é preciso ressaltar, mas principalmente da classe C brasileira, que por anos foi relegada a ter os bens de consumo e hoje sonha também os sonhos da classe média: dinheiro, fama, sucesso e estudo. São mulheres batalhadoras, que trabalham como domésticas e têm que aguentar as patroas-vilãs. Havia em cada personagem uma verossimilhança que fez o público ficar atento ao enredo durante nove meses, sendo sucesso absoluto nas redes sociais (se beneficiando desta modalidade de comunicação) e no Ibope.

Essa verossimilhança é necessária à criação de qualquer história. Cláudia Cristina Maia (UFSC), em Tradição e Modernidade: elementos narrativos na tragédia e no melodrama, lembra que Aristóteles já dizia que, para suscitar o terror e a compaixão, o público precisaria se identificar com as situações apresentadas no palco.

“As peças trágicas, então, na busca de uma identificação do palco com a plateia, constrói cuidadosamente os personagens e a trama das ações. Esses são submetidos a um princípio de verossimilhança e a trama, valendo-se de peripécias e reconhecimentos, apresenta uma mudança de felicidade ao infortúnio, mudança esta que ocorre devido a um erro grave do herói trágico. Toda fábula, então, desde a caracterização das personagens até a catástrofe final, deve ser construída em conformidade com a verossímil”.

Cida desperta essa simpatia, principalmente nas crianças, segundo pesquisa divulgada pela Rede Globo na época da novela, porque traz em si o sonho da Cinderela e de encontrar seu príncipe encantado, num mundo pós-movimento feminista. O desejo de ser amado é inerente à natureza humana e é isso o que ela busca, seja através da busca do amor compartilhado com o príncipe encantado, seja o amor compartilhado pela figura paterna.

Regina Horta Duarte, em seu estudo sobre espetáculos de circo e teatro em Minas Gerais no século XIX, definiu quatro tipos de personagens para o melodrama: vilão, heroína, herói e o tolo. Cida se enquadra no perfil da heroína: “fosse ela uma princesa ou plebeia, aparecia sempre como uma segunda figura, bela e extremamente virtuosa”. Cida era assim, não uma heroína chata, incapaz de seduzir o público. A personagem criada por Filipe Miguez e Isabel de Oliveira não foi tachada como ‘alguém doce demais’. Sua ingenuidade e boa-fé no ser humano cativaram quem assistia e torcia para que ela fosse feliz.
Samira Youssef Campedelli, em A telenovela, cita Theodor Adorno ao lembrar que a “indústria cultural tem uma necessidade voraz de novidade para recriar continuamente a mesma coisa”. É verdade. 

Apesar de todas as inovações que a novela trouxe, os autores utilizaram ferramentas que o folhetim e o melodrama têm e que são comprovadamente capazes de cativar o público. Eles beberam sua história nos contos dos irmãos Grimm, aliados os instrumentos do melodrama, para cativar o público e manter a audiência elevada.

Cláudia Cristina lembra ainda que esta identificação do público é despertada também pelo sentido de moralidade e justiça e pela simplicidade das intrigas. Ela está certa. Basta lembrar que uma boa parte da novela foi dedicada a Cida deixando de ser capacho da família Sarmento e, depois, quando ela descobriu que na verdade era filha do seu patrão.

A novela teve vários momentos de peripécias (reviravolta completa das ações) e reconhecimento (é o que faz passar da ignorância ao conhecimento) como os capítulos em que Cida descobre quem é seu pai e depois, mais à frente, ela é novamente surpreendida com outra verdade: que o seu patrão não é o seu pai, ele a tinha enganado. A cobiça foi o que motivou o tubarão do Sarmento a forjar o teste de DNA.  A importância da peripécia e reconhecimento já se consolidou desde o tempo dos gregos com suas tragédias, como a de Édipo, e desde então tem sido utilizada nos folhetins e melodramas.

Não se pode deixar de citar ainda outro fato importante para a composição desta heroína melodramática: a história da gata borralheira, menina pobre, mas com o coração nobre, já foi contada e recontada de diversas formas e a novela Cheia de charme foi mais uma a utilizar esta estrutura. Um exemplo disso é de onde vieram as três personagens: nada mais, nada menos, do que da Comunidade do Borralho.  Rosário lá vivia com o pai adotivo e Penha também, com sua família composta de ex-marido, irmão, irmã e filho. Vale lembrar que Cida não vivia no Borralho, mas sim na casa dos Sarmentos.

Contudo, depois de ter se libertado da família que a explorava e já tendo dinheiro suficiente para morar num imóvel da Zona Sul, foi justamente para a comunidade, sendo vizinha de Penha que nunca saiu de lá, apesar de ter condições financeiras depois do sucesso do clip Vida de empreguete. Cida e suas amigas são pobres, mas têm personalidade, não renegam suas origens.

Até mesmo a busca pelo perfil do príncipe encantado teve sua vez na história das 19h. Entretanto, os autores escolheram trabalhar de forma diferente, não tendo um príncipe tradicional. Cida encontrou Conrado que, a primeira vista, teria todo o perfil do príncipe encantado tradicional: alto, magro, lindo, rico, nascido em berço de ouro.

Contudo, ele se mostrou uma grande decepção para a Cinderela pós-moderna. Seu príncipe encantado estava mesmo era na figura de um jovem advogado, morador também do Borralho, pobre e não tão bonito quando o outro. Não chegava a ser feio, o jovem Helano, contudo, não tinha a beleza clássica do que se imagina como sendo de um príncipe encantado.  Mas era outro pobre de coração e ideais nobres. Casal mais perfeito, nunca houve na história deste país. 

Podemos afirmar, ao final deste artigo que Maria Aparecida cumpriu seu papel de heroína clássica, sendo feliz para sempre ao lado de seu príncipe encantado na terra do Borralho. Como diria Cláudia Cristina: “ A arte dramática operando com os sentimentos do homem”.

Ninguém resiste uma história bem contada, ou melhor, recontada.

Enquanto houver um ouvido para ouvir, ou um par de olhos para ler e alguém para escrever, as histórias farão parte do nosso cotidiano. Os arquétipos estão aí para comprovar as boas histórias permanecem.

Podem até se modificar na aparência, mas a essência humana continuará lá, porque, como já disse Joseph Campbell, “os mitos são sonhos públicos; os sonhos são mitos privados”.

PS: Este texto foi o trabalho final para a matéria 'Ficção Televisiva' referente ao curso de pós-graduação em Roteiro para cinema e TV na Universidade Veiga de Almeida/2012. O curso teve como professor Rogério Sacchi e as fontes de pesquisas foram os textos dados em sala.

O avesso do avesso

Ele nasceu com a alma pelo avesso.
Melhor dizendo, sua alma era o avesso do avesso.
Ninguém nunca notou qualquer diferença quando era um rosado bebê. Mesmo durante a primeira infância, nada se notava. Mas sua alma era o avesso do avesso, e carregaria esta sina até o final dos seus dias.

Foi só a partir dos dez anos que os primeiros sintomas começaram a surgir. Ele era um tanto ou quanto diferente dos outros meninos de calças curtas. Sim, no tempo dele, os guris tinham que vivenciar um rito de passagem ao usarem a primeira calça comprida, sinal de que já eram homens.

A primeira a notar que sua alma era o avesso do avesso foi uma menina de longas tranças negras, que usava pesados óculos de grau. Foi ela quem lhe disse, na sua sapiência dos sete anos, que ele era diferente e que não queria brincar com ninguém tão estranho assim.

Aquilo machucou seu ingênuo coração, porque na verdade o que ele queria era ficar próximo daquela menina que lhe despertava sentimentos inusitados no peito.

Seu coração batia num compasso diferente e ele intuía – já naquele tempo – que aquele modo de bater não era normal. Séculos e séculos de cultura judaico-cristã incrustada no seu dia a dia fizeram aquele pobre garoto temer ir para o inferno de Dante antes mesmo de conhecer o bardo italiano.

Ele crescia, e seu coração batia descompensado, já que trazia a alma pelo avesso do avesso. Em vão ele tentou esconder sua condição. Sempre tinha um infeliz – talvez um feliz, não sei dizer – que conseguia enxergar a índole precária do seu princípio vital.

A família já desconfiava, principalmente sua Dindinha, mas todos fingiam – ou talvez não quisessem enxergar – que ele era um ser normal. Mas não era. Nunca seria.

O tempo foi passando, e, na primavera da vida, inseguro como todos os que passam pela estação favorita dos amantes, ele tentou de todas as maneiras “desvirar” a alma e fazê-la ser igualzinha a tantas outras. Foi a um Pai de Santo, buscou os Orixás, fez regressão a vidas passadas, pediu ajuda aos padres, depois aos pastores, jogou tarô, leu todos os livros de seitas espiritualistas e até de deuses astronautas.

Não satisfeito, fez análise com um renomado e caro psicólogo, mas nada, absolutamente nada adiantou. Seu destino não era ter um âmago comum. Ele teria que passar na vida pelo ônus e pelo bônus de carregar o avesso do avesso da alma.

Já adulto, conformou-se com a situação e buscou viver a vida de maneira mais próxima do dito normal.

Trabalhou num emprego público.
Namorou.
Estudou.
Amou.
Desamou.
Amou de novo.
Brigou.
Fez as pazes.
Xingou.
Casou.
Veio o primeiro filho.
Depois o segundo.
No total foram seis.

