tag:blogger.com,1999:blog-54110232888085296092024-03-13T21:20:15.646-07:00Carla GiffoniEsse é o meu blog e agradeço sua visita. Você encontrará aqui de tudo um pouco. Sua opinião é importante. Por isso, não se acanhe em me enviar alguma nota. Gostaria de lhe pedir algo: caso goste do que leu, divulgue para os amigos, parentes... Enfim, entre quem ama e admira. Agora, se você não gostar, divulgue também, por favor, para os inimigos e chatos de plantão. Como diria Drummond: “(...) Por isso me dispo, por isso me exponho nas livrarias. Preciso de todos”. Beijos e Paz!Carla Giffonihttp://www.blogger.com/profile/12830433045746106919noreply@blogger.comBlogger119125tag:blogger.com,1999:blog-5411023288808529609.post-60751076936544416252015-12-29T06:17:00.001-08:002015-12-29T06:17:23.970-08:00Bola foraQuadra poliesportiva. Ensaio da escola de samba. Ambiente festivo, som muito alto, pessoas sambando e bebendo. O cinquentão Luiz está num canto, perto da cantina, tomando cerveja e mexendo o corpo discretamente ao balanço da música. Thiago, seu filho adolescente, está do seu lado. Ele tenta falar com o pai, que faz sinal de que não está ouvindo nada. Thiago mostra um grupo de adolescentes um pouco mais à frente e sinaliza que vai ficar com eles. Luiz faz sinal positivo.<br /><br /> Thiago sai enquanto Luiz olha ao redor: um grupo de senhoras usando saias rodadas de baianas roda ao comando de um homem; crianças passistas sambam freneticamente, parecendo adultas; o mestre-sala dança em volta da porta-bandeira, num bailado delicado e reverente.<br /><br /> Luiz continua olhando o ambiente, até que seus olhos encontram duas esmeraldas, que o encaram de volta. Luiz dá uma mirada de cima a baixo na jovem morena de cabelos negros e maravilhosos olhos verdes. Uma beldade feminina. A garota não era um pedaço de mau caminho, era o mau caminho inteiro.<br /><br /> A morena olha sensualmente para Luiz. Ela segura um copo com um canudinho e sensualmente leva este aos lábios, sem tirar os olhos do cinquentão que, sem graça, olha ao redor, com “culpa no cartório”, como se temesse ser flagrado. Ao olhar novamente na direção onde a morena estava, Luiz nota que garota sumiu. Ele respira aliviado.<br /><br /> Minutos depois, Luiz está bebericando tranquilamente uma caipirinha quando recebe um tapão no ombro. Olha para trás e dá de cara com o fanfarrão Rodolfo, seu grande amigo de infância e juventude. <br /><br /> – Luizão, sempre distraído, hem!<br /> <br />
– Rodolfo!<br /><br /> Os dois se abraçam fraternalmente.<br /><br /> – Há quanto tempo!<br /> <br />
– Mais de vinte anos. Você sumiu. Onde que você tava?<br /><br /> Rodolfo coça a pança avantajada:<br /><br /> – Ah, eu tava fazendo filho, casei, depois separei, abri uma revendedora de carro… – tira um cartão do bolso e o entrega a Luiz – Quando precisar trocar de veículo, me procura. Faço um preço camarada pro meu amigo de infância e juventude!<br /><br /> Luiz pega o cartão e lê:<br /><br /> – Nossa, quanta loja!<br /><br /> – Pois é. Alguma coisa boa saiu do meu primeiro casamento. Ficava mais na loja do que em casa, e aí a empresa prosperou. E você? Casou?<br /><br /> – Casei. Meu primeiro casamento também não foi bom, durou só alguns meses. Mas o segundo já tem 20 anos. Aquele ali é meu filho – aponta Luiz para Thiago, que ainda está entre amigos.<br /><br /> Rodolfo sorri, dá um tapinha no ombro de Luiz e pergunta:<br /><br /> – É pegador? Tomara que não tenha puxado você, porque na nossa época você não pegava nem gripe – Rodolfo ri da própria piada.<br /><br /> Luiz, sem graça, ri desajeitadamente.<br /><br /> – Eu também casei pela segunda vez. Dizem que na segunda é melhor do que na primeira, né não?! – comenta, fanfarrão.<br /> <br /> – É o que dizem! – garante, sorrindo. – Rodolfo, peraí que vou tirar uma água do joelho! Volto já.<br /><br /> Rodolfo sorri.<br /> <br /> – Vai lá. Enquanto isso, vou procurar minha mulher pra te apresentar.