sexta-feira, 28 de novembro de 2008

João Valentão (*)

João Valentão. Este era o seu nome. Conhecido pelas redondezas e também pelas bandas de lá e de cá, sua fama corria estrada, chegando até onde a vista não alcança. Desde pequeno, quando ajudava o portuga do armazém a descarregar sacos de batata e de farinha, já mostrava seu dom para a briga. Com a lida de carregar peso, os músculos cresceram e também sua valentia, tornando-o uma figura notória. Bastava ele chegar para que a conversa diminuísse, quem estivesse por perto logo ficava pianinho, não importava se era doutor, juiz, padre ou sacristão. Qualquer mortal tremia na base quando aquele negro, de quase dois metros de altura e com um peito de remador, concentrava seu olhar avermelhado e penetrante em cima do dito cujo.
Moça de família não se atrevia a olhar mais do que duas vezes para sua figura lendária. Mesmo as meninas da Luz Vermelha tinham medo quando ele chegava à casa da polaca Madame Fifi, que tinha um falso sotaque francês. Elas temiam ir para cama com ele e fazer alguma coisa que desagradasse, mas também tinham medo de recusar carinhos e padecer pela ofensa praticada. Quando ele ia ao local uma tensão pairava no ar e quem fosse a escolhida era olhada com compaixão pelas outras. Afinal, a infeliz teria que se deitar com o diabo em forma de gente.
Contudo, vida de valentão não é fácil não, seu moço. Posso garantir. Não é sem esforço. É como minha avó sempre dizia: Cria fama, deita na cama. Fazer sucesso não é simples, mas se manter no topo, ah, isso sim é muito difícil. Volta e meia aparecia algum filho de uma boa mãe querendo medir força com ele. Com seus bíceps de aço, que tinham a circunferência de três palmos de mão de um homem adulto, João sempre conseguia uns trocados extras em disputa de queda de braço. Isso enchia de coragem aqueles que não tinham valentia suficiente para xingar o valentão, chamando para uma briga, tendo uma atitude de homem. Então apostavam com ele uma queda de braço. João sabia que quando perdesse uma queda de braço, seria o início do fim do seu reinado naquelas bandas de meu Deus. João Valentão não tinha ilusão de que se não fosse por sua força e cara de anjo caído, seria apenas mais um João, pobre, analfabeto de pai e mãe, comendo quando Deus quisesse e padecendo de frio. Um esquecido. Por isso, quando algum homem aparecia querendo enfrentá-lo, João Valentão logo sentia o peito oprimir, não importando se o cabra em questão fosse parrudo ou não. João tinha medo de perder o poder e se transformar em apenas um simples João.
Como tudo aquilo de que se tem um grande medo normalmente se concretiza, materializando os mais temidos pesadelos, um dia surgiu um adversário para o valentão das redondezas. Mas não era um adversário comum não, conforme esperava o João. Na verdade era uma adversária. Isso mesmo, uma mulher de saia esvoaçante e com nome de mar: Marina. Realmente, seu moço, a mãe da pequena estava inspirada pelo Padim Ciço ao escolher o nome da filha, pois os olhos da mulata eram tão verdes como o mar de Itapuã em dia ensolarado, sem nenhuma nuvem. Uma belezura de fazer gosto a qualquer poeta de botequim ou mesmo àqueles que apareciam com versos na Gazeta.
João logo quis se aproximar de tão bela formosura, mas a moça, de família, não lhe dava bola e de nada adiantavam os agrados que enviava por moleques. João tinha interesse sério pela mulata brejeira, do tipo fazer promessa em frente ao juiz e do padre. Mas Marina não se comovia e certa vez mandou recado dizendo que parasse de enviar tantos agrados, que os presentes de nada valiam, pois ela não queria acabar a vida sendo viúva antes do tempo por ter casado com o valentão daquelas bandas. Se ele realmente a quisesse, teria que largar a vida de valentia e se tornar um homem comum, um João qualquer. O amor, seu moço, é capaz disso. De transformar a sina de um valentão em um João como tantos os outros Joões. O Valentão deixou a valentia de lado, pegou a morena e sumiu num galope, neste mundo de meu Deus. Hoje ninguém sabe mais que fim levou. Há quem diga que eles moram lá depois da Mata Seca, num fim de mundo de Padim Ciço, com um bando de filhos de olhos verdes. João planta e colhe apenas macaxeira, vivendo da terra com a valentia do seu suor.

(*) Inspirado na música de Dorival Caymmi: “João Valentão”. Exercício feito na Faculdade de Letras/Formação de Escritor em cima da música de Caymmi.