Os netos chegaram, e durante todos esses anos teve que conviver com a alma desregrada, sem temperança, imoderada e descomedida. Às vezes esquecia que trazia consigo o avesso do avesso na alma, mas aí acontecia alguma coisa insignificante que o lembrava de sua condição.

Hoje é um senhor que caminha pelas ruas de uma grande metrópole neste vasto mundo de meu Deus. Os mais jovens não sabem dizer o que o torna tão diferente, se o sorriso largo, se a voz grave e baixa, se a presciência no olhar.

Mas notam-lhe um diferencial.

O palco e eu

Minha relação com o teatro começou muito, muito cedo. Desde que pisei no colégio, já me voluntariei para participar de algum evento que tivesse que ir à frente declamar meia dúzia de versinhos.

Era sempre uma das primeiras a levantar a mão, toda contente e feliz. Sou uma exibida, admito, e sempre gostei de aparecer sob as luzes da ribalta.

Lembro até hoje um dos muitos versinhos que declamei nos áureos tempos infantis. A primavera estava chegando, e o colégio promoveu uma grande atividade entre todas as séries, para saudar a estação das flores. Na minha turma, a professora deu para cada aluno que quis participar um pedaço de uma árvore. Para mim caiu a folha, e lá fui eu, toda vestida de verde e com dois pedaços de papel crepom recortados em formato de folhas.

Na mão esquerda, uma folha amarela e, na direita, uma verde. Lembro como se fosse hoje que eu, alegre e saltitante, fui à frente, toda exibida, dizer os seguintes versinhos:

– Sou a folha, sou verdinha, sou verdinha (mostrava o papel crepom verde), mas quando fico velha (escondia o papel crepom verde e mostrava o amarelo), fico toda amarelinha!

Foi a glória!
Fiquei quase uma semana junto com minha tia-avó, carinhosamente chamada de Dindinha, ensaiando para não fazer feio à frente de colegas, professores, minha mãe e do pastor da congregação — eu estudava num colégio metodista.

Dedicação total durante sete dias, até encontrar o tom ideal para declamar os tais versinhos primaveris. Não é para me gabar, não, mas acho que Meryl Streep não se dedicou tanto a uma performance como eu.

É bem verdade que minha diretora teatral era uma mistura de Stanislavski e Zé Celso, com uma pitadinha de Gerald Thomas. Dindinha era rigorosíssima e não aceitava menos do que a perfeição. O resultado: fui ovacionada em cena aberta! Pelo menos, é assim que me lembro.

Depois, o palco do colégio já era pouco para o meu grau de exibição. Já estava maior, tinha uns 12 anos, quando ingressei no primeiro grupo de teatro amador em Barra Mansa. Dos 12 aos 25 anos fiz teatro amador, participei de festivais (fui até cotada como finalista para ganhar o prêmio de melhor atriz; não ganhei, mas não me importei. Já valeu ter concorrido!); atuava em peças nos colégios e onde quer que nos chamássemos, no estilo mambembe mais legítimo. Era ótimo, e aprendi muito a compartilhar e a escutar o outro.

Foram vários grupos de que participei: nóS OS nus , que brincava com o título ao escrever a palavra SOS, grupo Granada, Getape e Gatson (não me lembro dos significados das siglas) e, por último, participei de algumas oficinas dadas no Sesc Barra Mansa.

Teatralmente, foi a melhor época de minha vida, porque tive professores como Luciano Maia (professor da Unirio), Roberto Lima (bailarino e professor da Escola Teatral Martins Pena), Zé Luiz, Carlos Pimentel, entre outros.

Formamos uma turma boa e unida. O Luciano, que na época morava na Urca, abriu a porta de seu apartamento para a trupe de jovens alunos barra-mansenses, que eram apaixonados por teatro. Era tão bom! Guardo nas dobras do coração a felicidade que sentia quando andava por aquelas ruas da Urca, principalmente a Ramom Franco.

A gente comia macarrão com salsinha, jogava ImaginAção e Batalha Naval e era feliz, muito feliz naquele quarto e sala. Eu sempre precisei de pouco para ser feliz, já naquela época.

Durante a vida inteira, eu pensei que, quando crescesse, seria médica.
Uma vez, minha professora de português no ginásio determinou que cada aluno deveria entrevistar um profissional cujos passos quisesse seguir, então fui entrevistar o médico de minha família, o dr. Eros.

Naquela época, tinhamos um gravador da National portátil, e fui munida com o aparelho e diversas perguntas – não sabia que isso era uma pauta. Quando mostrei o trabalho, a professora primeiro não acreditou que euzinha tivesse tido a ideia e elaborado as perguntas.

Ela disse que podia contar a verdade, porque não tiraria ponto do meu trabalho. Eu garanti a ela que tinha feito tudo sozinha, e ela insistiu, ainda não acreditando. Para dona Efigênia – este era o seu nome –, eu tinha tido ajuda de algum adulto, tipo minha mãe ou pai. Jurei de pés juntos que tudo saiu da minha cabeça, e aí dona Efigênia, depois de um minuto de silêncio, olhando dentro dos meus olhos, perguntou com voz mansa:

– O que você vai ser quando crescer ? (Eu tinha dez anos.)
– Vou ser médica! – disse, com o peito retumbante de orgulho.

Mais trinta segundos de silêncio, e ela profetizou:

– É, mas você poderia ser jornalista.

Quando ouvi suas palavras, fiquei indignada, como se a mulher tivesse me chamado de rameira ou algo que o valha. Naquela época, ser puta era ofensa.

Então quando, anos depois, na casa do Luciano, dei por mim e descobri que não queria ser médica, mas, sim, mexer com o teatro, foi uma grande descoberta. Sim, porque até então eu não encarava o teatro como algo que pudesse ter como profissão, era apenas algo que me fazia feliz e realizada. Parece coisa de maluco não associar felicidade e realização com profissão, eu sei. Mas não fiz esta associação até passar os finais de semana no apartamento do Luciano.

Resultado: resolvi fazer a prova para artes cênicas na Unirio. O Luciano ainda não tinha feito o concurso para a faculdade federal.

Escolhi para a prova prática a peça de Jean Genet As criadas. Eu e mais três amigos da trupe do Sesc de Barra Mansa prestamos vestibular para teatro. Fizemos duas provas: uma de conhecimento geral (matemática, física, português, biologia etc.); outra de conhecimento cultural (com nomes de diretores, dramaturgos, cineastas etc.); depois fizemos o teste de improvisação e, por último, uma cena escolhida previamente pelo aluno.

Como a vida inteira estudei para ser médica, meu nível de conhecimento era bom o suficiente para passar sem dificuldade; também passei bem na prova de conhecimento cultural.

O problema começou com a prova de improvisação, que foi até razoável, pelo que me lembro, mas a apresentação da cena da peça de Genet foi um desastre. O nervosismo me tomou a alma. Quando saí da sala onde me apresentei aos professores, o Luciano disse que eu estava amarela, com os lábios roxos.

Resultado: não passei, e foi um momento muito triste e decepcionante para mim. Chorei horrores, acho que chorei todas as lágrimas de minha adolescência e juventude e, tive o colo amoroso do Luciano, do Roberto, do Zé Luiz, da Kátia (que era coordenadora do curso do Sesc de Barra Mansa na época) e do Pimentel.

Chorei.
Chorei.
Chorei.
Chorei.
Chorei.

Os três amigos de Barra Mansa que fizeram a prova comigo todos passaram, e aí me senti pior ainda. Alegre, porque eles tinham passado, mas infeliz, por não poder vir para o Rio.

Hoje entendo que, realmente, mesmo que tivesse passado, não conseguiria me mudar para esta cidade que amo. Ainda tinha ‘toco de vela’ pra queimar em Barra Mansa.

Ao voltar para minha cidade, fiquei sem saber que rumo tomar, porque já tinha perdido a ilusão infantil de que queria ser médica; o teatro tinha me rejeitado, e eu ia fazer o quê? Foi aí que minha tia Tereza sugeriu que fizesse uma faculdade em Barra Mansa mesmo. Fui para a Sobeu (era o nome da faculdade na época; hoje se chama Centro Universitário de Barra Mansa), e lá tinha várias cadeiras: Direito, Enfermagem, Jornalismo, Letras, Administração etc. Fiz o vestibular outra vez e passei com uma boa colocação.

Naquela época, o aluno entrava na faculdade, fazia o primeiro ano básico e depois, dependendo da pontuação, poderia escolher a cadeira que quisesse. Ele podia escolher três cadeiras, como primeira, segunda e terceira preferência: meu primo Renno sugeriu que eu fizesse Direito. Mas eu fui categórica:

– Renno, eu nunca vou aprender a fazer direito. Já nasci torta, não tem jeito.

Ele pensou que eu estivesse brincando, mas era verdade.
Minha primeira escolha foi Jornalismo, a segunda opção foi Letras e, para fazer a vontade do meu primo, incluí Direito como terceira opção. Culpa dele. Mas acabei passando para Jornalismo, já que tive notas legais no ciclo básico.

No primeiro dia de aula da cadeira de Jornalismo me apaixonei. Foi mesmo paixão à primeira vista. Rendi-me completamente e fui entusiasmada por todo o curso, que durou quatro anos. Antes do término do primeiro período já estava trabalhando na área. Era repórter política de um jornal semanário. Desde que comecei a atuar no jornalismo, sempre escrevi sobre política.

Amo escrever sobre política. Adoooro entrevistar políticos, ir para câmaras e assembleias legislativas! Adoro mesmo, do fundo do meu coração. Vale ressaltar que não sou filiada a nenhum partido político e sequer digo em quem voto.