<br /><br /> Enquanto mija, Luiz olha ao redor, com cara de nojo, o banheiro masculino da escola de samba. Chega um negão e começa a urinar ao seu lado. Luiz, disfarçadamente, com o rabo do olho, nota o documento do negão, mas tira os olhos rapidamente, antes que o cara perceba.<br /><br /> Luiz sai do banheiro e de repente é puxado pela camisa para um corredor meio escuro e empilhado de engradados. A morena que o estava paquerando joga-o contra a parede e o beija violentamente, deixando Luiz sem fôlego.<br /><br /> – Gostosão! Tava doida pra fazer isso!<br /><br /> A morena começa a abrir a camisa dele. Luiz tenta sair e argumenta, sem convencer nem a ela e nem a si mesmo:<br /><br /> – Para!...... Sou casado......... Pai de família!... Não sou disso, não!...<br /><br /> Mas a garota abre os botões de sua camisa e vai dando beijinhos na pele que vai aparecendo. Luiz se rende, sem lutar nada. A garota vai beijando cada vez mais para baixo. Luiz dá um murmúrio em êxtase.<br /><br /> Luiz sai do corredor ajeitando a camisa. Rodolfo se aproxima com dois copos de cerveja. Entrega um para Luiz.<br /><br /> – Toma.<br /> <br /> Os dois bebem em silêncio.<br /> <br /> – E como vai a nova vida de casado?<br /><br /> – Uma beleza! Minha mulher faz tudo por mim!<br /><br /> Alguém se aproxima por trás, e eles ouvem um barulho de beijo no pescoço de Rodolfo. Ambos se viram imediatamente, e Luiz vê que é a mesma morena que o pegou na saída do banheiro.<br /> <br /> – Luiz, esta é a minha mulher, Mariana!<br /><br /> Luiz mostra surpresa. Ela oferece a mão para ele e diz, num sussurro rouco e sensual:<br /><br /> – Muito prazer!<br /><br /> Ainda com cara de surpresa, ele tenta disfarçar, mas a garota o provoca. Sem que Rodolfo perceba, Mariana passa a língua nos lábios úmidos. Luiz engole em seco.<br /><br /> Sem notar o charme que Mariana joga ao amigo, Rodolfo segura a cintura da mulher e faz planos.<br /><br /> – Vamu marcar um churrasco lá em casa, assim as patroas se encontram. Falando nisso, cadê a sua mulher? Deixou você voar sozinho, é? A Mari não deixa eu sair sozinho não, né, princesa? – pergunta Rodolfo dando um beijinho rápido na boca da mulher.<br /><br /> Mariana retribui o beijo do marido, mas continua jogando charme para Luiz, que está cada vez mais sem graça.<br /> Thiago salva a situação ao se aproximar do grupo.<br /><br /> – Pai, me dá uns trocados.<br /><br /> Luiz tira a carteira do bolso e escolhe as notas, enquanto Rodolfo comenta:<br /><br /> – Seu filho é boa pinta. Deve ter puxado à mãe porque, se dependesse de tu, saía um cruz-credo! – Rodolfo solta uma gargalhada alta.<br /><br /> Thiago e Luiz se entreolham. Luiz dá o dinheiro ao filho e sorri sem graça para Rodolfo. Thiago sai.<br /><br /> Mariana, de unhas vermelhas, segura o braço de Luiz e recrimina meigamente o marido.<br /><br /> – Ah, tchutchuco, não fala mal assim, não, do Luiz. – ela acaricia sensualmente o braço dele. – Seu amigo parece um gatinho abandonado. Só precisa de um colinho bem quentinho.<br /><br /> Mariana dá uma piscadela para Luiz, discretamente, enquanto Rodolfo ri.<br /> <br /> – Que nada, princesa! Eu e o Luiz somos amigos há muito tempo, e bota tempo nisso! E macho que é macho não fica melindrado por bobagem, não. – estufa o peito. – Mulher tem que ser bonita, mas macho tem é que ser viril. Não é, Luizão?!<br /><br /> Ouve-se alguém dar um beijo no pescoço de Luiz. Todos olham para trás e dão de cara com Carlos Alberto, um moreno de olhos azuis e de barba ficando grisalha.<br /><br /> Rodolfo e Mariana trocam olhares de espanto.<br /><br /> Luiz e Carlos Alberto trocam um selinho e Luiz o apresenta para o casal.<br /><br /> – Gente, este é o meu marido.