segunda-feira, 11 de junho de 2012

Guarda-chuva

Sou um guarda-chuva preto e austero.
Estou esquecido num canto qualquer e, como o dia está ensolarado, ninguém se importa com minha presença.

Admito que minha austeridade e dignidade também não ajudam. Se ainda fosse uma alegre sombrinha colorida, talvez com bolinhas ou flores, vá lá! Mas não sou. Há quem diga que sou um guarda-chuva preto e feio, com uma dignidade de mordomo inglês, tão inapropriada em terras tropicais.

Esta é a história de uma vida inteira: ninguém se dignifica a me olhar.

Jogado, espero um momento certo para aparecer em cena, mas a meteorologia já sentenciou que a frente é de calor, e a chuva não surgirá tão cedo no céu de brigadeiro. É assim que vivo: de frente – ora frente fria, ora frente de calor, mas sempre, sempre de frente.

Fazer o quê, não é mesmo?

Sigamos em frente.

Acabei esquecido e ninguém me nota a presença. Já disse isso, não? Pois é, estou me repetindo. Eu sempre me repito. Teve até aquela vez…

Desculpe.

É dura a vida de um guarda-chuva. Ninguém nunca escreveu – pelo menos eu nada soube até então – as memórias de qualquer guarda-chuva, ainda menos um tão austero e formal como a minha pessoa.

Mas posso estar equivocado. Alguém pode ter escrito alguma coisa, existir algum livro, e eu, que não sou leitor profissional, posso não ter tomado conhecimento.

Deve haver alguém que escreveu, mas, torno a repetir: desconheço. Eu conheço as memórias de um fusca, de um cabo de vassouras, de uma gueixa, de um sargento de milícias… mas de um guarda-chuva? Ah, não conheço, não.

Deve ser porque, afinal de contas, nós, os guarda-chuvas, não devemos mesmo guardar grandes segredos, nem temos espaço para guardar grandes memórias… Ficamos lá, paradões, esperando o momento certo para aparecer como coadjuvante. Uma lástima mesmo. As pessoas só sentem falta de um quando a água desaba. Aí todos procuram algum da minha espécie para a sua própria proteção.

A sombrinha não. Ela é alegre, versátil e tem o glamour próprio de uma senhorita feliz. É colorida e, em algumas culturas, nem precisa de chuva para ser aberta, basta alguém querer dançar.

Lembra-se do pessoal de Recife com o seu frevo?

Você conhece alguém que fez música para algum guarda-chuva? Repito mais uma vez: a minha pessoa desconhece. Nunca ouvi nenhuma música onde o guarda-chuva fosse acessório de alegria.

Pode até haver alguma música em inglês, mas como só sei falar “I love you”, não tenho como garantir com certeza. Também pode ter algum compositor tupiniquim que tenha cantado em versos a beleza de um guarda-chuva, mas se existe, nunca ouvi.

Por tudo isso digo e repito: Uma injustiça é o que fizeram comigo e com os meus companheiros de jornada, isso sim!

Esta falta de prestígio deve ser porque atendemos, basicamente, ao público masculino. Sim, porque eu me lembro de que na fábrica onde nasci foi contada de geração em geração a história de nossa origem. Venho de uma família de alta estirpe. Já na Mesopotâmia meus tatatatatatatatatataravós protegiam a realeza do sol escaldante.

Sim, porque naquela área é muito difícil chover mesmo.

Continuando a aula de história ‘guardachuvesca’: depois, no Egito, subimos um pouco de posto hierárquico e adquirimos status de acessório religioso. Mas nossa desgraça mesmo foi na Grécia: transformaram-nos em acessório feminino e, sabe como é mulher, né? Logo quiseram colocar uns lacinhos, florzinhas e fru-frus e, voilà!, surgiu a sombrinha; daí o velho e digno guarda-chuva se transformou em sombrinha.

Dizem que Eva veio da costela de Adão, eu não sei se isso é verdade, mas posso garantir que a sombrinha veio das costelas-hastes de nós, guarda-chuvas.

Durante séculos e séculos ficamos relegados ao ostracismo, porque macho que era macho não queria usar nada que pusesse em dúvida sua masculinidade – os metrossexuais ainda não haviam dado o ar da graça. Mesmo sendo um acessório importante para a proteção contra intempéries e tendo um visual austero e impecável, fomos marginalizados durante muito tempo.

Foi só no século XVIII que um comerciante inglês, visando a aumentar o faturamento de sua loja, começou a campanha de que guarda-chuva era chique e masculino.

Vocês não sabem o que meus tatataravós sofreram com o escárnio dos lordes! Mas aos poucos estes acabaram se rendendo, e fomos aceitos.

Depois, tivemos nossos momentos de glória, como coadjuvantes, é bem verdade, mas tivemos! Uma quase glória, poderia dizer.

Meu tio-avô fez ponta em Hollywood, no filme “Cantando na chuva”; era ele lá, parceiro de Gene Kelly. A cena tornou-se lendária, mas ninguém se lembra de que sem as presenças da chuva torrencial e do guarda-chuva não haveria graça nenhuma. A cena não seria imortalizada.

Um primo meu, de quarto grau, também participou de outros momentos memoráveis, sempre coadjuvante. É a sina dos guarda-chuvas, serem sempre escadas para outros aparecerem. Este primo teve seus minutos de fama como parceiro de Mary Poppins, quando ela descia dos céus para ajudar as crianças da família Banks e, no final, a empregada transformava a vida de cada pessoa da casa.

Meu avô era par constante do lendário Mazzaropi. Ele apareceu em diversos filmes ao lado do mais famoso Jeca Tatu brasileiro.

Já eu nunca me atrevi a tentar ponta em nenhuma novela ou filme, muito menos em documentário. Eu não! Não estou aqui para ficar colocando azeitona na empada de ninguém, não senhor.

Eu rezo sempre para padim Cícero, que é o único santo que conheço, pois sempre carregou um guarda-chuva, para que o final dos meus dias seja tranquilo e que eu não seja vítima de nenhum tipo de preconceito ou bullying. Sim, porque volta e meia ouço algum infeliz dizendo que guarda-chuva aberto dentro de casa traz infortúnios e problemas familiares.

É brincadeira, não é não?!

Outros ainda têm a petulância de dizer que deixar o guarda-chuva ou a sombrinha cair em casa é sinal de que vai acontecer um assassinato naquela moradia!

E o pior é que tem gente que acredita!

O cara toma uns gorós, bate na mulher, chuta o gato, xinga a sogra, sai por aí distribuindo palavrão e brigando com o Deus e o diabo, e depois, se alguém mete uma bala nos cornos da criatura, nós é que somos culpados?!

Francamente!

É como eu digo, vida de guarda-chuva não é fácil, não, senhor. Precisa ser muito macho para vergar estas frágeis hastes, sustentando um pano preto e austero, ser relegado sempre a coadjuvante e, no final, ouvir algum traste dizer que somos geradores de má sorte e assassinato!

Mas não faz mal, não.

Nós, os guarda-chuvas, temos como profissão de fé sempre sermos abertos para a vida.