quinta-feira, 20 de março de 2008

Conto de fadas (uma versão para adultos)

O relógio marcava 16h45 quando Cinderela chegou à casa de chá. Esperando impacientemente lá estava a Bela, batendo os dedos no tampo da mesa. Apesar de não estar atrasada, pois o encontro foi agendado para as 17h, Cinderela se sentiu culpada por fazer a controladora Bela esperar.

“Que demora!” – exclamou a Bela, que já nem era tão bela assim, depois de ter se casado com a Fera, tinha engordado uns 15 quilos, para dizer o mínimo.

Cinderela sentou-se à mesa e ficou quieta, contou até dez e tentou se concentrar no mantra que seu personal de ioga havia ensinado para quando estivesse muito próxima de explodir. Depois de respirar até dez por cinco seqüências seguidas, Cinderela se acalmou e, só então, conseguiu desfrutar da companhia da amiga.

“Branca de Neve ainda não chegou, como sempre”, queixa-se a Bela comendo mais um merengue lambuzado de açúcar.

“Ela sempre chega um pouco atrasada”, confirmou Cinderela já refeita da quase explosão de raiva.

“Como vão as crianças e o maridão?” – indagou a Bela.

“Ah, o Júnior está terrível! A professora disse que ele está aprontando na classe e, pelo jeito, nunca se encaixará no perfil de príncipe encantado, seguindo as pegadas do pai. Eu já nem sei como fazer. Cinderelazinha tem uma agressividade que nem sei como será, ela é toda brutalizada, não gosta de brincar de boneca e sequer usa aquelas roupas lindas cheias de fitinhas e sapatinhos de cristal. Só quer saber de aprender boxes, lutas marciais! Meus filhos não correspondem a nenhum perfil de príncipe e princesa, já não sei o que fazer com estas crianças. Sinceramente, não sei onde eu errei”, disse Cinderela caindo em prantos no meio do salão de chá.

Sem saber o que falar, Bela empurra um pedaço de bolo de chocolate dizendo:

“Come que logo vai passar. Mas e o príncipe não ajuda em nada? Você tem que se impor, Cinderela! Afinal, a criação dos filhos é de responsabilidade dos dois!” – argumenta indignada a Bela.

“Ah, o príncipe já não é mais o mesmo. Sempre me deixa de lado e agora deu para chegar muito tarde. Desconfio que ele tenha um caso com uma das empregadinhas do palácio. Ele vive de cochichos pelos cantos ao celular, agora deu para querer fazer ginástica, determinou que os costureiros reais fizessem um novo guarda-roupa novinho! Ele está naquela fase da meia-idade que não aceita a velhice. Sabe que ele já marcou consulta com um médico para fazer implante no cabelo? Ele já não me ama mais”, sentenciou Cinderela dando uma grande fungada no fino lencinho bordado que Bela tinha lhe oferecido.

“Ah, estes homens! Falaram-me que príncipe encantado era diferente, que nada! E eu acreditei na frase: ´e foram felizes para sempre’. Uma grande balela! Você não vê a Fera?! No início do casamento, tinha uma fera na minha cama, uma paixão avassaladora, e hoje?! Ah, hoje ele não quer mais saber de mim. Nossa cama é fria e a fera selvagem que aquecia os meus dias, hoje se transformou num homem que só quer ver futebol na TV. Sinceramente, não consigo entender o que tem de interessante ou inteligente num bando de 22 homens correndo atrás de uma bola e que depois quer assistir a reprise da reprise do jogo, os melhores momentos, e depois um debate sobre a mesma partida! E a Fera ainda tem a cara-de-pau de dizer que fui eu quem mudei! Que já não sou mais a mesma! Bah!, homens!”, diz a Bela engolindo um pedaço de torta de limão.
Chega Branca de Neve toda agitada, cheias de sacolas, com um lindo vestido vermelho, mostrando as pernas bronzeadas, os novos seios e bumbum turbinados e com um sorriso maravilhoso nos lábios.

Hellooow meninas! Ai que dia corrido!!! Fui ao shopping fazer umas comprinhas e tinha uma liquidação de bolsas que não resisti. Resultado: ultrapassei o limite do cartão, mas depois me entendo com o príncipe. E aí? Quais são as novidades?" – olha para os olhos vermelhos de Cinderela e indaga para a Bela – "Por que ela está chorando? ".