<br />Carla Giffonihttp://www.blogger.com/profile/12830433045746106919noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5411023288808529609.post-89461752482606067782015-12-29T06:14:00.000-08:002015-12-29T06:14:08.614-08:00Personal NewsEva Regina é uma mulher que adora saber detalhes das vidas dos outros. Se a ‘rádio corredor’ fosse alguma firma registrada com CNPJ, Eva Regina seria considerada funcionária exemplar e tarimbada. Contudo, quando alguém a chama de fofoqueira ela nega veementemente e sua indignação chega à estratosfera. Ela se considera apenas “Personal News”.<br /><br /> Mas garanto: quem quer saber informação da vida de alguém ou como foi que se deu o ‘bafo’ mais recente, o destino certo é bater à sua porta. Para dizer a verdade, nem precisava bater. Eva Regina trabalha com o sistema delivery. Ela vai diretamente até você para contar todos os detalhes mirabolantes e safadinhos.<br /><br /> Eva Regina tem realmente muito tempo para cuidar da vida dos outros porque, afinal, seu lar é um poço de felicidade. Marido amantíssimo, Carlos Raimundo Siqueira é o homem exemplar: honesto, fiel até debaixo d’água, um modelo cristão da espécie humana dedicado à família. Os filhos, Jonathan e Wallace, então! São gênios e têm o destino certo de revolucionar diversas áreas no mundo, transformando a vida de todos nós, nascidos ou que ainda estejam por nascer. Com um lar tão perfeito e uma vida de contos de fadas de Walt Disney da década de 40, sobra-lhe muito tempo, realmente.<br /><br /> Dias atrás, ela estava na sala da clínica de fisioterapia esperando ser chamada. Eva Regina está com bursite no ombro. Cá entre nós: deve ser alguma lesão por esforço repetitivo, de tanto tricotar a vida dos outros, não é mesmo?!<br /><br /> Voltando: Eva Regina estava esperando ser chamada, quando entra uma jovem, de uns 25 anos, magra, linda e loira, falando ao celular. Vivemos numa época propícia para pessoas com o perfil de competência de Eva Regina. Não se tem mais o pudor de não tratar coisas íntimas ao telefone em alto e bom som. Eva Regina, quando ouviu que a jovem estava contando a alguém detalhes de seu final de semana, logo ligou a “butuca”, querendo saber pormenores para poder compartilhar. Eva Regina é tão competente em sua função de “Personal News”, que pouco importa se ela conhece ou não os envolvidos, ou se alguém do seu grupo saiba quem são as pessoas em questão. O importante é passar a informação, porque o mundo não pode viver sem saber o que acontece na vida íntima de desconhecidos e de que lado eles dormem na cama, se é que dormem!<br /> <br /> - Ah, foi um final de semana lindo, Pri! Realmente, o meu gato é muuuuuuuito quente.<br /><br /> Eva Regina, que estava folheando uma revista de fofoca de celebridades, logo largou o exemplar e começou a prestar atenção, fingindo que assistia a um programa de culinária na TV.<br /><br /> - Ele me levou naquele resort famosérrimo, encontramos até aquele galã da Globo da novela das sete, como é o nome dele mesmo? Vê lá no meu Face, eu postei uma selfie com ele.<br /><br /> Eva Regina não se contém e começa a mandar mensagens pelo WhatsApp para suas colegas de tricô, relatando tudo o que a menina fala e não deixando de fazer comentários próprios. Apesar do braço doendo, ela se mostrava competente e ágil.<br /><br /> - Pois é. Fomos comemorar as bodas de papel. Eu sei, Pri, que bodas de papel é de um ano de relação, mas não importa. São os oito meses mais felizes da minha vida – suspira a garota.<br /><br /> “Eles estão juntos há oito meses. Veja você: hoje em dia é assim, mal se conhecem e vão já pra cama. Por isso os homens não têm mais respeito pelas moças de família. Viraram tudo periguetes” – escreve Eva Regina no WhatsApp.<br /><br /> - Você precisa ver o anel de esmeralda e diamante que ele me deu, amiga! – ri a garota, toda feliz, olhando a joia no dedo.<br /><br /> “Ela ganhou um anel de esmeralda e diamante enormeeeeee. Pelo jeito, o namorado tem dinheiro ou então o anel é falso” – digita Eva Regina.<br /><br /> - Eu te digo miga, o negócio é pegar tiozinho. Estes garotos não estão com nada. Não troco o meu guti-guti por nenhum cara de vinte.