Tem gente que não entende o meu amor por escrever sobre uma categoria profissional tão escorraçada no Brasil. Digo que amo e explico:
A política é um grande teatro. Tem o ator principal, tem o vilão, tem o pícaro, a mocinha, a mulher fatal, tem tudo que é personagem, e o melhor de tudo é que quem hoje faz o papel do mocinho pode se transformar em vilão amanhã! Nada é fixo, é tudo variável, é mutante. Uma grande encenação, uma grande arena, no melhor e no pior sentido.
Minha visão da vida é teatral.

O teatro está dentro de mim, mesmo que eu não pise mais num palco interpretando algum personagem. Hoje eu escrevo sobre eles, os personagens. Sou jornalista e também escritora e estou entrando na seara do audivisual como roteirista.

Hoje eles, os personagens, povoam minha mente, minha vida. Basta ir ao meu blog literário para ver que o que escrevo é verdade. Lá estão os vários personagens que criei: tem Carnegão, que é apaixonado por Ritinha; tem também Matilde e Donana, que buscam uma viúva no velório sem saber quem é ela; o Adão, que acha que se casou com a mulher perfeita; o Tuninho Hilário, que sofre porque ninguém o leva a sério.

São mais de oitenta textos criados.
Meu pacto com a fantasia é grande. Muito grande.

Na verdade, meu pacto com a fantasia é enorme mesmo; contudo, reconheço que este pacto é grande por causa da palavra. Se o teatro descobri aos cinco anos, quando entrei para o colégio, a palavra eu descobri um pouco antes. Antes mesmo de saber ler.

Lá em casa, sou filha única e sempre via os adultos lendo muito. Eu queira a atenção egoística infantil e sempre encontrava alguém com a cara enfiada naqueles objetos pesados ou mesmo numa folhas grandes que mais tarde vim a saber que eram os jornais.

Lembro-me de uma vez em que estava sentada na varanda da casa do meu avô, segurando um livro grande e pesado dele. Vô Fausto era farmacêutico e tinha uns livros pesados, com pouquíssimas figuras e que ele vivia lendo.

Lembro-me de estar usando um vestido azul-marinho que pinicava a pele; eu odiava a roupa, mas minha mãe me obrigou a usar. Lá em casa criança não tinha querer.

Se fechar os olhos, posso sentir o peso do livro nas minhas pernas gordinhas e a enorme curiosidade que sentia por descobrir o que tinha naquele negócio, aqueles sinais esquisitos (mais tarde descobri que eram letras) que faziam com que o pessoal da minha casa não me desse a atenção que eu queria.

O resultado disso é que, quando fui para o colégio, já sabia escrever meu nome inteiro – e ele é grande; sabia contar de um a cem; sabia formar pequenas palavras, como ‘ovo’,  ‘papai’, ‘mamãe’, ‘mala’,  ‘casa’, ‘rosa’ etc.
Meu amor pela palavra começou aí.

Eu me lembro muito bem que numa ocasião…
Bem, mais isso é outra história.

Carla Giffoni é jornalista, com 18 anos de atuação em jornais, rádio, TV, revistas e internet. É graduada em Comunicação Social/Jornalismo pelo Centro Universitário de Barra Mansa; fez também Letras/Formação de Escritor na PUC-Rio; tem pós-graduação em Jornalismo Cultura (Estácio) e atualmente faz uma segunda pós-graduação, em Roteiro para Cinema e TV (Universidade Veiga de Almeida). Tem um blog no Recanto das Letras (www.recantodasletras.com.br/autores/carlagiffoni), onde escreve ficção e faz análise literária de diversos autores e/ou obras. Carla está para lançar seu primeiro romance e também está escrevendo, no momento, uma peça teatral.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Alexçandra

Ela nasceu para ser uma estrela a brilhar no céu infinito da constelação artística.

Era assim que dona Judith se referia à pequena que saiu de suas entranhas. Desde que ficou sabendo que estava grávida, a jovem mãe já profetizava que seu rebento faria a diferença no mundo.

Por isso, a escolha do nome foi meticulosamente planejada e, depois de muitas e muitas pesquisas em revistas e livros comprados nas bancas de jornal, decidiu que a pequerrucha se chamaria Alexçandra Sylva e Souzza.

Deste jeito mesmo. Juro!

A pequena Alexçandra Sylva e Souzza já trazia na grafia do nome toda a singularidade que o olhar materno bradava a quem quisesse ouvir.

Dona Judith, depois de noites em claro, calculando qual o melhor nome para combinar com os sobrenomes de sua família e do marido, chegou ao denominador comum de que a alcunha da filhota deveria ter a letra “z” do sobrenome dobrada, e que o “x” ao lado ao “ç” traria uma abertura para o infinito. O cedilha do “c”, aliado à perna do “y”, era como se fosse uma antena para captar energias positivas conspirando para o brilho estelar da pequena infante.

Além disso, para ajudar um pouco mais, Judith resolveu colocar um “e” entre os dois sobrenomes, para que o epíteto tivesse mais glamour e status.

Toda família chique tem um “e” unindo os sobrenomes, não é mesmo? Nem todo mundo concorda, mas esta era a opinião da mãe da little star.

Com tanta certeza no peito materno, a pequena não teve outro caminho a seguir: seria miss-atriz-modelo-apresentadora-instrumentista-cantora-bailarina.

Desde muito pequena, a mãe já matriculou a menina em diversas escolas: modelo, teatro, balé, jazz, danças cigana e afro, sapateado, piano, guitarra, teclado, violino e canto. A genitora carregava a certeza absoluta de que sua girl seria a primeira da turma em todas as matérias.

Não foi bem isso o que aconteceu... mas a mãe, orgulhosa da cria que gerou, acreditava piamente de que as professoras estavam de implicância e inveja ao não reconhecerem o talento enorme e estrondoso de sua filha.

Alexçandra era uma criança adorável, como toda criança é, e que carregava em si toda a potencialidade do mundo. Contudo, convenhamos!, estava muito longe de ser a nova Shirley Temple ou a versão feminina do século XXI de Michel nos áureos tempos dos Jackson Five!

Alexçandra não teve a oportunidade de escolha.

A mãe jurava de pé junto que desde muito pequena a filhota já pedia para ser fotografada e queria sempre estar à frente das outras menininhas de sua idade. Ainda nem engatinhava e só parava de chorar quando ela ou o marido davam um microfone de brinquedo para pequena se entreter. Nunca houve na história deste país bebê com mais suingue do que Alexçandra ao balbuciar:

- Badabadá, badabadá, badabadá!

Antes mesmo de completar um ano de vida, a pequena já era inscrita em todos concursos de pomada contra assadura para bebês.

Depois, maiorzinha, começou a fazer desfiles e participar de concursos de beleza, tal qual aquela menininha de filme de Hollywood.

A diferença é que Alexçandra nunca concorreu ao Oscar, mas isso era uma injustiça, porque se ela tivesse nascido na terra do Tio Sam, certamente a história seria outra, dizia sua mãe, cheia de empáfia.

E foi assim, de ano a ano, que a jovem Alexçandra foi crescendo mimadinha e se firmando, ou pelo menos tentando se firmar no mundo artístico.

Sempre conseguia papéis secundários no teatro, cinema, TV e propaganda, até que um dia ela conseguiu passar num teste para ser a atriz principal de um drama destes modernos, tipo “cabeça”, que só gente muito inteligente é capaz de entender, ou finge melhor que entende do que nós pobres mortais.

A meia dúzia de quatro intelectuais presentes adorou a trama e teceu enormes elogios à peça em cartaz. Com isso, Alexçandra Sylva e Souzza foi elevada ao patamar de estrela-teen precoce, por encabeçar um texto tão maravilhosamente hermético.

Como acontece frequentemente, as pessoas começaram a ir ao espetáculo porque, afinal de contas, só os inteligentes é que iam a este tipo de teatro, e como ninguém queria admitir ignorância e burrice, uma fila imensa se formou, e Alexçandra era a cada noite mais e mais ovacionada em cena.

Em pouco tempo, a televisão a chamou e aí ela, que dava uns trinta autógrafos a cada noite, começou a dar centenas por dia. Era uma estrela agora, com todas as letras maiúsculas – sempre fazendo o mesmo papel é bem verdade.

No meio disso tudo estava o orgulho de dona Judith. Seu orgulho era tão grande, que era capaz de chegar vinte minutos antes dela entrar num ambiente.

A mãe de Alexçandra Sylva e Souza dizia a quem quisesse ouvir que sempre teve certeza absoluta de que sua pequena seria alguém que brilharia na constelação, no meio de outras estrelas de maior grandeza. Dona Judith batia no peito como deve bater qualquer mãe de miss-atriz-modelo-apresentadora-instrumentista-cantora-bailarina.

Alexçandra, como toda boa estrela que se preze, começou a exigir regalias para seu camarim, tanto no teatro, como na TV, no cinema ou em qualquer evento de que participasse.

Os itens mais frequentes de sua longa lista eram:
* quinhentas toalhas brancas e felpudas;
* dez caixas de água Perrier,
* arranjos de rosas cor-de-rosa (caules longos) e brancas (caules curtos), que deveriam seguir os modelos das fotos enviadas por seu personal-florist,
* filés de tilápia,
* mixed nuts,
* sucos e chás orgânicos,
* uma espreguiçadeira,
* um espelho da Baviera,
* cinquenta quilos de gelo feito com água mineral de Caxambu,
* a ausência de qualquer coisa em roxo no seu camarim ou roupa,
* os móveis deveriam ser de material orgânico
* e o camarim deveria estar sempre com o ar-condicionado ligado à temperatura de 15ºc,
* balas e jujubas diet
e outras cositas mais porque ninguém é de ferro, né, nega?

