quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Orelha

Jurandir nasceu sem a orelha esquerda. Isso fez com que desde moleque deixasse o cabelo mais longo do que os outros garotos. No tempo dele, não era comum menino ter cabelo comprido, mas Jurandir se conformava porque era melhor a gozação dos guris do que todos saberem da falta do órgão da audição.

Quando algum adulto perguntava o porquê do cabelo maior do que os outros, logo dizia que era promessa da mãe, que tinha morrido. O adulto anuía com a cabeça, como se compreendesse tudo, e o deixava em paz.

Mentira dele, é claro.
A pobre da mulher sequer teve tempo de dizer qualquer coisa, pois Jurandir mal acabou de nascer, sua genitora bateu as botas, indo desta para uma vida melhor, conforme dizem os antigos. Jurandir não acredita em vida melhor depois da morte, mas…

Bem, mas não era sobre isso que estava contando, e sim da falta da orelha esquerda do dito cujo: apesar de ter somente uma orelha, não havia no mundo quem escutasse melhor. Nunca houve na história deste país e jamais haverá outro que ouça tão bem quanto Jurandir.

Sabe aqueles cachorros de raça, que nascem pela mistura de um bravo com outro “ainda muito mais pior de ruim” e que faz nascer filhotes de raça pura? Pois é. Jurandir era assim. Quer dizer… não vá pensar que Jurandir fosse um cachorro.

Não, não é isso.
O que estou tentando explicar é que sua audição era supimpa. Se um cão desses é capaz de ouvir o tique-taque de um relógio numa noite estrelada a um quilômetro de distância, Jurandir era capaz de ouvir o mesmo barulho com dez quilômetros.

Não, não é mentira, não.
Eu juro pra você.
Juro mesmo.
Seu ouvido era tão potente, que parecia uma orelha biônica.

Teve uma vez que ele escutou dois malandros planejando roubar uma velhinha da Rua Barbosa Lima. Não é que Jurandir escutou e tratou de salvar a anciã dos pilantras? Digo e repito: audição como a de Jurandir nunca vi ou ouvi falar. E duvido que alguém possa garantir que outro tenha orelha mais potente do que a dele. Tenho certeza de que, se tivesse nascido americano, iria logo parar naquelas polícias deles lá, igual aos filmes que passam na TV.

Certa vez Jurandir encontrou uma menina muito bonitinha, de olhos grandes e sorriso fácil. Seu nome era Rosa, Rosinha para a maioria das pessoas que a conhecia. O jovem mancebo (perdoe-me a redundância) ficou encantado com tanta singeleza e belezura.

Rosinha só tinha um pequeno defeito: sua risada. Era capaz de rir fininho e estridente, uma risadinha comprida, como se fosse nadador olímpico, que não precisa tomar o ar e pode cruzar a piscina quase sem tomar fôlego. Aquilo calava (ou melhor, gritava) fundo no ouvido biônico de Jurandir. Realmente, era um desarranjo quando a amada ficava alegrinha.

Jurandir não queria fazer a amada chorar, mas também era impossível conviver com tamanha agressão ao seu potente ouvido. Resultado: o namoro com Rosinha foi para o beleléu.

Jurandir ficou um pouco chateado, afinal, mal de amor é um mal pesado. Mas o tempo passou, o mato cresceu, e o mancebo levou sua vidinha de sempre.

Aí um dia ele encontrou Isaura, uma mulata com um belo par de seios e unhas grandes. Parecia uma tigresa. Só que outra vez seus ouvidos foram agredidos. A criatura só vivia gritando, falava muito alto, e isso feria os tímpanos do seu pavilhão auricular (como você pode ver, hoje estou muito redundante).

Outra vez, o mesmo resultado: o romance não prosseguiu.

Mais uma vez Jurandir viu-se jogado ao vento, sem nenhum amor, sem poder receber ou dar nenhum cafuné.
Ô, vida!

Porém Jurandir, depois de lamber as feridas, resolveu investir em um novo amor, e a escolha pela paixão recaiu sobre Ruth, uma baita de uma loirona, uns trinta centímetros mais alta do que ele.

Só que não deu certo também.
Ruth parecia ser a mulher ideal para o incauto mancebo, mas na hora que abria a boca… Vixe! Parecia que a voz grossa de um retumbante trovão vibrava no ar.
Deu certo não, e ele mais uma vez saiu chamuscado.

Jurandir já estava vexado e achando que nunca encontraria uma amada para compartilhar a vida.

Mas aí, um dia, assim de repente, como de repente deve ser todo grande amor que aparece na vida da gente, Jurandir encontrou Maria Celeste.

Foi realmente um encontro planejado no céu, porque a menina era de uma delicadeza só: falava baixinho, olhos no chão, um primor.

Foi amor na primeira olhada, dele para com ela e dela para com ele. Bonito de se ver um amor assim. E o melhor de tudo: o ouvido de Jurandir não era agredido.
Maria parecia realmente ter caído da abóbada celeste direitinho pros braços do jovem mancebo.

Quando a viu, Jurandir logo tratou meio de casar e montar moradia com a guria. Nem quis conhecer a família da amada, que morava numa outra cidade. Foi conhecer a trupe de sogros, cunhados e cunhadas no dia do casório. O apaixonado estava tão aflito com a possibilidade – remota – de perder Maria Celeste, que tratou mão de ficar na frente do juiz e do padre logo, oficializando o amor.

O casório foi uma beleza. Dava gosto de ver Maria Celeste trajando um singelo vestido branco e o mancebo, todo garboso, esperando a amada no altar. Não teve quem não marejasse os olhos, ainda que discretamente.

Foi uma bela reunião, mas teve um contraponto: foi ali que Jurandir descobriu que a sogra tinha uma voz horrivelmente horripilante. Dona Carmencita era a junção das vozes de todas as namoradas que teve antes de encontrar sua Maria Celeste. A risada era fininha como a da Rosinha; falava alto e gritado como Isaura e quando abria a boca parecia um trovão retumbando como Ruth.

Pois é, o menino Cupido quando flecha, flecha, mas sempre mostra o tanto de ironia e sarcasmo que é capaz de aprontar.