<br /><br /> “Ah, agora tá explicado: ela tá namorando um velho! O cara é um tiozinho. Deve ser um velho babão mesmo. Pouca vergonha, isso!” – digita, eufórica.<br /><br /> - Ele já prometeu que nas férias vai me levar para Bariloche.<br /><br /> “O tiozinho tá podendo mesmo. Ele vai levar a periguete para Bariloche. Deve ser milionário! Pouca vergonha. O final dos tempos já chegou mesmo. Vê se na minha época isso aconteceria? Minha lua de mel foi em Caxambu, e foi muito bom! Exibida, isso é que ela é!” – escreve Eva Regina, despeitada.<br /><br /> - Ah, mas até lá ele já se separou da bruxa da mulher! Ele me ama, já prometeu! – garante a jovem.<br /><br /> “Ihhhh, o tiozinho é casado. Tá corneando a mulher! Coitada! Dá pena, não é mesmo? Nem todo mundo consegue viver um casamento tão feliz como o meu. Vai ver que a mulher do tiozinho é uma bruaca, não se cuida. Eu não. Faça chuva ou faça sol, vou ao pedólogo uma vez por mês e só faço o retoque das raízes do cabelo no salão! Fazer em casa? Jamais!” – garante.<br /><br /> - Mas ele vai MESMO lagar a mulher! Ele prometeu – enfatiza a jovem para a amiga do outro lado da linha.<br /><br /> “Bem feito! O tiozinho tá enrolando ela. Ele prometeu que vai largar a mulher, mas até agora nada. Bem feito! É como tá na Bíblia: aqui se faz, aqui se paga” – comemora Eva Regina.<br /><br /> - Não, os filhos dele me adoram! O pai já prometeu que, saindo de casa, todos nós vamos viver em Miami!<br /><br /> “Ih, eles vão viver em Miami! Ela, o tiozinho e os filhos dele. Pelo jeito a mulher do tiozinho não é boa bisca, pois até os filhos gostam da periguete!” – digita.<br /><br /> - Ah, mas eu não sou boba não!... – garante à amiga.<br /><br /> “Ih, ela deu uma dura no tiozinho...” – escreve rapidamente Eva Regina.<br /><br /> - Eu disse pra ele: “Carlos Raimundo Siqueira! Eu não nasci para ser a outra de ninguém, viu? Ou você larga a bruaca da sua mulher ou então terminamos tudo”. Ele começou a chorar e disse que...<br /><br /> Neste momento Eva Regina ficou com o dedo suspenso no ar, congelada com a revelação da jovem. Só se ouvia o sinal de apito das mensagens chegando pelo Whatsapp, querendo saber o resto da história.<br /><br />Carla Giffonihttp://www.blogger.com/profile/12830433045746106919noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5411023288808529609.post-4395769621446012622014-11-07T17:54:00.000-08:002014-11-07T17:54:08.542-08:00Lili BénieLili era uma jovem com muitos sonhos, grandes sonhos... Ela vivia com os pés vinte centímetros longe do chão, e não era usando sapatos de salto alto. Era sonhando mesmo. Sonhando com uma vida de estrelato, onde seria capa de importantes revistas não só no Brasil, mas mundo afora.<br /><br />Nada modesta a menina, no quesito sonhador. Seu ego era todo trabalhado na purpurina e nos strass.<br /><br />Para ela, o céu não tinha limite e a estratosfera não era suficiente. Sua meta era chegar à mesosfera, bem ao lado de Meryl Streep, Angelina Jolie e Jennifer Lawrence, ou qualquer nova queridinha que aparecesse nas revistas de celebridades ou desfilasse sua graça num dos renomados tapetes vermelhos.<br /><br />Contudo, a pobre da Lili não tinha – como direi sem ser cruel? – um talento suficiente para galgar a fama e o estrelato nos palcos, nas telonas, nas telinhas. Mas cá entre nós: às vezes a pessoa dá sorte, e talento não é o fator preponderante no exercício da profissão.<br /><br />Lili não queria ser apenas mais um rostinho bonito no meio de tantos outros – não, senhor! Ela almejava que seu nome passasse no Enem do tempo, onde só os bons ficam nos livros da história e da arte, perpetuando seus nomes, mãos e pés na calçada da fama.<br /><br />Dedicada a menina era, convenhamos. Logo tratou meio de se matricular num curso de teatro, implorando que os deuses lhe ouvissem o pedido de glória. Mas cada fala sua era o retrato mais pungido da canastrice. <br /><br />Seu “Bom dia” soava de uma maneira tão falsa, que as Louis Vuitton da Saara ou da Vinte e Cinco de Março pareciam mais legítimas e verdadeiras no seu sotaque made in China.