De mimadinha, Alexçandra passou a ser uma estrela temperamental.

A assessora de imprensa (sim, ela contratou uma, bem como um personal stylist) da jovem estrela sempre se desculpava devido aos atrasos e petis que a filha de dona Judith dava, alegando estresse.

Houve alguns casos que foram abafados, como a vez em que ela avançou e arranhou a cara da cabeleireira que fazia seu penteado de época. A alegação dada é que a profissional tinha colocado a flor do lado errado.

Teve também aquela vez em que Alexçandra bateu com o microfone na cabeça do operador de som, o que não teve grandes consequências, graças a Deus, só um traumatismozinho craniano leve, bobagem pouca! Enfim, Alexçandra Sylva e Souzza se tornou um entojo.

Sua assessora de imprensa penava por ter que abafar os casos e conter o temperamento difícil da estrela. Mas como ela era uma profissional gabaritada e cheia de contatos, Alexçandra sempre aparecia em campanhas humanitárias, doando pipoca para as crianças abandonadas, ração para gatos e cachorros em canis públicos e posando ao lado de velhinhos nos asilos.

Muito fofa!

Em todas as fotos, dona Judith dava um jeito de aparecer como papagaio de pirata da filha. Às vezes dava certo; outra vezes, gentilmente era convidada a ficar de lado, sem aparecer na foto.

Dona Judith, inclusive, abriu uma página numa rede social com o seguinte título: “Sou mãe de Alexçandra Sylva e Souzza”. Não é que bombou?! Em poucos meses, a genitora da estrela já tinha milhares de seguidores.

Claro que a página de Alexçandra, feita pela sua assessoria de imprensa, bombava muito mais, mas Judith não se importava com o sucesso maior do seu rebento.

Vou te contar um “bafo”: dizem à boca pequena que Alexçandra não tinha autorização de escrever nada na sua página virtual, para não danificar sua imagem tão duramente construída pela equipe. Todas as mensagens fofas e carinhosas eram criadas pelos competentes profissionais. Mas isso é tudo bobagem mesmo, coisa de gente invejosa, que não conseguiu um lugar no firmamento!

Com tanto sucesso, tanto prestígio, tanto poder, a mãe da celebridade estava mais feliz do que pinto no lixo, até que chegou um dia em que a casa caiu.

Sim. Veja você: tudo tão maravilhosamente planejado por dona Judith e depois pela equipe de produção de Alexçandra desmoronou quando a jovem, já com vinte e cinco anos, decidiu ir para o Tibet ser monja budista ou qualquer coisa que o valha. Queria sair da vida de brilho para buscar “sua essência interior” etc. etc. etc. etc. etc. etc..

Ninguém entendeu nada: diretores, colegas de trabalho, assessoria de imprensa, público, jornalistas e, principalmente, a mãe, dona Judith.

Se Alexçandra tivesse sido atropelada por uma manada de elefantes brancos tendo em cima de cada animal uma irmã carmelita descalça do Tibet, a notícia não teria tido tanto impacto no coração da senhora Judith Silva Souza.

Coitada!

Dava pena de ver o desespero da genitora, que não aceitava a “morte” profissional da filha, que se retirava para o exílio espiritual. De nada adiantou chorar, bater no peito, rasgar a roupa, ameaçar se jogar do primeiro andar do apartamento em que morava, se descabelar de tudo que é forma. Alexçandra virou as costas e foi embora, buscar sua essência interior. Simples assim.

Como isso é muito raro, uma celebridade abandonar o estrelato por vontade própria, a mídia passou a seguir os passos de dona Judith, tentando entender o porquê de uma atitude tão drástica da jovem atriz.

Com isso, Judith começou a aparecer em revistas e programas de TV para explicar, ou tentar explicar, a situação. Uma revista de celebridades a convidou para fazer uma reportagem num castelo francês, onde a mãe pôde falar pela enésima vez que a filha buscava seu lado espiritual. Judith garantiu que, assim como ela, a filha que nunca foi ligada às coisas mundanas.

Não é que a velhota, quer dizer, a senhora da terceira idade, começou
a bombar mais e mais? Foi chamada para abrir ou fechar desfiles da Fashion Week de São Paulo e do Rio?

Te mete!

Logo dona Judith aproveitou a equipe (que já assessorava a filha) em proveito próprio e em menos de seis meses já estrelava uma peça de teatro de um cânone universal, um texto de Tchekhov; além de ser convidada para aparecer na telinha da TV.

Não quero falar da “falecida”, que Deus tenha Alexçandra na paz celestial do Tibet, mas a mãe dava de dez a zero no quesito interpretação! Muito melhor do que a filha temperamental! Muito, muito melhor!

E foi assim que todos foram felizes, cada um do seu jeito. Alexçandra tornou-se monja, raspou a cabeça e se veste de roxo, uma cor ligada à espiritualidade, e é feliz na montanha gelada do Tibet, enquanto sua mãe brilha nos palcos, telonas e telinhas pela vida afora.

Sabe não?
Ela está cotada para concorrer ao Oscar como melhor atriz de filme estrangeiro. Uma interpretação notável teve Judith Silva Souza.

Ela não quis utilizar a grafia do nome da filha. Consultando um místico, ele sugeriu que ela deixasse a grafia do jeito que era mesmo, sem papagaiar muito.

Judith Silva Souza era um nome nascido para brilhar e brilhou mesmo!


A Duquesa - análise do filme (*)

O filme A Duquesa (2008), com roteiro Jeffrey Hatcher e Anders Thomas Jensen, dirigido por Saul Dibb, mostra a vida da inglesa Georgiana Cavendish, duquesa de Devonshire: uma mulher que se mostrou, em determinados momentos de sua vida, uma pessoa à frente do seu tempo – numa época (século XVIII) em que o sexo frágil ainda não tinha queimado sutiãs em praça pública e o destino feminino certamente não era se envolver em política, sequer frequentando palanques, tampouco ajudando a eleger um primeiro-ministro e muito menos apoiando as Revoluções Francesa e Americana.

Georgiana fez tudo isso, não apenas demonstrando inteligência e perspicácia perante a corte inglesa, mas se tornando a 'queridinha' do povo.
   
O filme britânico é baseado no best-seller de Amanda Foreman, que escreveu sobre a vida da aristocrata inglesa. O diretor optou para sinalizar desde o início que se trata de um filme “baseado numa história real”, tentando capturar a simpatia do espectador num mundo pós-utópico, onde tantas conquistas femininas foram realizadas, mas nem de longe todas.

A duquesa de Devonshire é uma típica heroína do século XVIII, casando-se por conveniência com um aristocrata que só queria gerar um herdeiro e, depois, vivendo um amor impossível – que o diga Os Sofrimentos do jovem Werther (1774), obra-prima de Goethe.
   
A história desenvolvida pelo trio Hatcher-Jensen-Dibb mostra o quanto a jovem de 18 anos era ingênua, acreditando estar-se casando por amor, para descobrir, depois, que na verdade o marido queria apenas uma parideira que lhe gerasse uma porção de meninos que levassem o seu nome. O primeiro conflito surge na vida de Georgiana quando ela engravida – sempre de meninas, e quando lhe nasce algum menino, é natimorto.
   
A infelicidade matrimonial parece estar no cerne da vida aristocrática inglesa: no lançamento do livro, e também no do filme, não foram poucos os que traçaram um paralelo entre a infeliz vida matrimonial da duquesa de Devonshire e a de sua descendente direta, a princesa Diana (morta em 1997, mais de dez anos antes do lançamento do livro e do filme).
   
Mas o que torna, em pleno século XXI, uma heroína como Georgiana ainda atraente o suficiente para o livro virar best-seller e gerar um filme, que ganhou o Oscar de Melhor Figurino?
   
Podemos analisar que a necessidade dramática da heroína cumpre o seu papel: gerar conflito. Ela sofre, como deve sofrer toda heroína romântica: primeiro com a indiferença do marido – todos são cativados por sua inteligência, beleza e perspicácia, menos o duque.
   
O sofrimento não para aí: depois ela se vê traída pela única amiga que conseguiu, Lady Bess Foster, que se torna amante do duque. A duquesa a leva para viver debaixo de seu teto e recebe a punhalada ao flagrar o marido com sua melhor amiga.
   
A partir de então, com tanta desilusão no seu mapa astral, Georgiana só quer ser feliz e encontra a felicidade nos braços de um jovem político, idealista como ela: Charles Grey.
   
Sinto dificuldade em classificar o tipo arquétipo da bela duquesa. Ela é uma mistura de uma jovem heroína que une a 'criança impetuosa' (corajosa, verdadeira, leal até o fim; uma garota com determinação, que só quer ter seu próprio cantinho, ser amada pelo político idealista e viver uma linda história de amor) a características de outros arquétipos. A heroína é também a 'guerreira' – é uma lutadora dedicada, que cumpre seus compromissos; basta lembrar que ela, ao ser chantageada pelo marido, larga o amante para ficar com os quatro filhos, cumprindo sua sina de mártir. Já ela ter sido capaz de aceitar a filha bastarda do marido, que ela cria com se fosse sua, nos revela traços do arquétipo de uma grande 'mãezona'.
   
