sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Cida Cinderela - um folhetim televisivo

A telenovela brasileira é filha do folhetim do século XIX e descendente direta dos Romances de Cavalaria do século XIV. Mesmo passadas tantas décadas, ainda hoje vemos a estrutura do folhetim e a do melodrama serem utilizadas nas produções. Um exemplo disso é o sucesso que teve a novela Cheias de Charme, da Rede Globo, em 2012.

Os autores Filipe Miguez e Isabel de Oliveira revolucionaram o horário das 19 horas, trazendo inovações (por exemplo, utilizar a internet para lançar o clip que colocaria o trio das empregadas no mundo dos famosos), mas tendo como base uma estrutura dramática já consolidada.

A personagem Maria Aparecida, Cida para os íntimos, é o retrato de uma Cinderela que ainda carrega no peito os sonhos e anseios de uma jovem donzela de folhetim. Donzela moderna, é bom que se diga, apropriada às aventuras do século XXI, mas que ainda procura um príncipe para chamar de seu. Até a escolha do nome da personagem, Cida, parece ser o diminutivo do nome da personagem de contos de fadas, Cinderela, uma nobre que vivia como gata borralheira na cozinha, tendo como ‘carrasca’ uma madrasta má e suas duas filhas insuportáveis.

Cida-Cinderela, no século XXI, é filha de empregada, pobre, mora no quartinho dos fundos, tem como amparo somente uma madrinha que lhe dá o amor de mãe. Cida, como não podia deixar de ser, tem o coração nobre, característica de uma mocinha de folhetim. Vive de favor na casa dos Sarmentos, tendo a carteira profissional assinada, somente depois que completa 19 anos. Antes disso, recebia pelo trabalho apenas moradia, roupas doadas pelas filhas do patrão e comida e tinha que aturar a patroa-má, Sônia. Mais Cinderela não poderia haver.

Na verdade, não é apenas Cida o retrato da Cinderela dos dias atuais, contada por Filipe e Isabel. A novela teve como protagonistas três empregadas domésticas que se veem lançadas ao sucesso depois de ter o hit “Vida de empreguete” vazado na internet. Cada uma com características próprias, têm em comum a busca de uma vida melhor: Maria do Rosário quer ser cantora e compositora, Maria da Penha sonha em ser enfermeira e pagar as contas em dia e Maria Aparecida quer ser jornalista.

Três Marias que trazem para o horário das 19 horas os anseios e sonhos presentes no imaginário da classe C; anseios característicos de todas as classes sociais, é preciso ressaltar, mas principalmente da classe C brasileira, que por anos foi relegada a ter os bens de consumo e hoje sonha também os sonhos da classe média: dinheiro, fama, sucesso e estudo. São mulheres batalhadoras, que trabalham como domésticas e têm que aguentar as patroas-vilãs. Havia em cada personagem uma verossimilhança que fez o público ficar atento ao enredo durante nove meses, sendo sucesso absoluto nas redes sociais (se beneficiando desta modalidade de comunicação) e no Ibope.

Essa verossimilhança é necessária à criação de qualquer história. Cláudia Cristina Maia (UFSC), em Tradição e Modernidade: elementos narrativos na tragédia e no melodrama, lembra que Aristóteles já dizia que, para suscitar o terror e a compaixão, o público precisaria se identificar com as situações apresentadas no palco.

“As peças trágicas, então, na busca de uma identificação do palco com a plateia, constrói cuidadosamente os personagens e a trama das ações. Esses são submetidos a um princípio de verossimilhança e a trama, valendo-se de peripécias e reconhecimentos, apresenta uma mudança de felicidade ao infortúnio, mudança esta que ocorre devido a um erro grave do herói trágico. Toda fábula, então, desde a caracterização das personagens até a catástrofe final, deve ser construída em conformidade com a verossímil”.

Cida desperta essa simpatia, principalmente nas crianças, segundo pesquisa divulgada pela Rede Globo na época da novela, porque traz em si o sonho da Cinderela e de encontrar seu príncipe encantado, num mundo pós-movimento feminista. O desejo de ser amado é inerente à natureza humana e é isso o que ela busca, seja através da busca do amor compartilhado com o príncipe encantado, seja o amor compartilhado pela figura paterna.

Regina Horta Duarte, em seu estudo sobre espetáculos de circo e teatro em Minas Gerais no século XIX, definiu quatro tipos de personagens para o melodrama: vilão, heroína, herói e o tolo. Cida se enquadra no perfil da heroína: “fosse ela uma princesa ou plebeia, aparecia sempre como uma segunda figura, bela e extremamente virtuosa”. Cida era assim, não uma heroína chata, incapaz de seduzir o público. A personagem criada por Filipe Miguez e Isabel de Oliveira não foi tachada como ‘alguém doce demais’. Sua ingenuidade e boa-fé no ser humano cativaram quem assistia e torcia para que ela fosse feliz.
Samira Youssef Campedelli, em A telenovela, cita Theodor Adorno ao lembrar que a “indústria cultural tem uma necessidade voraz de novidade para recriar continuamente a mesma coisa”. É verdade. 

Apesar de todas as inovações que a novela trouxe, os autores utilizaram ferramentas que o folhetim e o melodrama têm e que são comprovadamente capazes de cativar o público. Eles beberam sua história nos contos dos irmãos Grimm, aliados os instrumentos do melodrama, para cativar o público e manter a audiência elevada.

Cláudia Cristina lembra ainda que esta identificação do público é despertada também pelo sentido de moralidade e justiça e pela simplicidade das intrigas. Ela está certa. Basta lembrar que uma boa parte da novela foi dedicada a Cida deixando de ser capacho da família Sarmento e, depois, quando ela descobriu que na verdade era filha do seu patrão.