<br /><br />Não foi uma, nem duas, nem mesmo dez vezes que diretores, dramaturgos, professores, colegas de palco e de tela falavam mal da pobre Lili, por trás; alguns mais cruéis falavam na frente mesmo, mandando ela ir para casa fazer outra coisa, pois o palco não era seu lugar.<br /><br />Mas, se brasileiro não desiste nunca, Lili, uma mistura de portugueses, espanhóis, negros e turcos, levantava a cabeça e seguia em frente, acreditando que seu lugar era a glória – entre as estrelas. Contudo, a cada nova tentativa, levava a porta na cara.<br /><br />Quando alguém, com delicadeza, para não ferir seus brios – sabe como é todo artista, né? – tentava lhe sugerir que buscasse outra profissão, Lili dizia em alto e bom som o quanto era uma incompreendida, o quanto sua arte estava à frente do seu tempo, o quanto era injustiçada, o quanto... o quanto... o quanto... <br /><br />A ladainha era grande, e a criatura cheia de boas intenções virava as costas e ia embora, deixando-lhe fazer o seu discurso em cima da caixa de fósforos.<br /><br />Mas é o que já disse: às vezes o imponderável acontece, e talento não é fator preponderante no exercício da profissão. Foi o que aconteceu com Lili, veja você. <br /><br />De tanto ficar escutando a ladainha da criatura, que lhe pentelhava o saco a toda hora, o velho e bom Dioniso, o pai do teatro grego, resolveu matar dois coelhos com uma cajadada só.<br /><br />Explico: os grandes atores e atrizes que morrem ficam lá no céu do Olimpo desfrutando dos prazeres do convívio com seus pares que muito contribuíram para as artes no mundo.<br /><br />Contudo, eles sentem falta mesmo é do teatro e volta e meia retornam aos camarins para desfrutarem daquela energia que só o palco é capaz de ter. Para um ator, não há céu, por melhor que seja, que tenha mais encanto do que o cheiro de uma coxia e a expectativa da casa cheia.<br /><br />Então, o velho fanfarrão do Dioniso resolveu atender ao mesmo tempo Lili e a velha guarda dos atores e atrizes do Olimpo. <br /><br />Eles poderiam usar a novata atriz como seu “cavalo”, incorporando na aprendiz das artes (na verdade, não é incorporar, não, pois a física diz que dois corpos/almas não podem ocupar o mesmo lugar no espaço. O certo é dizer que trocam energias fluídicas, viu, gente? Procurei no Santo Google).<br /><br />Mas, voltando: então, de repente, não mais que de repente (Salve, poetinha!!), Lili, que era tida como uma canastrona de marca maior, passou a interpretar diferentes papéis com uma competência fora de série. <br /><br />Nunca antes na história deste país se viu uma transformação tão grande. O que ninguém sabia era que nomes nacionais – e até internacionais – vinham trocar energias fluídicas com a pequena. <br /><br />Não importava se fosse homem ou mulher, se tivesse morrido há muito tempo ou fosse um defunto recente, se sabia ou não falar português. Nada disso importava. Nomes como Cacilda Becker, Fred Astaire, Oscarito, Laurence Olivier, Grande Otelo, Chaplin, Sérgio Cardoso, Marlene Dietrich, Zacarias, Marlon Brando, José Wilker, Giulietta Masina... a lista é longa. Para encurtar: pense num ator ou atriz famoso, de renome, com um enorme talento? Pensou? Pois Lili recebia a entidade, acredite se quiser.<br /><br />Com esta parceria divina, Lili logo ultrapassou as fronteiras tupiniquins e passou a atuar e desfilar nos tapetes internacionais, virou figurinha fácil no Oscar e em festivais de cinema, televisão e teatro, sempre levando uma estatueta para a casa.<br /><br />É claro que ela passava por situações constrangedoras em determinados momentos, tipo: quando alguma entidade não se contentava em apenas atuar no palco, mas queria cair na gandaia, ou quando uma entidade duelava com outra para atuar ao mesmo tempo enquanto uma cena acontecia. <br /><br />Teve aquela vez em que ela fazia um caipira, o seu santo de frente naquele momento era Mazzaropi e Sir Laurence Olivier começou a declamar Hamlet em pleno estúdio. <br /><br />Ninguém entendeu nada, e foi a maior zoeira porque ninguém sabia que o talento de Lili era forjado e abençoado por Dioniso, que lá de cima ria muito, divertindo-se com o pandemônio; no final, ele mandou separar os dois “espíritos de porco” que brigavam pelo corpo de Lili.