Isso a torna cativante?

Cativante o suficiente para carregar o leitor por todo o enredo? Pulando fora das páginas do livro e da sala de projeção nos cinemas?

Sinceramente?
Para a maioria dos leitores que tornaram o livro (que acabou gerando o filme) um best-seller, talvez.
Não para mim.

Vale ressaltar que não li o livro, minha análise se baseia exclusivamente no filme. Certamente algum mérito a obra tem, porque senão não teria se tornado um livro mais vendido. Contudo, sinto no filme o eterno clichê romântico que não surpreende ao final.
   
Ok, ok, ok. Admito que é um ótimo filme para se ver na Sessão da Tarde, num dia chuvoso, quando a gente fica debaixo do edredom, tomando chocolate quente e vendo o amor impossível de uma mulher do século XVIII, aquelas belas roupas (o filme ganhou o Oscar não foi à toa!). Mas, se for para realmente me emocionar com uma mulher que sofreu, prefiro 'A cor púrpura' (1985), drama dirigido por Steven Spielberg e baseado no romance epistolar da escritora Alice Walker. É apenas uma questão de gosto, vou logo avisando.

Ao se analisar a evolução da personagem principal, a duquesa, tenho a sensação de que este processo é previsível, não me surpreendendo enquanto espectadora.

Está certo que a duquesa demonstra ter uma força interior – ninguém que renegue o amor de sua vida pelo bem dos próprios filhos pode se dizer um fraco; ela sublimou os desejos próprios em virtude do bem-estar da prole. Mais romântico do que isso, nem Goethe ou nenhum dos autores do Movimento Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto) pensariam em algo melhor.

Alguns entendidos podem argumentar que este papel de sublimação do amor é próprio do gênero, ainda mais se pensando na época em que a personagem viveu. Pode ser.

Talvez eu seja ‘muderna’ demais e não consiga acreditar neste tipo de heroína. Que a duquesa seja capaz de despertar em mim a verossimilhança tão necessária para criar empatia entre personagem/espectador/leitor.

Analisemos o antagonista do filme, o marido da duquesa. Ele é um homem do seu tempo.

Claro que não estou aqui defendendo que um homem pode estuprar a própria mulher num momento de raiva, longe disso! Admito que o conflito entre eles (heroína e antagonista) é crucial para o desenvolvimento do enredo; se ele fosse um banana, a história contada seria outra.

Entretanto, não classifico os objetivos do enredo como algo vibrante e interessante, apesar de a oposição do duque ser tão forte quanto a personagem principal.

Quando disse, no início deste texto, que a duquesa foi uma mulher que mostrou ser apenas em determinados momentos de sua vida uma pessoa à frente do seu tempo é porque me lembrei de outras personagens da “vida real” que também enfrentaram situações contrárias à moral vigente e realmente optaram por viverem à margem da sociedade.

Um exemplo disso é a brasileira Chiquinha Gonzaga (1847-1935), que realmente enfrentou a sociedade patriarcal, largando o marido, os pais e a reputação para viver sua arte e seu amor por um jovem muitos anos mais novo do que ela – Chiquinha já tinha 52 anos, e o jovem era um adolescente, com 16 anos.

Este é apenas um exemplo de uma personagem que quebra todos os tabus, mostra-se realmente à frente do seu tempo. É bem verdade que Chiquinha viveu um momento histórico completamente diferente do de Georgiana, mas ela sim é uma mulher à frente do seu tempo.

O filme tem seus encantos, mas, no frigir dos ovos, não me convence.
Talvez se o foco da história fosse a luta de Georgiana perante a corte e sua influência política me convencesse mais.

Entretanto, do jeito como foi conceituada, a história mais parece uma maneira de exaltar outra figura da aristocracia inglesa, a princesa Diana, que também sofreu por se casar com um lorde que na verdade só almejava ter herdeiros enquanto desfrutava da alcova alheia.


(*) Artigo feito para o curso de pós-graduação de Roteiro para Cinema e TV da Universidade Veiga de Almeida (UVA), para a matéria PERSONAGENS,  ministrada pela professora Dayse Marques (2013).

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Cornélio


O mendigo, com ar de profeta, gritava sempre que Cornélio passava:

– O homem nasceu para ser corno!

Cornélio se segurava para não avançar em cima do profeta, quer dizer, do mendigo, e lhe dar uns golpes de MMA, que aprendeu vendo TV, tal era a sua raiva.

Esta era sua sina: sempre ser motivo de piada de terceiros. Também, com o nome que lhe deram, seria difícil não ser vítima de chacota e risinhos irônicos. O pai foi o culpado por fazê-lo carregar o nome ingrato: carola de alto grau, seu Zé Maria decidiu o destino do filho ao querer homenagear o centurião Cornélio, o primeiro gentio, ou seja, não judeu, a se converter ao cristianismo.

É por isso que Cornélio sempre se apresentava como Nélio, mas volta e meia alguém descobria seu nome inteiro e lá vinham a gozação e as piadas infames, sempre repetitivas.

A vingança de Cornélio era que seu nome poderia até ser detestável, mas a falta de originalidade de alguns era medonha, repetindo sempre a mesma piada sem graça.

Não sei se por sina ou se foi mesmo praga de alguma madrinha, mas Cornélio era sempre corneado.

Teve uma vez em que, ao confrontar a traição de uma namorada, ela admitiu mesmo que o corneava e se justificou:

– Você pega tanto no meu pé, com medo de ser corneado, que acabei te traindo mesmo. Agora tu tem motivo pra ser tão chato.

Insegurança do jovem mancebo, é claro. Mas, também, com um nome deste, a insegurança virou companheira constante!

Com isso, de tentativa em tentativa, Cornélio sempre via o momento em que o relacionamento ia pro beleléu. Não importava a plástica da garota, ele era sempre corneado.

No início, Cornélio, como todo bom homem, buscava a aparência e, apesar de não ser nenhum galã de novela das oito, quer dizer, das nove, conseguia conquistar lindas garotas, que logo despertavam a cobiça dos outros também. Daí para a traição era um pulo.

Depois, vendo que garotas lindas davam muito trabalho, resolveu apostar a conquista nas jovens que fossem ‘bunitinhas’.

Sim, aquelas que a gente sempre diz que são ‘bunitinhas’, ou seja, mais simpáticas do que propriamente lindas.
Deu certo.
Mas só no início.
Sempre aparecia alguém, e o namoro se transformava num triângulo amoroso, enfeitando mais uma vez a testa de Cornélio.

Enfezado com toda aquela situação, Cornélio decidiu ser mais radical: só pegaria tribufu. Nada de lindas ou ‘bunitinhas’; seu negócio passou a ser namorar mulher feia mesmo.

Cornélio foi fundo, tamanha era a sua raiva da vida e dos chifres que teimavam em lhe nascer na testa. Com isso, ele fez a alegria de qualquer mulher carente que encontrasse. Não importava a idade, não importava a condição social, se era bonita ou feia, gorda ou magra: sendo mulher, Cornélio se atirava de corpo e alma.

Coitado. Parecia que bastava Cornélio conquistar qualquer tipo de mulher, para que os machos em volta passassem a se interessar pela donzela em questão.

O resultado disso foi o enorme baque em seu coração e também, por que não dizer?, em sua autoestima.

Cornélio passou a ter dificuldades para dormir, começou a ter pesadelos e, mesmo não namorando ninguém, via-se sendo traído até nos momentos em que buscava os braços de Morfeu. O pobre coitado começou a colecionar grandes e profundas olheiras, emagreceu e já não conseguia sair do quarto, tal era o seu nível de depressão.

Depressão brava.
Bravíssima.
Bravérrima.

Até que um dia, no meio de tantos pesadelos, o mendigo profeta lhe apareceu nos sonhos, quer dizer, nos pesadelos, e lhe falou a tão conhecida frase:

– O homem nasceu para ser corno!

E com o olhar rútilo completou, dando de ombros:

– Se a vida lhe deu um limão, faça uma limonada! – disse, com um sorriso meio irônico, meio pedindo desculpas.

Foi a salvação de Cornélio. Ele se levantou da cama naquele dia com um vigor nunca dantes sentido. Uma mistura de esperança e fé a lhe envolver o coração, e tomou a decisão mais sábia de sua vida: fundou a Associação dos Cornos e Amigos dos Cornos (ACAC).

E logo tratou meio de fazer os três mandamentos básicos que deveriam nortear todo aquele que se filiasse à Associação dos Cornos e Amigos dos Cornos.

Fez apenas três mandamentos, porque este negócio de dez é para as Escrituras Sagradas.

Sentou-se à mesa, possuído por uma força poderosa, vinda de sua dor ‘cornística’, e escreveu:

1º - Nunca chegue em casa antes da hora em que você está acostumado a chegar;
2º - Se o Ricardão for valente, de uma de “celular”, ou seja, fique “fora da área”;
3º - Nunca fale do chifre alheio, o próximo pode ser o seu.

No início, Cornélio sentiu muita dificuldade de conseguir associados, porque ele só admitia homens para sócios:

- O peso de uma traição é diferente entre os gêneros - alegava, convicto.

Dá para entender tanta resistência entre os machos: uma ideia revolucionária sempre causa estranheza mesmo. Afinal, é extremamente difícil admitir-se corno, principalmente numa cultura machista. Por isso, ele decretou que – diferentemente de outros tipos de associações – o filiado à ACAC não pagaria nenhuma mensalidade. O fato de assumir os “galhos” já o isentava de taxa.