A novela teve vários momentos de peripécias (reviravolta completa das ações) e reconhecimento (é o que faz passar da ignorância ao conhecimento) como os capítulos em que Cida descobre quem é seu pai e depois, mais à frente, ela é novamente surpreendida com outra verdade: que o seu patrão não é o seu pai, ele a tinha enganado. A cobiça foi o que motivou o tubarão do Sarmento a forjar o teste de DNA.  A importância da peripécia e reconhecimento já se consolidou desde o tempo dos gregos com suas tragédias, como a de Édipo, e desde então tem sido utilizada nos folhetins e melodramas.

Não se pode deixar de citar ainda outro fato importante para a composição desta heroína melodramática: a história da gata borralheira, menina pobre, mas com o coração nobre, já foi contada e recontada de diversas formas e a novela Cheia de charme foi mais uma a utilizar esta estrutura. Um exemplo disso é de onde vieram as três personagens: nada mais, nada menos, do que da Comunidade do Borralho.  Rosário lá vivia com o pai adotivo e Penha também, com sua família composta de ex-marido, irmão, irmã e filho. Vale lembrar que Cida não vivia no Borralho, mas sim na casa dos Sarmentos.

Contudo, depois de ter se libertado da família que a explorava e já tendo dinheiro suficiente para morar num imóvel da Zona Sul, foi justamente para a comunidade, sendo vizinha de Penha que nunca saiu de lá, apesar de ter condições financeiras depois do sucesso do clip Vida de empreguete. Cida e suas amigas são pobres, mas têm personalidade, não renegam suas origens.

Até mesmo a busca pelo perfil do príncipe encantado teve sua vez na história das 19h. Entretanto, os autores escolheram trabalhar de forma diferente, não tendo um príncipe tradicional. Cida encontrou Conrado que, a primeira vista, teria todo o perfil do príncipe encantado tradicional: alto, magro, lindo, rico, nascido em berço de ouro.

Contudo, ele se mostrou uma grande decepção para a Cinderela pós-moderna. Seu príncipe encantado estava mesmo era na figura de um jovem advogado, morador também do Borralho, pobre e não tão bonito quando o outro. Não chegava a ser feio, o jovem Helano, contudo, não tinha a beleza clássica do que se imagina como sendo de um príncipe encantado.  Mas era outro pobre de coração e ideais nobres. Casal mais perfeito, nunca houve na história deste país. 

Podemos afirmar, ao final deste artigo que Maria Aparecida cumpriu seu papel de heroína clássica, sendo feliz para sempre ao lado de seu príncipe encantado na terra do Borralho. Como diria Cláudia Cristina: “ A arte dramática operando com os sentimentos do homem”.

Ninguém resiste uma história bem contada, ou melhor, recontada.

Enquanto houver um ouvido para ouvir, ou um par de olhos para ler e alguém para escrever, as histórias farão parte do nosso cotidiano. Os arquétipos estão aí para comprovar as boas histórias permanecem.

Podem até se modificar na aparência, mas a essência humana continuará lá, porque, como já disse Joseph Campbell, “os mitos são sonhos públicos; os sonhos são mitos privados”.

PS: Este texto foi o trabalho final para a matéria 'Ficção Televisiva' referente ao curso de pós-graduação em Roteiro para cinema e TV na Universidade Veiga de Almeida/2012. O curso teve como professor Rogério Sacchi e as fontes de pesquisas foram os textos dados em sala.

O avesso do avesso

Ele nasceu com a alma pelo avesso.
Melhor dizendo, sua alma era o avesso do avesso.
Ninguém nunca notou qualquer diferença quando era um rosado bebê. Mesmo durante a primeira infância, nada se notava. Mas sua alma era o avesso do avesso, e carregaria esta sina até o final dos seus dias.

Foi só a partir dos dez anos que os primeiros sintomas começaram a surgir. Ele era um tanto ou quanto diferente dos outros meninos de calças curtas. Sim, no tempo dele, os guris tinham que vivenciar um rito de passagem ao usarem a primeira calça comprida, sinal de que já eram homens.

A primeira a notar que sua alma era o avesso do avesso foi uma menina de longas tranças negras, que usava pesados óculos de grau. Foi ela quem lhe disse, na sua sapiência dos sete anos, que ele era diferente e que não queria brincar com ninguém tão estranho assim.

Aquilo machucou seu ingênuo coração, porque na verdade o que ele queria era ficar próximo daquela menina que lhe despertava sentimentos inusitados no peito.

Seu coração batia num compasso diferente e ele intuía – já naquele tempo – que aquele modo de bater não era normal. Séculos e séculos de cultura judaico-cristã incrustada no seu dia a dia fizeram aquele pobre garoto temer ir para o inferno de Dante antes mesmo de conhecer o bardo italiano.

Ele crescia, e seu coração batia descompensado, já que trazia a alma pelo avesso do avesso. Em vão ele tentou esconder sua condição. Sempre tinha um infeliz – talvez um feliz, não sei dizer – que conseguia enxergar a índole precária do seu princípio vital.

A família já desconfiava, principalmente sua Dindinha, mas todos fingiam – ou talvez não quisessem enxergar – que ele era um ser normal. Mas não era. Nunca seria.

O tempo foi passando, e, na primavera da vida, inseguro como todos os que passam pela estação favorita dos amantes, ele tentou de todas as maneiras “desvirar” a alma e fazê-la ser igualzinha a tantas outras. Foi a um Pai de Santo, buscou os Orixás, fez regressão a vidas passadas, pediu ajuda aos padres, depois aos pastores, jogou tarô, leu todos os livros de seitas espiritualistas e até de deuses astronautas.