<br /><br />Com isso, Lili acabou ganhando fama entre os seus como alguém de “personalidade forte” (que na verdade é um eufemismo para dizer que a criatura em questão é terrível de se relacionar, egocêntrica e mal-educada).<br /><br />Mas não pense que isso prejudicou sua carreira, longe disso! As revistas de celebridades adoravam, e os cofres da dublê de atriz só foram engordando mais e mais. <br /><br />Aprendam, babies, ser fofo não dá Ibope. No máximo rende algumas notinhas de três linhas numa coluna de fofoca de segundo escalão.<br /><br />E foi assim que Lili fez fama e fortuna, perpetuando seu nome na história como uma das melhores atrizes não só de sua geração, mas entre la crème de la crème, entre as melhores de todos os tempos, uma atriz completa. <br /><br />Dioniso de vez em quando olha lá de cima, esfrega as mãos e dá uma enorme gargalhada, num contentamento só.<br />Carla Giffonihttp://www.blogger.com/profile/12830433045746106919noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5411023288808529609.post-43081643965502789452014-11-07T17:52:00.000-08:002014-11-07T17:52:24.999-08:00PesadeloUm cheiro tétrico invade minhas narinas. Estou de quatro, rastejando num lamaçal pestilento e pegajoso. Sinto nojo. Não consigo controlar meu corpo. Começo a evacuar ao mesmo tempo em que vomito. Sinto-me um ser repugnante. Sou repugnante. Rastejo por aquele lamaçal. Olho para os lados e nada enxergo. Uma névoa maléfica me cerca. Meu corpo dói. Ouço o eco dos meus próprios gemidos num silêncio sepulcral. A velha sensação de desamparo cresce. Sinto-me abandonado e perdido num mar de silêncio. Chamo por minha mãe, por meu pai, por Horácio, mas só os ecos de minhas palavras repercutem no ambiente infecto. Sei que não adianta gritar. Sei também que tenho que me virar sozinho. Não tenho esperança. Tento sair daquele lamaçal rastejando, mas não consigo. De repente, vejo uma cabeça de homem surgir no lamaçal. Num primeiro momento, só a cara. O homem vai crescendo e transforma-se num imenso monstro, com dentes afiados e uma boca descomunal, que cheira a podridão. Eu sei que vou morrer. Eu tenho certeza de que vou morrer, mas fico paralisado. Não consigo fazer absolutamente nada. O homem-monstro abre a boca e avança sobre meu corpo. Grito desesperadamente.<br /><br />
Acordo.<br /> O corpo treme sem controle.<br />Olho para o lado e vejo Renata, deitada, nua, dormindo numa serenidade angelical.<br /> Eu também estou nu e tremo convulsivamente.<br /> O sol despontando no horizonte entra pela porta de vidro, iluminando o quarto.<br /> Visto a roupa e saio.<br /> Na sala me sirvo de um uísque. O líquido queima a garganta. O gosto é horrível, mas bebo mesmo assim, de um só gole.<br /> Abro a porta de vidro que dá para a varanda. O dia vai amanhecendo lentamente. Uma bonita mistura de azul, rosa e laranja compõe o cenário.<br /> O mar, de um azul translúcido, é lindo de se ver.<br /> Lembro-me dos versos da música de Marina: “e tudo o que eu posso te dar é solidão com vista pro mar”.<br /> É o pior tipo de solidão: um horizonte infinito, descomunal, sem expectativa, sem esperança. Numa monocromia de céu e mar monótona.<br /> Sinto vontade de chorar.<br /> Não sou de chorar.<br /> O pomo de Adão sobe e desce.<br /> O uísque começa a fazer o efeito de esquentar o corpo, mas a alma de iceberg continua intacta.