Cornélio estipulou, ainda, que o associado recebesse uma carteirinha que lhe dava o direito de participar de bailes e eventos. A Associação dos Cornos e dos Amigos dos Cornos passou a organizar o famoso Baile dos Chifrudos e firmou “convênio” com bares para dar descontos de até 30% aos traídos, para que eles pudessem chorar suas mágoas.

Nos casos mais graves, o associado ainda receberia, caso quisesse, assistência psicológica. Ele próprio abriu uma loja virtual, com diferentes artigos: camisetas, canetas; canecas; chapéus; capas para micros, protetores de tela, celular, iPhone.

Todos os artigos sempre com o seguinte ditado italiano:

“Se cada corno carregasse um lampião, que iluminação!”.

Apesar da demora, o sucesso veio de forma avassaladora. A Associação dos Cornos abriu franquias em todo o Brasil e começou a exportar a ideia para o restante da América Latina, Europa e Estados Unidos da América.

Cornélio virou empresário de sucesso e escreveu livros de autoajuda para os cornos deprimidos. Hoje seus livros sempre ocupam os primeiros lugares na lista dos mais vendidos no mundo; além disso, lançou resort-spa, para os cornos descansarem depois da descoberta da traição; dá palestras motivacionais pelo Brasil (tem agenda lotada!) e recentemente foi convidado para ministrar palestras numa importante faculdade americana, na Columbia.

O convite para a palestra na terra do Tio Sam veio depois de ser capa da Revista The Time, onde foi elogiado por seu empreendedorismo.

Além disso, há cerca de um mês estreou sua peça sobre as várias formas de ‘cornice’, sendo sucesso de crítica e de público.

Sua vida está para virar filme dramático dirigido por um grande cineasta brasileiro, de renome internacional - contudo, maiores detalhes estão sendo mantidos em segredo, porque a história deverá ser uma coprodução com Hollywood.

O sucesso foi sua maior vingança.

sábado, 5 de janeiro de 2013

O fim do mundo

É, o mundo não acabou.


Tobias, com a cabeça pesada de uma ressaca homérica, levanta-se no sábado, às 12h12, e tudo está igual ao dia de ontem. A torneira da pia da cozinha pingando ininterruptamente, a gritaria das crianças brincando na piscina do condomínio na maior arruaça, o filho metaleiro do 903 ensaiando em carga total, e ele mora no mesmo apartamento bagunçado de todos os dias. Quer dizer, não todos os dias, porque dona Matilde faz a faxina duas vezes na semana.

Ele acreditou que realmente o mundo acabaria na sexta-feira, dia 21.

O dia 21 veio.

O dia 21 ficou.

O dia 21 passou.

E agora o calendário marca o dia 22 de dezembro de 2012, e nadica das coisas ruins previstas aconteceu.

Quer dizer, tudo de ruim aconteceu, mas foi para Tobias: em primeiro lugar, depois de tomar alguns copos de uma batida chamada “pau na coxa”, ele deu um beliscão na bunda e lascou um beijo, de língua, no estilo desentupidor de pia, na secretária gostosa do chefe.

Não teria mal nenhum, se a criatura fosse desimpedida, mas corre à boca pequena que ela é teúda e manteúda do chefe, e quem se mete no terreiro alheio, principalmente quando o alheio é o chefe, é como se plantasse vento para colher tempestade.

“Maldita hora em que fui à festa de confraternização da firma”, pensa Tobias ao se olhar no espelho do banheiro e constatar uma gravata florida amarrada em sua cabeça, intensificando a dor que sente no crânio.

Tobias não pode garantir de quem é aquela gravata horrorosa. Ele jura de pés juntos que dele não é. Mas a infeliz está lá, e se ele chegou em casa e – o pior de tudo – dormiu com o bendito acessório masculino na cabeça é porque as coisas foram muito mais piores de ruins do que ele pensava.

“Ô, vida!!”, queixa-se.

Ao tentar utilizar o vaso sanitário, não pode: ele estava todo enxovalhado. Tobias supõe que, ao chegar em casa, tenha chamado o Raul, já que o entorno do vaso está todo emporcalhado. Uma nojeira só.

Quando está saindo do banheiro, buscando o outro, o da empregada, Tobias passa pela sala e lá encontra uma mulher esparramada no seu sofá. Ele chega perto e sacode a criatura, mas a garota aparenta ter morrido, de tão profundo que é o seu sono. A única coisa que mostra que ainda vive é o seu ronco, ainda mais potente do que a bateria do filho metaleiro do 903.

Tobias chega mais perto, para ver se reconhece a criatura, e constata, para seu espanto, que é a estagiária míope, que usa aparelho nos dentes e que tem pernas finas. Ela trabalha no setor de contabilidade, e todos a chamam de senhorita chata e certinha.

A senhorita chata e certinha não acorda nem por reza brava, por mais que o dono do apartamento a chame.

Ele insiste.

Insiste.

Insiste.

Insiste.

Desiste.

Nada vai acordar a criatura mesmo, nem uma chuva de meteoritos em chama, sequer o alinhamento de todos os planetas do sistema solar, ainda que isso tudo acontecesse ao mesmo tempo. A criatura ronca feio, e uma baba gosmenta escorre pelo canto da sua boca aberta.

“Como é que pode caber tanto ronco numa criatura tão franzina?” – questiona-se, enquanto caminha de volta para o banheiro.

Um banho deve melhorar o seu astral, porque o mundo não acabou, mas o hall de entrada do inferno Tobias deve ter subido, porque um calor descomunal impera; é como se o Tinhoso tivesse saído das profundezas e vindo morar na Cidade Maravilhosa. Tobias já não aguenta mais.

“Aqui só temos duas estações: a do verão e a do inferno”, sentencia, fazendo-se de vítima.

A água fria caindo no seu corpo é uma bênção, e ele quase sorri feliz. Não concretiza o sorriso porque a campainha da porta berra insistentemente, como se alguém quisesse tirar a família inteira da forca. Com tanto barulho, a dor de cabeça, que parecia querer ir embora, volta com carga total. Tobias, atrapalhado, sai do chuveiro com pressa de atender logo à porta, mas escorrega no tapetinho do banheiro, bate com a cintura no bidê e cai de bunda no chão.

“Já falei pra dona Matilde tirar este tapetinho horroroso daqui, mas ela acha que o apartamento é dela, e não meu. Que merda!”, reclama, xingando até a décima descendência da diarista.

A senhorita chata e certinha continua esparramada no sofá, sem se mexer um milímetro sequer. Tobias se atrapalha na hora de abrir a porta, porque o barulho infernal da campainha continua arrebentando seus tímpanos. Quando consegue destrancar a porta, abre-a de supetão e encontra ali parado em sua frente o ex-cunhado, Pedrão, junto com a mulher, o encapetado do Júnior e um carrinho contendo dois bebês gêmeos, de um ano.

– Cunhado! – grita, feliz, Pedrão, enquanto lhe puxa o corpo para dar-lhe um abraço de urso. O ex-cunhado e a família logo entram, sem ser convidados, rindo e fazendo mais barulho. Atordoado, Tobias não consegue falar nada, enquanto Pedrão não consegue deixar de falar.

– Eu, a patroa e as crianças decidimos vir passar o Natal e o Ano Novo com você. Afinal, o seu casamento com minha irmã acabou, mas você é meu brother e não vou deixar você passar essas datas festivas sozinho, não. Saímos lá de Botucatu para vir lhe fazer companhia, e nem precisa agradecer! – garante o ex-cunhado, já colocando as malas e as cuias na sala de Tobias.

O planeta pode não ter acabado, mas o mundo de Tobias acabou desde ontem.

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Arruda

Arruda é um ateu convicto. Daqueles que batem no peito e gritam para quem quiser ouvir, em alto e bom som:


– Este negócio de Deus não existe. É tudo besteira pra boi dormir! – diz, impávido colosso.

Contudo, Arruda não é um ateu comum. Ele tem algumas características inusitadas para quem bate no peito declarando-se ateu: Arruda é supersticioso. Sim, um supersticioso de carteirinha, com numeração superbaixa. Acredite se quiser.

Um primo meu – metido a intelectual – diz que quem é supersticioso é porque acredita que os objetos inanimados possam ter espíritos. Ora, como alguém que diz não acreditar em Deus e em coisas espirituais pode ter superstição, não é mesmo? Pois digo e repito, juro se for preciso: Arruda é supersticioso.

Passar debaixo de escada?

Nem pensar!

Dá gosto vê-lo correr como um corisco quando vê um gato preto!

Seu apartamento de quarto e sala no Centro da Cidade é todo decorado com enfeites de estátuas de elefantes, sempre posicionados com a tromba erguida e as costas voltadas para a porta da entrada.

Tudo isso tem um objetivo: evitar a falta de dinheiro. É bem verdade que ele vive pedindo dindim emprestado aos mais chegados, mas eu não estou aqui para falar mal de amigo.

E quando sua palma da mão começa a coçar?!

Nossa! Ele fica mais alegre do que pinto no lixo, porque tem a certeza de que ganhará dinheiro inesperadamente! Nunca ganhou, mas sempre acreditou.

Uma vez fomos almoçar e ele deixou cair um pouco de sal sobre a mesa. Você nem imagina sua cara de desespero. Imediatamente, Arruda começou a jogar o sal derramado pelos dois ombros. Como ele não lembrava se devia jogar pelo ombro esquerdo ou direito, jogou pelos dois, por via das dúvidas.