Não satisfeito, fez análise com um renomado e caro psicólogo, mas nada, absolutamente nada adiantou. Seu destino não era ter um âmago comum. Ele teria que passar na vida pelo ônus e pelo bônus de carregar o avesso do avesso da alma.

Já adulto, conformou-se com a situação e buscou viver a vida de maneira mais próxima do dito normal.

Trabalhou num emprego público.
Namorou.
Estudou.
Amou.
Desamou.
Amou de novo.
Brigou.
Fez as pazes.
Xingou.
Casou.
Veio o primeiro filho.
Depois o segundo.
No total foram seis.

Os netos chegaram, e durante todos esses anos teve que conviver com a alma desregrada, sem temperança, imoderada e descomedida. Às vezes esquecia que trazia consigo o avesso do avesso na alma, mas aí acontecia alguma coisa insignificante que o lembrava de sua condição.

Hoje é um senhor que caminha pelas ruas de uma grande metrópole neste vasto mundo de meu Deus. Os mais jovens não sabem dizer o que o torna tão diferente, se o sorriso largo, se a voz grave e baixa, se a presciência no olhar.

Mas notam-lhe um diferencial.

O palco e eu

Minha relação com o teatro começou muito, muito cedo. Desde que pisei no colégio, já me voluntariei para participar de algum evento que tivesse que ir à frente declamar meia dúzia de versinhos.

Era sempre uma das primeiras a levantar a mão, toda contente e feliz. Sou uma exibida, admito, e sempre gostei de aparecer sob as luzes da ribalta.

Lembro até hoje um dos muitos versinhos que declamei nos áureos tempos infantis. A primavera estava chegando, e o colégio promoveu uma grande atividade entre todas as séries, para saudar a estação das flores. Na minha turma, a professora deu para cada aluno que quis participar um pedaço de uma árvore. Para mim caiu a folha, e lá fui eu, toda vestida de verde e com dois pedaços de papel crepom recortados em formato de folhas.

Na mão esquerda, uma folha amarela e, na direita, uma verde. Lembro como se fosse hoje que eu, alegre e saltitante, fui à frente, toda exibida, dizer os seguintes versinhos:

– Sou a folha, sou verdinha, sou verdinha (mostrava o papel crepom verde), mas quando fico velha (escondia o papel crepom verde e mostrava o amarelo), fico toda amarelinha!

Foi a glória!
Fiquei quase uma semana junto com minha tia-avó, carinhosamente chamada de Dindinha, ensaiando para não fazer feio à frente de colegas, professores, minha mãe e do pastor da congregação — eu estudava num colégio metodista.

Dedicação total durante sete dias, até encontrar o tom ideal para declamar os tais versinhos primaveris. Não é para me gabar, não, mas acho que Meryl Streep não se dedicou tanto a uma performance como eu.

É bem verdade que minha diretora teatral era uma mistura de Stanislavski e Zé Celso, com uma pitadinha de Gerald Thomas. Dindinha era rigorosíssima e não aceitava menos do que a perfeição. O resultado: fui ovacionada em cena aberta! Pelo menos, é assim que me lembro.

Depois, o palco do colégio já era pouco para o meu grau de exibição. Já estava maior, tinha uns 12 anos, quando ingressei no primeiro grupo de teatro amador em Barra Mansa. Dos 12 aos 25 anos fiz teatro amador, participei de festivais (fui até cotada como finalista para ganhar o prêmio de melhor atriz; não ganhei, mas não me importei. Já valeu ter concorrido!); atuava em peças nos colégios e onde quer que nos chamássemos, no estilo mambembe mais legítimo. Era ótimo, e aprendi muito a compartilhar e a escutar o outro.

Foram vários grupos de que participei: nóS OS nus , que brincava com o título ao escrever a palavra SOS, grupo Granada, Getape e Gatson (não me lembro dos significados das siglas) e, por último, participei de algumas oficinas dadas no Sesc Barra Mansa.

Teatralmente, foi a melhor época de minha vida, porque tive professores como Luciano Maia (professor da Unirio), Roberto Lima (bailarino e professor da Escola Teatral Martins Pena), Zé Luiz, Carlos Pimentel, entre outros.

Formamos uma turma boa e unida. O Luciano, que na época morava na Urca, abriu a porta de seu apartamento para a trupe de jovens alunos barra-mansenses, que eram apaixonados por teatro. Era tão bom! Guardo nas dobras do coração a felicidade que sentia quando andava por aquelas ruas da Urca, principalmente a Ramom Franco.

A gente comia macarrão com salsinha, jogava ImaginAção e Batalha Naval e era feliz, muito feliz naquele quarto e sala. Eu sempre precisei de pouco para ser feliz, já naquela época.

Durante a vida inteira, eu pensei que, quando crescesse, seria médica.
Uma vez, minha professora de português no ginásio determinou que cada aluno deveria entrevistar um profissional cujos passos quisesse seguir, então fui entrevistar o médico de minha família, o dr. Eros.

Naquela época, tinhamos um gravador da National portátil, e fui munida com o aparelho e diversas perguntas – não sabia que isso era uma pauta. Quando mostrei o trabalho, a professora primeiro não acreditou que euzinha tivesse tido a ideia e elaborado as perguntas.