Antes que a Bela explicasse alguma coisa, Cinderela abre o bocão e diz: “O príncipe não me ama mais!!”.

“Ah, é isso?!” – diz ela tirando uma lixa da bolsa e passando nas grandes unhas vermelhas bem-tratadas – “O que você precisa fazer, darling, é arrumar um amante, uma paixão para aquecer os seus dias enquanto as crianças estão no colégio. Tenho certeza de que se fizer isso, tudo mudará em sua vida. Seu casamento vai esquentar, sua pele melhorará e você será certamente feliz, e o melhor, continuará desfrutando os privilégios de ser uma princesa”, sentenciou Branca.

As duas amigas olharam estarrecidas para a companheira de contos de fada. “Desde quando Branca de Neve tinha se tornado tão cínica assim?”, questionavam-se mentalmente.

“Olha, desde que me entreguei a uma paixão fora do casamento, minha vida mudou completamente. Antes ficava pelos cantos, esperando as migalhas que o príncipe tinha para me dar. Sua mãe, que no início me tratou muito bem, depois, com a convivência foi se transformando numa verdadeira bruxa, muito pior do que aquela que quis me matar. Mas mudei. Tornei-me uma outra pessoa desde que conheci a paixão nos braços do Mestre”, diz Branca de Neve revirando os olhos.

As duas amigas se olham espantada e dizem ao mesmo tempo:
“O Mestre dos Sete anões?!” – perguntam de queixo caído.

“Sim!” – diz dando um grande suspiro – “Eu sei que vocês vão dizer que ele é mais velho, que temos classes sociais diferentes e há também o pequeno problema de verticalidade, contudo, ele é um grande mestre na cama e não é à toa que recebeu este nome. O que temos é uma grande paixão, uma coisa de pele, cama, sabe?”, diz Branca de Neve toda acesa.

“Mas você pretende largar o príncipe e ir morar com o Mestre na Floresta?”, questiona Bela.

“É lógico que não, darling! Você acha que largaria todo o conforto e mordomia para viver na floresta no estilo uma cabana e um amor? Fala sério, meninas! Estamos em pleno Século XXI, ninguém mais acredita em contos de fadas”, sentencia Branca de Neve.