Quando perguntei o porquê do desespero, Arruda me contou que traz azar deixar o sal cair na mesa e que a pessoa que o derrubou deve jogar um pouco do tempero em um dos lados do ombro. O objetivo é espantar o diabo, que sempre fica à espreita, esperando pacientemente que o homem peque. Uma das jogadas do sal acertaria certamente o olho do Tinhoso, impedindo que o cramulhão viesse buscar sua alma pecadora.

Tenho que confessar que não entendi a lógica supersticiosa de Arruda, mas lógica e superstição são dois conceitos que não combinam, e não estou aqui para entender a mente humana, principalmente a mente humana de alguém como Arruda.

Agora, tenho que confessar: estou preocupado com o meu amigo. Afinal, o ano de 2013 está começando e, sinceramente, não sei como será a vida para Arruda. Veja você: o ano tem final 13, o calendário marca duas sextas-feiras 13 e, ainda por cima, tem o complicado mês de março, que tem os dias 3/3/2013 e 13/3/2013. São muitos números juntos numa cabeça tão supersticiosa.

No Natal, comprei os ingreditens necessários e montei dois kits de sorte. Na caixinha que dei de presente para Arruda, havia 13 objetos que, dizem os entendidos, dão sorte para quem os tem:

um pé de coelho,

um trevo de quatro folhas,

um quilo de sal grosso,

uma ferradura,

uma figa,

um olho de Hórus,

uma estrela de Davi,

13 fitinhas do Senhor do Bonfim devidamente benzidas,

um chaveiro de pimentas,

um pentagrama,

um olho de boi,

um patuá e

uma pedra de jade.

Arruda ficou emocionado com o presente e chorou cântaros de alegria com o que lhe dei.

Ah? Você quer saber o que fiz com o outro kit de boa sorte?

Bem, eu fiquei para mim.

Sabe como é, yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Tuninho Hilário

Nunca houve na história deste país figura mais engraçada do que Tuninho Hilário. Ele era tão engraçado, que bastava dizer 'bom dia' para que todos caíssem na gargalhada, como tivesse falado a mais nova pérola piadista.


Tuninho tinha este dom natural e, diferente do que se possa pensar, não era feliz por fazer os outros felizes.

Na verdade, Tuninho Hilário trazia em si uma grande tristeza a lhe moer a alma.

Não que sua vida fosse terrível. Não. Ele não sofria de nenhum mal irremediável, não havia nenhuma doença na família, tampouco tinha grandes dificuldades financeiras. Não estou dizendo que ele nadasse em dinheiro, não é isso, mas ele passava seus pequenos apertos, como 95% do povo brasileiro.

Não podemos dizer também que fosse feio. Bonito não era, é bem verdade, mas feio… feio mesmo, daqueles de doer, não era, não, senhor. Façamos-lhe justiça.

Mas, apesar de tudo, não era feliz, e o que lhe causava ainda mais depressão era que tudo o que dizia ninguém levava a sério. Todos pensavam, todos mesmo!, que o que dizia era brincadeira e, muitas vezes, o que ele queria era apenas um ouvido amigo que pudesse lhe escutar, sem risada, sem julgamento.

Resultado: foi acumulando alegrias, prazeres, mágoas, ressentimentos, raiva e outros sentimentos, bons e maus, ao longo dos anos, sem poder compartilhar com ninguém.

Este dom de fazer os outros rirem começou muito cedo. Desde o berço, os pais, avós e amigos da família, quando ouviam o pequeno Tuninho chorar, caíam na gargalhada. O dom que o Céu lhe deu se transformou numa maldição grega, daquelas com que os deuses desagraciam os pobres mortais.

E quando numa conversa ele soltava alguma frase que os outros achavam serem pérolas, de tão engraçadas, e todos caíam na gargalhada, ele ficava aflito e dizia:

– Não, eu não tô brincado, não! Juro!

O riso dobrava, e tinha gente que perdia o ar, outros faziam xixi nas calças, de tanto rir.

Com isso, a tristeza só aumentava, aumentava, aumentava. Uma vez, vendo um programa de TV destes que passam de tarde (porque ele já nem saía do quarto), Tuninho teve a ideia de procurar ajuda profissional, porque, afinal, profissional que é profissional mesmo não vai cair na gargalhada, não é mesmo?

Ledo engano.

Tuninho procurou na lista telefônica um terapeuta perto de sua casa. Foi de pijama mesmo, tendo uma capa de chuva por cima.

Quando chegou ao local, na hora em que o terapeuta abriu a porta, deu uma boa olhada na sua figura e ouviu Tuninho dizer 'boa tarde', o homem (que já era um senhor de idade, com alvos cabelos brancos) caiu na gargalhada.

Tuninho nem entrou, deu meia volta, retornou para casa e foi direto para a cama. Mas a dor era tão intensa, que ele decidiu tentar novamente.

Agora resolveu procurar um profissional de alta estirpe, não estes de lista telefônica, não, senhor. O bambambã tinha consultório na Delfim Moreira – com vista cinematográfica - de frente para o mar, e o valor da consulta equivalia a três meses de seu salário, mas Tuninho estava tão desesperado, que fez um empréstimo no banco e foi – cheio de esperança – ao consultório da celebridade terapêutica.

O médico, um jovem com cabelos arrepiados, roupa descolada e óculos de intelectual de boutique, recebeu-o todo compenetrado, sem sorriso, sem gentilezas, com o nariz levemente arrebitado, e muito ciente de sua qualificação profissional.

Um fio de esperança começou a nascer em Tuninho na mesma hora. Ele se animou, porque o terapeuta não riu neste primeiro momento e se mostrou antipaticamente sério. Mas como Tuninho não estava ali para fazer amigos e, sim, para resolver o seu problema e conseguir colocar suas aflições para fora, tendo um ouvido amigo que pudesse escutá-lo, não se importou. Profissionalismo era o que buscava e pagava além de suas posses para isso.

A primeira pergunta que o terapeuta fez foi sobre sua mãe. As mães sempre são culpadas por tudo, não é mesmo? Pois é. Apesar de aparentar ser todo ‘modernoso’, o terapeuta tocou no ponto clássico: encontrar uma desculpa para xingar a genitora de qualquer um.

Tuninho não se importou. Ele tinha um bom e amoroso relacionamento com a mãe, assim como com a família inteira. Não era este o problema.

O problema é que ninguém o levava a sério; ninguém o escutava, inclusive a mãe, o pai e todos do clã. Mas Tuninho estava disposto até a inventar algumas calúnias contra a genitora, caso fosse necessário, mesmo se fosse apenas para que alguém o escutasse e não começasse a rir da história de suas aflições.

Na primeira frase que falou, Tuninho olhou para o terapeuta, e este se mostrava com a dignidade que convém ao cargo que ocupava. Com a mão segurando o queixo, olhos atentos, o nariz ligeiramente arrebitado franzido, demonstrando grande concentração no que escutava.

Tuninho se animou, porque pela primeira vez em toda sua vida ele dizia uma frase e ninguém ria.

Cheio de esperança, Tuninho disse a segunda frase e notou que o nariz arrebitado do terapeuta franziu mais um pouco e que sua boca teve um leve franzido também, como se buscasse conter algum som que a garganta quisesse expressar.

Desconfiado, Tuninho continuou xingando a mãe e rezando para que aquela careta que ele via na cara do terapeuta, não fosse um prenúncio de gargalhada.

Tuninho falou a terceira frase, e a boca e o nariz ficavam mais e mais franzidos, como se o terapeuta estivesse buscando conter uma grande, imensa explosão.

Na quarta frase, o descolado profissional não aguentou e soltou uma gargalhada que – valha-me Deus! – foi ouvida por todo o Leblon, quiçá, por toda a Zona Sul do Rio de Janeiro!

Não adiantou xingar a mãe. O terapeuta perdeu toda a fleuma e se curvou de tanto rir; parecia uma criança se deliciando com um palhaço no picadeiro.

Uma decepção.
Uma não. Mais uma!
Foi a última vez que Tuninho procurou ajuda profissional.

“Sou um caso perdido, não tenho jeito, não”, disse a si mesmo e, ao se ouvir, teve vontade de rir, mas se conteve.
Seria desmoralização demais para uma só pessoa.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Adão

Anunciava a todos os que quisessem ouvir e também àqueles que não queriam escutar:


– Minha mulher, sim! Isso é que é mulher!

Casado há quinze anos com Maria de Lourdes, Adão tinha certeza absoluta da fidelidade da mulher, mãe amantíssima de primeira qualidade, escolhida a dedo. A última da espécie.

Para ele, este negócio de emancipação feminina, queima de sutiã em praça pública, pílula anticoncepcional e todo este blá-blá-blá não passava de balela para boi dormir. Era ele que mandava na casa e pronto, e trazia a mulher, ali, no cabresto.

– Comigo, não! Homem nenhum me passa para trás! Ricardão lá em casa não se fia, não, senhor! – garantia o arrogante marido.

Adão demorou para encontrar a mulher ideal. Nascido na Cidade Maravilhosa, namorou muito e iludiu muita menina, mas ele sabia que não acharia a esposa, a que seria a mãe de seus filhos, onde ele vivia.

Na verdade, Adão tinha a certeza de que só no interior do interior é que encontraria a mulher ideal, porque ele não era homem de sustentar periguete, não, senhor.