Ela disse que podia contar a verdade, porque não tiraria ponto do meu trabalho. Eu garanti a ela que tinha feito tudo sozinha, e ela insistiu, ainda não acreditando. Para dona Efigênia – este era o seu nome –, eu tinha tido ajuda de algum adulto, tipo minha mãe ou pai. Jurei de pés juntos que tudo saiu da minha cabeça, e aí dona Efigênia, depois de um minuto de silêncio, olhando dentro dos meus olhos, perguntou com voz mansa:

– O que você vai ser quando crescer ? (Eu tinha dez anos.)
– Vou ser médica! – disse, com o peito retumbante de orgulho.

Mais trinta segundos de silêncio, e ela profetizou:

– É, mas você poderia ser jornalista.

Quando ouvi suas palavras, fiquei indignada, como se a mulher tivesse me chamado de rameira ou algo que o valha. Naquela época, ser puta era ofensa.

Então quando, anos depois, na casa do Luciano, dei por mim e descobri que não queria ser médica, mas, sim, mexer com o teatro, foi uma grande descoberta. Sim, porque até então eu não encarava o teatro como algo que pudesse ter como profissão, era apenas algo que me fazia feliz e realizada. Parece coisa de maluco não associar felicidade e realização com profissão, eu sei. Mas não fiz esta associação até passar os finais de semana no apartamento do Luciano.

Resultado: resolvi fazer a prova para artes cênicas na Unirio. O Luciano ainda não tinha feito o concurso para a faculdade federal.

Escolhi para a prova prática a peça de Jean Genet As criadas. Eu e mais três amigos da trupe do Sesc de Barra Mansa prestamos vestibular para teatro. Fizemos duas provas: uma de conhecimento geral (matemática, física, português, biologia etc.); outra de conhecimento cultural (com nomes de diretores, dramaturgos, cineastas etc.); depois fizemos o teste de improvisação e, por último, uma cena escolhida previamente pelo aluno.

Como a vida inteira estudei para ser médica, meu nível de conhecimento era bom o suficiente para passar sem dificuldade; também passei bem na prova de conhecimento cultural.

O problema começou com a prova de improvisação, que foi até razoável, pelo que me lembro, mas a apresentação da cena da peça de Genet foi um desastre. O nervosismo me tomou a alma. Quando saí da sala onde me apresentei aos professores, o Luciano disse que eu estava amarela, com os lábios roxos.

Resultado: não passei, e foi um momento muito triste e decepcionante para mim. Chorei horrores, acho que chorei todas as lágrimas de minha adolescência e juventude e, tive o colo amoroso do Luciano, do Roberto, do Zé Luiz, da Kátia (que era coordenadora do curso do Sesc de Barra Mansa na época) e do Pimentel.

Chorei.
Chorei.
Chorei.
Chorei.
Chorei.

Os três amigos de Barra Mansa que fizeram a prova comigo todos passaram, e aí me senti pior ainda. Alegre, porque eles tinham passado, mas infeliz, por não poder vir para o Rio.

Hoje entendo que, realmente, mesmo que tivesse passado, não conseguiria me mudar para esta cidade que amo. Ainda tinha ‘toco de vela’ pra queimar em Barra Mansa.

Ao voltar para minha cidade, fiquei sem saber que rumo tomar, porque já tinha perdido a ilusão infantil de que queria ser médica; o teatro tinha me rejeitado, e eu ia fazer o quê? Foi aí que minha tia Tereza sugeriu que fizesse uma faculdade em Barra Mansa mesmo. Fui para a Sobeu (era o nome da faculdade na época; hoje se chama Centro Universitário de Barra Mansa), e lá tinha várias cadeiras: Direito, Enfermagem, Jornalismo, Letras, Administração etc. Fiz o vestibular outra vez e passei com uma boa colocação.

Naquela época, o aluno entrava na faculdade, fazia o primeiro ano básico e depois, dependendo da pontuação, poderia escolher a cadeira que quisesse. Ele podia escolher três cadeiras, como primeira, segunda e terceira preferência: meu primo Renno sugeriu que eu fizesse Direito. Mas eu fui categórica:

– Renno, eu nunca vou aprender a fazer direito. Já nasci torta, não tem jeito.

Ele pensou que eu estivesse brincando, mas era verdade.
Minha primeira escolha foi Jornalismo, a segunda opção foi Letras e, para fazer a vontade do meu primo, incluí Direito como terceira opção. Culpa dele. Mas acabei passando para Jornalismo, já que tive notas legais no ciclo básico.

No primeiro dia de aula da cadeira de Jornalismo me apaixonei. Foi mesmo paixão à primeira vista. Rendi-me completamente e fui entusiasmada por todo o curso, que durou quatro anos. Antes do término do primeiro período já estava trabalhando na área. Era repórter política de um jornal semanário. Desde que comecei a atuar no jornalismo, sempre escrevi sobre política.

Amo escrever sobre política. Adoooro entrevistar políticos, ir para câmaras e assembleias legislativas! Adoro mesmo, do fundo do meu coração. Vale ressaltar que não sou filiada a nenhum partido político e sequer digo em quem voto.

Tem gente que não entende o meu amor por escrever sobre uma categoria profissional tão escorraçada no Brasil. Digo que amo e explico:
A política é um grande teatro. Tem o ator principal, tem o vilão, tem o pícaro, a mocinha, a mulher fatal, tem tudo que é personagem, e o melhor de tudo é que quem hoje faz o papel do mocinho pode se transformar em vilão amanhã! Nada é fixo, é tudo variável, é mutante. Uma grande encenação, uma grande arena, no melhor e no pior sentido.
Minha visão da vida é teatral.

O teatro está dentro de mim, mesmo que eu não pise mais num palco interpretando algum personagem. Hoje eu escrevo sobre eles, os personagens. Sou jornalista e também escritora e estou entrando na seara do audivisual como roteirista.