terça-feira, 18 de março de 2008

O peso do nome

Eles já nasceram carregando o peso do nome. Os gêmeos Caim e Abel vieram ao mundo prematuros, com sete meses, e desde sempre tiveram que lutar pela sobrevivência. A vida não era fácil, desde muitos novos ajudavam a família, vendendo limão na Feira de Santana, engraxando sapatos, sendo garotos de recados, ou fazendo qualquer bico que aparecesse e que desse para descolar uns trocados. Apesar de um ser o espelho do outro, Caim, o mais velho, era completamente diferente de seu irmão Abel. O primogênito era calado, circunspecto, dado ao silêncio e olhares parados, penetrantes. Já Abel era tido como o expansivo, falante, a alegria de qualquer festa, pois, além de cantar, também tocava sanfona e contava piada. A família, composta de 14 irmãos, sabia diferenciar com facilidade cada um deles, devido à diferença de personalidades.
Até hoje, não se sabe muito bem o porquê que Zé da Fé, escolheu o infeliz nome para a dupla. Teimoso, ele não quis ouvir o pedido da mulher, para que batizasse os dois primeiros rebentos com outros nomes. Zé bateu o pé, foi contra o padre e o escrivão, e as crianças foram registradas, carregando no nome, a tristeza de uma tragédia já anunciada e prevista.
A vida seguia, e os dois meninos cresciam, apesar de todas as diferenças de personalidade. Quando foram parar na escola rural, Caim era o que mais sofria com a molestação dos garotos, que gritavam que ele mataria o irmão. “Caim matou Abel! Caim matou Abeeeeelllll”, azucrinavam os meninos. Caim se fechou ainda mais, e não tinha quem o fizesse ir para a escola. Foi só o tempo de aprender as primeiras letras e como assinar o nome, que, logo depois, o filho mais velho de Zé da Fé, não voltou mais aos bancos escolares. Abel até que continuou indo, mas moleque, gostava mais de farrear, puxar as tranças das meninas, correr e jogar bola na hora do recreio. Por safadeza e sem ter nenhum motivo aparente, Abel não demorou muito na escola. Sequer chegou a terminar o primário, mas lia corridinho, muito melhor do que Caim. Abel era o orgulho do pai, que tinha por ele visivelmente uma preferência .
Na adolescência, Caim pouco saía, mas Abel já era tido como namorador pela vizinhança. Não podia ver um rabo de saia, um corpinho mais ou menos jeitosinho, e lá ia o Dom Juan nordestino a “engalar” as meninas faceiras da região.
Caim, quando a mãe conseguia fazer com que ele fosse em alguma festa, depois de muito pedir e insistir, sempre ficava no canto, quieto, de olhar quase parado, dando medo nas velhas beatas que compareciam aos festejos. Não foi uma nem duas vezes que Caim foi obrigado a ver algumas delas fazendo o Pai Nosso, quando passavam em sua frente. A cruz de carregar o nome bíblico maldito se tornava insuportável, havia tempo.
Teve uma vez, quando os dois já tinham completado 25 anos, Caim estava na festa de São João de sua cidade quando ele reencontrou Ritinha, uma cabocla faceira, mas séria, do tempo com quem tinha estudado no grupo escolar da dona Dodô. Ritinha, que já era linda com suas tranças negras, com a idade, sua beleza se intensificou, tornando-a tão brejeira! Assim que um viu o outro se reconheceram como sendo colegas do tempo do colégio, mas foi Ritinha que se aproximou do filho mais velho de Zé da Fé. Tímido, Caim começou a conversar, e a prosa se desenrolava com facilidade. Dava para ver que ambos tinham se sentido atraídos um pelo outro, dado os olhares que trocavam entre uma frase e outra. Ritinha até convidou Caim para dançar um pouco, mas ele não se atreveu a tanto. A cabocla não se importou, e continuou a prosa. Em determinado momento, Abel surge, com o hálito de cachaça já se fazendo notar. Ao ver a bela Ritinha conversando com o irmão, logo foi se intrometendo na conversa, tentando chamar a atenção da garota. Contudo, Ritinha demonstrou visivelmente não gostar de sua prosa e sequer das atitudes entronas, tentando monopolizar a conversa. Abel não desistiu e insistiu em dançar com a linda cabocla, mas ela negou, dando uma desculpa. Desde que o irmão tinha se intrometido na conversa, Caim se apagou e a naturalidade que estava tendo com a companheira do colégio sumiu completamente. Era sempre assim, quando Abel surgia, Caim se apagava deixando que o outro iluminasse o ambiente.
Porém, quando o irmão mais novo pegou o braço de Ritinha, tentando arrastá-la à força para o meio do salão, Caim, pela primeira vez na vida, o enfrentou, tirando a mão de Abel e olhando para ele com olhos de raiva, toda a raiva e mágoa que havia acumulado ao longo de seus anos de vida. A discussão começou, mas só se ouvia a voz de Abel, que gritava. Caim respondia, mas a voz era baixa, grossa, um tipo de voz que parece que vem das cavernas do coração. Não se sabe muito bem em que momento se deu e como isso aconteceu. Foi tudo muito rápido, só foi o tempo de se ouvir alguém gritar: “A faca!”. E um dos filhos de Zé da Fé estava estendido no chão, todo ensangüentado. Uma roda se fez, e teve gente correndo de todos os lados para ver a cena do crime. Ritinha, ajoelhada e com as mãos sujas de sangue, tentando estancar a hemorragia, gritava chamando por socorro. Caim com a camisa empapuçada de sangue, com os olhos estalados, olhava o céu, como se esperasse os anjos do Senhor aparecerem a qualquer momento para levá-lo. Ao seu lado, Abel, olhava a faca que carregava nas mãos, sem ainda entender como toda aquela tragédia tinha acontecido. Sem acreditar, sem ter consciência direito do que tinha feito, com um olhar espantado, trágico.
Pois é. Foi assim que a tragédia nordestina se fez, seguindo a sina bíblica. Porém, um pouco diferente. Não foi Caim que matou Abel na Feira de Santana, mas sim Abel que matou Caim.