E foi assim que ele encontrou Maria de Lourdes, numa cidade aonde essas ‘mudernidades’ do século XXI não haviam chegado. Num lugar tão longe, que Judas tinha perdido as meias, porque as botas havia deixado dez léguas antes.

Maria de Lourdes era a personificação da mulher que ele sempre idealizou. Muito nova, recatada, virgem, do lar e temente a Deus de todo o coração.

No final, a família se encantou com a possibilidade de o clã ter um parente na cidade mais maravilhosa do mundo e acabou insistindo que a filha desse o sim ao mancebo carioca.

Maria de Lourdes, vexada com tanta atenção, ainda demorou a aceitar a corte, mas no final acabou subindo ao altar de véu, grinalda e flores de laranjeiras, conforme manda o figurino.

Adão estava realmente certo: moça como Maria de Lourdes, se existia, eram poucas. Sua meiguice e mansidão só se encontram em livros água com açúcar do século XIX.

O casamento foi uma festança de fazer gosto. Adão não se fez de rogado e pagou três garrotes de uns quatro anos cada. A festa durou um final de semana inteiro e por pouco não vai segunda-feira adentro.

A noiva chorou muito ao se despedir da família e da amiga de infância, quase irmã, chamada Gracinha. A amizade vinha de longa data, e uma vivia agarrada à outra. Mas acabou se conformando e seguindo com o, agora, marido para a cidade grande.

Adão sabia que voltar para a Cidade Maravilhosa era correr um certo risco, porque, sabe como é… cidade grande há muita tentação. Por isso ele era muito vigilante e não dava espaço para a esposa arrumar um amante e trocá-lo.

– Demorei muito para encontrar Maria de Lourdes e confio nela, mas não dou oportunidade, não. Sabe como é: a ocasião faz o ladrão, como já dizia meu velho pai. E eu é que não vou ficar aqui dando boa vida para Ricardão nenhum! – dizia, gabando-se da vigilância cerrada que fazia com a esposa.

Não demorou muito, o primeiro rebento chegou. Ainda na lua de mel, Maria de Lourdes emprenhou e nove meses depois nascia um lindo garotinho de olhos azuis, puxando a família materna, que era dada a ter olhos claros, segundo afirmou a esposa de Adão.

– Macho como deve ser, levando o nome da família e perpetuando a espécie! – dizia o pai, distribuindo charutos para comemorar o nascimento do primeiro filho.

Adão era assim mesmo, macho até a última mitocôndria celular. Não admitia ninguém ciscando no seu terreiro; não acreditava nas modernidades e avanços da espécie humana e dizia que macho era superior à fêmea.

Por estes destinos da vida, Adão teve cinco filhos, e todos homens.

– Que vocês cuidem de suas cabritas, porque estou criando um time de bodes! – falava, rindo das próprias palavras.

Enquanto isso, Maria de Lourdes levava a vida de dona de casa e mãe amantíssima, não tinha grandes ambições.

No início do casamento teve dificuldade de se adaptar à agitação da cidade grande e aprender a cuidar de uma criança. Caçula de uma grande família, não tinha experiência em limpar umbigo e dar banho no pequeno rebento.

A solução encontrada foi chamar a grande amiga, Gracinha, que se prontificou imediatamente a ajudar a companheira de infância, mudando-se para a casa de Adão. Gracinha também vinha de uma grande prole, a diferença é que foi a primeira, e todos os irmãos que vieram depois ela ajudou a criar.

E assim, a vida seguia em céu de brigadeiro. Adão a cada dois anos embuchava a esposa, que continuava naquela mansidão e recato, sempre contando com a ajuda da amiga de infância, que passou a morar definitivamente com o casal.

Adão ficou feliz com a chegada de Gracinha, porque assim poderia dar suas escapulidas, não alterando em quase nada sua vida, mesmo sendo pai de família. Como ninguém é de ferro, Adão volta e meia pulava a cerca. Nunca teve um caso sério ou que durasse mais de três encontros. Afinal, ele não precisava de mulher, tinha uma em casa, escolhida a dedo. As outras, bem, eram outras, conforme ele mesmo dizia para os amigos nas rodas de bar.

Foi assim até o dia em que ele, que não era dado a essas coisas de modernidade, decidiu seguir o conselho de um amigo e procurou na internet um vídeo destinado ao público adulto.

Vamos no popular: Adão queria mesmo era ver filme com muita sacanagem, sem precisar pagar aluguel de locadora e também sem correr o risco de ser flagrado pela esposa ou por Gracinha vendo este tipo de película. Ao alugar a fita de alguma locadora, sempre corria o risco de ser descoberto, ainda mais tendo filho-homem, com os hormônios em ebulição. Então, ver pela internet lhe pareceu uma saída mais confortável, e foi isso o que Adão fez, sempre tomando o cuido com os horários, acessando em momentos em que a casa estivesse mais vazia.

Numa tarde de abril Adão acessou uma dessas páginas e encontrou um filminho bem dos sacanas. O filme começava com duas mulheres no ‘rala e rola’. Quando começou a ver o espetáculo, algo passou a incomodar o marido de Maria de Lourdes. Ele não soube identificar imediatamente o que lhe causava o incômodo, mas de repente se deu conta:

– Mas esta que está aí pelada é minha mulher, Maria de Lourdes! – exclamou, levantando-se de supetão da cadeira.

E era mesmo. Sua mulher, mãe amantíssima, estava lá, em poses indecentes, com outra mulher. O pior ainda: a outra mulher era Gracinha. Sim, a grande amiga de infância estava ali, em rede mundial, fazendo as estripulias que os filmes de sacanagem mostram.

Adão não acreditou. Tentou se convencer de que aquela ali era alguém muito parecida com a sua mulher, que não era Maria de Lourdes, a noiva que ele escolheu a dedo, que buscou a vida inteira para colocar a aliança e que lhe gerou cinco filhos-homens!

Mas era ela mesma, sim. Maria de Lourdes poderia até ter uma sósia, mas seria muita coincidência atuar num mesmo filme uma sósia de Maria de Lourdes e outra de Gracinha. Não, isso não era capaz de haver, seria muita coincidência para um corno só.

Quando a mulher chegou com Gracinha da rua, Adão foi logo lhe querendo tomar satisfação. Quando mostrou o vídeo às duas, Gracinha ainda teve o desplante de querer negar, soltando a clássica frase:

– Não é nada disso que você está pensando!

Durante todo o tempo, Maria de Lourdes ficou quieta, enquanto Gracinha tentava convencer o marido da amiga de que aquilo que ele via não era na verdade aquilo que ele via.

O silêncio da mãe amantíssima durou quase sete minutos, mas de repente Maria de Lourdes deu um grito e bateu a mão na mesa, confessando tudo:

– É verdade! Tu é um corno mesmo! Me vigiou a vida inteira com medo de ser corno, num foi? Cagava de medo que algum Ricardão aparecesse no seu terreiro? Pois bem, não foi Ricardão, foi Ricardona!!! É de mulher que eu gosto e sempre gostei! Eu e Gracinha sempre fomos um casal, e só você não via isso, não via porque não queria ver! Corno! Tu é um corno mesmo!!! C-o-r-n-o!!!!!! – gritava a mãe amantíssima de cinco filhos enquanto avançava agredindo o marido.

Xiiiiiii… aí foi aquela confusão, nem te conto!

Adão gritava, querendo matar, procurando faca de cozinha; as duas mulheres em cima dele, tirando sangue com as unhas e mordidas; os vizinhos logo vindo separar a briga; os “deixa disso” logo aparecendo para jogar água fria na quentura… um fuzuê daqueles de arrancar rabo, precisava ver.

Para você ter uma ideia, teve até que chamar a patrulhinha, e foi todo mundo parar na delegacia ter que explicar tudo ao delegado de plantão. Um vexame, nem lhe conto!

Os meninos foram levados para a casa de vizinhos e primos distantes; Adão, depois que saiu da delegacia, não sem antes ter passado o vexame de contar e registrar tudo, sendo declarado corno oficialmente, ficou na casa de um colega de trabalho, um conjugado no Catete; já as duas messalinas, conforme ele dizia, ficaram no apartamento.

Mas é como já disse um filósofo popular cujo nome nunca sou capaz de lembrar: o tempo, ah o tempo!, cura qualquer dor, principalmente as de corno.

Depois que a poeira baixou, Maria de Lourdes, Adão e Gracinha sentaram para conversar e decidir o que fariam da vida, porque, afinal de contas, ainda tinham os cinco filhos, que precisavam de amparo e proteção.

Bem, ao menos foi esta a desculpa que Adão deu para todo mundo quando foi ao encontro do casal. Essa foi a justificativa, mas, cá entre nós, o que ele estava mesmo querendo era apaziguar o pobre coração. Sim, porque, apesar de toda a macheza, apesar de gostar de cantar de galo, Adão tinha os quatro pneus arriados pela mulher.

Sempre foi apaixonado por ela, mas nunca confessou nem a si mesmo o grande amor que abrigava em seu coração. Desde o início. Foi amor à primeira vista, sim, senhor, o que ele sentiu quando botou os olhos em Maria de Lourdes!

O resultado disso tudo: os meninos voltaram para casa; Maria de Lourdes e Gracinha continuaram juntas (como sempre) e Adão se conformou em fazer parte de um triângulo amoroso. Ele voltou para o santo lar, e todos vivem na paz e na concórdia.

Hoje Adão é, inclusive, um bem sucedido empresário de uma produtora de filmes para adultos.