Hoje eles, os personagens, povoam minha mente, minha vida. Basta ir ao meu blog literário para ver que o que escrevo é verdade. Lá estão os vários personagens que criei: tem Carnegão, que é apaixonado por Ritinha; tem também Matilde e Donana, que buscam uma viúva no velório sem saber quem é ela; o Adão, que acha que se casou com a mulher perfeita; o Tuninho Hilário, que sofre porque ninguém o leva a sério.

São mais de oitenta textos criados.
Meu pacto com a fantasia é grande. Muito grande.

Na verdade, meu pacto com a fantasia é enorme mesmo; contudo, reconheço que este pacto é grande por causa da palavra. Se o teatro descobri aos cinco anos, quando entrei para o colégio, a palavra eu descobri um pouco antes. Antes mesmo de saber ler.

Lá em casa, sou filha única e sempre via os adultos lendo muito. Eu queira a atenção egoística infantil e sempre encontrava alguém com a cara enfiada naqueles objetos pesados ou mesmo numa folhas grandes que mais tarde vim a saber que eram os jornais.

Lembro-me de uma vez em que estava sentada na varanda da casa do meu avô, segurando um livro grande e pesado dele. Vô Fausto era farmacêutico e tinha uns livros pesados, com pouquíssimas figuras e que ele vivia lendo.

Lembro-me de estar usando um vestido azul-marinho que pinicava a pele; eu odiava a roupa, mas minha mãe me obrigou a usar. Lá em casa criança não tinha querer.

Se fechar os olhos, posso sentir o peso do livro nas minhas pernas gordinhas e a enorme curiosidade que sentia por descobrir o que tinha naquele negócio, aqueles sinais esquisitos (mais tarde descobri que eram letras) que faziam com que o pessoal da minha casa não me desse a atenção que eu queria.

O resultado disso é que, quando fui para o colégio, já sabia escrever meu nome inteiro – e ele é grande; sabia contar de um a cem; sabia formar pequenas palavras, como ‘ovo’,  ‘papai’, ‘mamãe’, ‘mala’,  ‘casa’, ‘rosa’ etc.
Meu amor pela palavra começou aí.

Eu me lembro muito bem que numa ocasião…
Bem, mais isso é outra história.

Carla Giffoni é jornalista, com 18 anos de atuação em jornais, rádio, TV, revistas e internet. É graduada em Comunicação Social/Jornalismo pelo Centro Universitário de Barra Mansa; fez também Letras/Formação de Escritor na PUC-Rio; tem pós-graduação em Jornalismo Cultura (Estácio) e atualmente faz uma segunda pós-graduação, em Roteiro para Cinema e TV (Universidade Veiga de Almeida). Tem um blog no Recanto das Letras (www.recantodasletras.com.br/autores/carlagiffoni), onde escreve ficção e faz análise literária de diversos autores e/ou obras. Carla está para lançar seu primeiro romance e também está escrevendo, no momento, uma peça teatral.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Alexçandra

Ela nasceu para ser uma estrela a brilhar no céu infinito da constelação artística.

Era assim que dona Judith se referia à pequena que saiu de suas entranhas. Desde que ficou sabendo que estava grávida, a jovem mãe já profetizava que seu rebento faria a diferença no mundo.

Por isso, a escolha do nome foi meticulosamente planejada e, depois de muitas e muitas pesquisas em revistas e livros comprados nas bancas de jornal, decidiu que a pequerrucha se chamaria Alexçandra Sylva e Souzza.

Deste jeito mesmo. Juro!

A pequena Alexçandra Sylva e Souzza já trazia na grafia do nome toda a singularidade que o olhar materno bradava a quem quisesse ouvir.

Dona Judith, depois de noites em claro, calculando qual o melhor nome para combinar com os sobrenomes de sua família e do marido, chegou ao denominador comum de que a alcunha da filhota deveria ter a letra “z” do sobrenome dobrada, e que o “x” ao lado ao “ç” traria uma abertura para o infinito. O cedilha do “c”, aliado à perna do “y”, era como se fosse uma antena para captar energias positivas conspirando para o brilho estelar da pequena infante.

Além disso, para ajudar um pouco mais, Judith resolveu colocar um “e” entre os dois sobrenomes, para que o epíteto tivesse mais glamour e status.

Toda família chique tem um “e” unindo os sobrenomes, não é mesmo? Nem todo mundo concorda, mas esta era a opinião da mãe da little star.

Com tanta certeza no peito materno, a pequena não teve outro caminho a seguir: seria miss-atriz-modelo-apresentadora-instrumentista-cantora-bailarina.

Desde muito pequena, a mãe já matriculou a menina em diversas escolas: modelo, teatro, balé, jazz, danças cigana e afro, sapateado, piano, guitarra, teclado, violino e canto. A genitora carregava a certeza absoluta de que sua girl seria a primeira da turma em todas as matérias.

Não foi bem isso o que aconteceu... mas a mãe, orgulhosa da cria que gerou, acreditava piamente de que as professoras estavam de implicância e inveja ao não reconhecerem o talento enorme e estrondoso de sua filha.

Alexçandra era uma criança adorável, como toda criança é, e que carregava em si toda a potencialidade do mundo. Contudo, convenhamos!, estava muito longe de ser a nova Shirley Temple ou a versão feminina do século XXI de Michel nos áureos tempos dos Jackson Five!

Alexçandra não teve a oportunidade de escolha.

A mãe jurava de pé junto que desde muito pequena a filhota já pedia para ser fotografada e queria sempre estar à frente das outras menininhas de sua idade. Ainda nem engatinhava e só parava de chorar quando ela ou o marido davam um microfone de brinquedo para pequena se entreter. Nunca houve na história deste país bebê com mais suingue do que Alexçandra ao balbuciar:

- Badabadá, badabadá, badabadá!

Antes mesmo de completar um ano de vida, a pequena já era inscrita em todos concursos de pomada contra assadura para bebês.

Depois, maiorzinha, começou a fazer desfiles e participar de concursos de beleza, tal qual aquela menininha de filme de Hollywood.

A diferença é que Alexçandra nunca concorreu ao Oscar, mas isso era uma injustiça, porque se ela tivesse nascido na terra do Tio Sam, certamente a história seria outra, dizia sua mãe, cheia de empáfia.

E foi assim, de ano a ano, que a jovem Alexçandra foi crescendo mimadinha e se firmando, ou pelo menos tentando se firmar no mundo artístico.

Sempre conseguia papéis secundários no teatro, cinema, TV e propaganda, até que um dia ela conseguiu passar num teste para ser a atriz principal de um drama destes modernos, tipo “cabeça”, que só gente muito inteligente é capaz de entender, ou finge melhor que entende do que nós pobres mortais.

A meia dúzia de quatro intelectuais presentes adorou a trama e teceu enormes elogios à peça em cartaz. Com isso, Alexçandra Sylva e Souzza foi elevada ao patamar de estrela-teen precoce, por encabeçar um texto tão maravilhosamente hermético.

Como acontece frequentemente, as pessoas começaram a ir ao espetáculo porque, afinal de contas, só os inteligentes é que iam a este tipo de teatro, e como ninguém queria admitir ignorância e burrice, uma fila imensa se formou, e Alexçandra era a cada noite mais e mais ovacionada em cena.

Em pouco tempo, a televisão a chamou e aí ela, que dava uns trinta autógrafos a cada noite, começou a dar centenas por dia. Era uma estrela agora, com todas as letras maiúsculas – sempre fazendo o mesmo papel é bem verdade.

No meio disso tudo estava o orgulho de dona Judith. Seu orgulho era tão grande, que era capaz de chegar vinte minutos antes dela entrar num ambiente.

A mãe de Alexçandra Sylva e Souza dizia a quem quisesse ouvir que sempre teve certeza absoluta de que sua pequena seria alguém que brilharia na constelação, no meio de outras estrelas de maior grandeza. Dona Judith batia no peito como deve bater qualquer mãe de miss-atriz-modelo-apresentadora-instrumentista-cantora-bailarina.

Alexçandra, como toda boa estrela que se preze, começou a exigir regalias para seu camarim, tanto no teatro, como na TV, no cinema ou em qualquer evento de que participasse.

Os itens mais frequentes de sua longa lista eram:
* quinhentas toalhas brancas e felpudas;
* dez caixas de água Perrier,
* arranjos de rosas cor-de-rosa (caules longos) e brancas (caules curtos), que deveriam seguir os modelos das fotos enviadas por seu personal-florist,
* filés de tilápia,
* mixed nuts,
* sucos e chás orgânicos,
* uma espreguiçadeira,
* um espelho da Baviera,
* cinquenta quilos de gelo feito com água mineral de Caxambu,
* a ausência de qualquer coisa em roxo no seu camarim ou roupa,
* os móveis deveriam ser de material orgânico
* e o camarim deveria estar sempre com o ar-condicionado ligado à temperatura de 15ºc,
* balas e jujubas diet
e outras cositas mais porque ninguém é de ferro, né, nega?

De mimadinha, Alexçandra passou a ser uma estrela temperamental.

A assessora de imprensa (sim, ela contratou uma, bem como um personal stylist) da jovem estrela sempre se desculpava devido aos atrasos e petis que a filha de dona Judith dava, alegando estresse.

Houve alguns casos que foram abafados, como a vez em que ela avançou e arranhou a cara da cabeleireira que fazia seu penteado de época. A alegação dada é que a profissional tinha colocado a flor do lado errado.

Teve também aquela vez em que Alexçandra bateu com o microfone na cabeça do operador de som, o que não teve grandes consequências, graças a Deus, só um traumatismozinho craniano leve, bobagem pouca! Enfim, Alexçandra Sylva e Souzza se tornou um entojo.

Sua assessora de imprensa penava por ter que abafar os casos e conter o temperamento difícil da estrela. Mas como ela era uma profissional gabaritada e cheia de contatos, Alexçandra sempre aparecia em campanhas humanitárias, doando pipoca para as crianças abandonadas, ração para gatos e cachorros em canis públicos e posando ao lado de velhinhos nos asilos.

Muito fofa!

Em todas as fotos, dona Judith dava um jeito de aparecer como papagaio de pirata da filha. Às vezes dava certo; outra vezes, gentilmente era convidada a ficar de lado, sem aparecer na foto.

Dona Judith, inclusive, abriu uma página numa rede social com o seguinte título: “Sou mãe de Alexçandra Sylva e Souzza”. Não é que bombou?! Em poucos meses, a genitora da estrela já tinha milhares de seguidores.

Claro que a página de Alexçandra, feita pela sua assessoria de imprensa, bombava muito mais, mas Judith não se importava com o sucesso maior do seu rebento.

Vou te contar um “bafo”: dizem à boca pequena que Alexçandra não tinha autorização de escrever nada na sua página virtual, para não danificar sua imagem tão duramente construída pela equipe. Todas as mensagens fofas e carinhosas eram criadas pelos competentes profissionais. Mas isso é tudo bobagem mesmo, coisa de gente invejosa, que não conseguiu um lugar no firmamento!

Com tanto sucesso, tanto prestígio, tanto poder, a mãe da celebridade estava mais feliz do que pinto no lixo, até que chegou um dia em que a casa caiu.

Sim. Veja você: tudo tão maravilhosamente planejado por dona Judith e depois pela equipe de produção de Alexçandra desmoronou quando a jovem, já com vinte e cinco anos, decidiu ir para o Tibet ser monja budista ou qualquer coisa que o valha. Queria sair da vida de brilho para buscar “sua essência interior” etc. etc. etc. etc. etc. etc..

Ninguém entendeu nada: diretores, colegas de trabalho, assessoria de imprensa, público, jornalistas e, principalmente, a mãe, dona Judith.

Se Alexçandra tivesse sido atropelada por uma manada de elefantes brancos tendo em cima de cada animal uma irmã carmelita descalça do Tibet, a notícia não teria tido tanto impacto no coração da senhora Judith Silva Souza.

Coitada!

Dava pena de ver o desespero da genitora, que não aceitava a “morte” profissional da filha, que se retirava para o exílio espiritual. De nada adiantou chorar, bater no peito, rasgar a roupa, ameaçar se jogar do primeiro andar do apartamento em que morava, se descabelar de tudo que é forma. Alexçandra virou as costas e foi embora, buscar sua essência interior. Simples assim.

Como isso é muito raro, uma celebridade abandonar o estrelato por vontade própria, a mídia passou a seguir os passos de dona Judith, tentando entender o porquê de uma atitude tão drástica da jovem atriz.

Com isso, Judith começou a aparecer em revistas e programas de TV para explicar, ou tentar explicar, a situação. Uma revista de celebridades a convidou para fazer uma reportagem num castelo francês, onde a mãe pôde falar pela enésima vez que a filha buscava seu lado espiritual. Judith garantiu que, assim como ela, a filha que nunca foi ligada às coisas mundanas.

Não é que a velhota, quer dizer, a senhora da terceira idade, começou
a bombar mais e mais? Foi chamada para abrir ou fechar desfiles da Fashion Week de São Paulo e do Rio?

Te mete!

Logo dona Judith aproveitou a equipe (que já assessorava a filha) em proveito próprio e em menos de seis meses já estrelava uma peça de teatro de um cânone universal, um texto de Tchekhov; além de ser convidada para aparecer na telinha da TV.

Não quero falar da “falecida”, que Deus tenha Alexçandra na paz celestial do Tibet, mas a mãe dava de dez a zero no quesito interpretação! Muito melhor do que a filha temperamental! Muito, muito melhor!

E foi assim que todos foram felizes, cada um do seu jeito. Alexçandra tornou-se monja, raspou a cabeça e se veste de roxo, uma cor ligada à espiritualidade, e é feliz na montanha gelada do Tibet, enquanto sua mãe brilha nos palcos, telonas e telinhas pela vida afora.

Sabe não?
Ela está cotada para concorrer ao Oscar como melhor atriz de filme estrangeiro. Uma interpretação notável teve Judith Silva Souza.

Ela não quis utilizar a grafia do nome da filha. Consultando um místico, ele sugeriu que ela deixasse a grafia do jeito que era mesmo, sem papagaiar muito.

Judith Silva Souza era um nome nascido para brilhar e brilhou mesmo!


A Duquesa - análise do filme (*)

O filme A Duquesa (2008), com roteiro Jeffrey Hatcher e Anders Thomas Jensen, dirigido por Saul Dibb, mostra a vida da inglesa Georgiana Cavendish, duquesa de Devonshire: uma mulher que se mostrou, em determinados momentos de sua vida, uma pessoa à frente do seu tempo – numa época (século XVIII) em que o sexo frágil ainda não tinha queimado sutiãs em praça pública e o destino feminino certamente não era se envolver em política, sequer frequentando palanques, tampouco ajudando a eleger um primeiro-ministro e muito menos apoiando as Revoluções Francesa e Americana.

Georgiana fez tudo isso, não apenas demonstrando inteligência e perspicácia perante a corte inglesa, mas se tornando a 'queridinha' do povo.
   
O filme britânico é baseado no best-seller de Amanda Foreman, que escreveu sobre a vida da aristocrata inglesa. O diretor optou para sinalizar desde o início que se trata de um filme “baseado numa história real”, tentando capturar a simpatia do espectador num mundo pós-utópico, onde tantas conquistas femininas foram realizadas, mas nem de longe todas.

A duquesa de Devonshire é uma típica heroína do século XVIII, casando-se por conveniência com um aristocrata que só queria gerar um herdeiro e, depois, vivendo um amor impossível – que o diga Os Sofrimentos do jovem Werther (1774), obra-prima de Goethe.
   
A história desenvolvida pelo trio Hatcher-Jensen-Dibb mostra o quanto a jovem de 18 anos era ingênua, acreditando estar-se casando por amor, para descobrir, depois, que na verdade o marido queria apenas uma parideira que lhe gerasse uma porção de meninos que levassem o seu nome. O primeiro conflito surge na vida de Georgiana quando ela engravida – sempre de meninas, e quando lhe nasce algum menino, é natimorto.
   
A infelicidade matrimonial parece estar no cerne da vida aristocrática inglesa: no lançamento do livro, e também no do filme, não foram poucos os que traçaram um paralelo entre a infeliz vida matrimonial da duquesa de Devonshire e a de sua descendente direta, a princesa Diana (morta em 1997, mais de dez anos antes do lançamento do livro e do filme).
   
Mas o que torna, em pleno século XXI, uma heroína como Georgiana ainda atraente o suficiente para o livro virar best-seller e gerar um filme, que ganhou o Oscar de Melhor Figurino?
   
Podemos analisar que a necessidade dramática da heroína cumpre o seu papel: gerar conflito. Ela sofre, como deve sofrer toda heroína romântica: primeiro com a indiferença do marido – todos são cativados por sua inteligência, beleza e perspicácia, menos o duque.
   
O sofrimento não para aí: depois ela se vê traída pela única amiga que conseguiu, Lady Bess Foster, que se torna amante do duque. A duquesa a leva para viver debaixo de seu teto e recebe a punhalada ao flagrar o marido com sua melhor amiga.
   
A partir de então, com tanta desilusão no seu mapa astral, Georgiana só quer ser feliz e encontra a felicidade nos braços de um jovem político, idealista como ela: Charles Grey.
   
Sinto dificuldade em classificar o tipo arquétipo da bela duquesa. Ela é uma mistura de uma jovem heroína que une a 'criança impetuosa' (corajosa, verdadeira, leal até o fim; uma garota com determinação, que só quer ter seu próprio cantinho, ser amada pelo político idealista e viver uma linda história de amor) a características de outros arquétipos. A heroína é também a 'guerreira' – é uma lutadora dedicada, que cumpre seus compromissos; basta lembrar que ela, ao ser chantageada pelo marido, larga o amante para ficar com os quatro filhos, cumprindo sua sina de mártir. Já ela ter sido capaz de aceitar a filha bastarda do marido, que ela cria com se fosse sua, nos revela traços do arquétipo de uma grande 'mãezona'.
   
Isso a torna cativante?

Cativante o suficiente para carregar o leitor por todo o enredo? Pulando fora das páginas do livro e da sala de projeção nos cinemas?

Sinceramente?
Para a maioria dos leitores que tornaram o livro (que acabou gerando o filme) um best-seller, talvez.
Não para mim.

Vale ressaltar que não li o livro, minha análise se baseia exclusivamente no filme. Certamente algum mérito a obra tem, porque senão não teria se tornado um livro mais vendido. Contudo, sinto no filme o eterno clichê romântico que não surpreende ao final.
   
Ok, ok, ok. Admito que é um ótimo filme para se ver na Sessão da Tarde, num dia chuvoso, quando a gente fica debaixo do edredom, tomando chocolate quente e vendo o amor impossível de uma mulher do século XVIII, aquelas belas roupas (o filme ganhou o Oscar não foi à toa!). Mas, se for para realmente me emocionar com uma mulher que sofreu, prefiro 'A cor púrpura' (1985), drama dirigido por Steven Spielberg e baseado no romance epistolar da escritora Alice Walker. É apenas uma questão de gosto, vou logo avisando.

Ao se analisar a evolução da personagem principal, a duquesa, tenho a sensação de que este processo é previsível, não me surpreendendo enquanto espectadora.

Está certo que a duquesa demonstra ter uma força interior – ninguém que renegue o amor de sua vida pelo bem dos próprios filhos pode se dizer um fraco; ela sublimou os desejos próprios em virtude do bem-estar da prole. Mais romântico do que isso, nem Goethe ou nenhum dos autores do Movimento Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto) pensariam em algo melhor.

Alguns entendidos podem argumentar que este papel de sublimação do amor é próprio do gênero, ainda mais se pensando na época em que a personagem viveu. Pode ser.

Talvez eu seja ‘muderna’ demais e não consiga acreditar neste tipo de heroína. Que a duquesa seja capaz de despertar em mim a verossimilhança tão necessária para criar empatia entre personagem/espectador/leitor.

Analisemos o antagonista do filme, o marido da duquesa. Ele é um homem do seu tempo.

Claro que não estou aqui defendendo que um homem pode estuprar a própria mulher num momento de raiva, longe disso! Admito que o conflito entre eles (heroína e antagonista) é crucial para o desenvolvimento do enredo; se ele fosse um banana, a história contada seria outra.

Entretanto, não classifico os objetivos do enredo como algo vibrante e interessante, apesar de a oposição do duque ser tão forte quanto a personagem principal.

Quando disse, no início deste texto, que a duquesa foi uma mulher que mostrou ser apenas em determinados momentos de sua vida uma pessoa à frente do seu tempo é porque me lembrei de outras personagens da “vida real” que também enfrentaram situações contrárias à moral vigente e realmente optaram por viverem à margem da sociedade.

Um exemplo disso é a brasileira Chiquinha Gonzaga (1847-1935), que realmente enfrentou a sociedade patriarcal, largando o marido, os pais e a reputação para viver sua arte e seu amor por um jovem muitos anos mais novo do que ela – Chiquinha já tinha 52 anos, e o jovem era um adolescente, com 16 anos.

Este é apenas um exemplo de uma personagem que quebra todos os tabus, mostra-se realmente à frente do seu tempo. É bem verdade que Chiquinha viveu um momento histórico completamente diferente do de Georgiana, mas ela sim é uma mulher à frente do seu tempo.

O filme tem seus encantos, mas, no frigir dos ovos, não me convence.
Talvez se o foco da história fosse a luta de Georgiana perante a corte e sua influência política me convencesse mais.

Entretanto, do jeito como foi conceituada, a história mais parece uma maneira de exaltar outra figura da aristocracia inglesa, a princesa Diana, que também sofreu por se casar com um lorde que na verdade só almejava ter herdeiros enquanto desfrutava da alcova alheia.


(*) Artigo feito para o curso de pós-graduação de Roteiro para Cinema e TV da Universidade Veiga de Almeida (UVA), para a matéria PERSONAGENS,  ministrada pela professora Dayse Marques (2013).