<br /><br />Carla Giffonihttp://www.blogger.com/profile/12830433045746106919noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5411023288808529609.post-78790280631199801682013-10-04T07:38:00.001-07:002013-10-04T07:38:12.324-07:00Cida Cinderela - um folhetim televisivoA telenovela brasileira é filha do folhetim do século XIX e descendente direta dos Romances de Cavalaria do século XIV. Mesmo passadas tantas décadas, ainda hoje vemos a estrutura do folhetim e a do melodrama serem utilizadas nas produções. Um exemplo disso é o sucesso que teve a novela Cheias de Charme, da Rede Globo, em 2012.<br /><br />Os autores Filipe Miguez e Isabel de Oliveira revolucionaram o horário das 19 horas, trazendo inovações (por exemplo, utilizar a internet para lançar o clip que colocaria o trio das empregadas no mundo dos famosos), mas tendo como base uma estrutura dramática já consolidada.<br /><br />A personagem Maria Aparecida, Cida para os íntimos, é o retrato de uma Cinderela que ainda carrega no peito os sonhos e anseios de uma jovem donzela de folhetim. Donzela moderna, é bom que se diga, apropriada às aventuras do século XXI, mas que ainda procura um príncipe para chamar de seu. Até a escolha do nome da personagem, Cida, parece ser o diminutivo do nome da personagem de contos de fadas, Cinderela, uma nobre que vivia como gata borralheira na cozinha, tendo como ‘carrasca’ uma madrasta má e suas duas filhas insuportáveis. <br /><br />Cida-Cinderela, no século XXI, é filha de empregada, pobre, mora no quartinho dos fundos, tem como amparo somente uma madrinha que lhe dá o amor de mãe. Cida, como não podia deixar de ser, tem o coração nobre, característica de uma mocinha de folhetim. Vive de favor na casa dos Sarmentos, tendo a carteira profissional assinada, somente depois que completa 19 anos. Antes disso, recebia pelo trabalho apenas moradia, roupas doadas pelas filhas do patrão e comida e tinha que aturar a patroa-má, Sônia. Mais Cinderela não poderia haver.<br /><br />Na verdade, não é apenas Cida o retrato da Cinderela dos dias atuais, contada por Filipe e Isabel. A novela teve como protagonistas três empregadas domésticas que se veem lançadas ao sucesso depois de ter o hit “Vida de empreguete” vazado na internet. Cada uma com características próprias, têm em comum a busca de uma vida melhor: Maria do Rosário quer ser cantora e compositora, Maria da Penha sonha em ser enfermeira e pagar as contas em dia e Maria Aparecida quer ser jornalista. <br /><br />Três Marias que trazem para o horário das 19 horas os anseios e sonhos presentes no imaginário da classe C; anseios característicos de todas as classes sociais, é preciso ressaltar, mas principalmente da classe C brasileira, que por anos foi relegada a ter os bens de consumo e hoje sonha também os sonhos da classe média: dinheiro, fama, sucesso e estudo. São mulheres batalhadoras, que trabalham como domésticas e têm que aguentar as patroas-vilãs. Havia em cada personagem uma verossimilhança que fez o público ficar atento ao enredo durante nove meses, sendo sucesso absoluto nas redes sociais (se beneficiando desta modalidade de comunicação) e no Ibope.<br /><br />Essa verossimilhança é necessária à criação de qualquer história. Cláudia Cristina Maia (UFSC), em Tradição e Modernidade: elementos narrativos na tragédia e no melodrama, lembra que Aristóteles já dizia que, para suscitar o terror e a compaixão, o público precisaria se identificar com as situações apresentadas no palco.<br /><br />“As peças trágicas, então, na busca de uma identificação do palco com a plateia, constrói cuidadosamente os personagens e a trama das ações. Esses são submetidos a um princípio de verossimilhança e a trama, valendo-se de peripécias e reconhecimentos, apresenta uma mudança de felicidade ao infortúnio, mudança esta que ocorre devido a um erro grave do herói trágico. Toda fábula, então, desde a caracterização das personagens até a catástrofe final, deve ser construída em conformidade com a verossímil”.<br /><br />Cida desperta essa simpatia, principalmente nas crianças, segundo pesquisa divulgada pela Rede Globo na época da novela, porque traz em si o sonho da Cinderela e de encontrar seu príncipe encantado, num mundo pós-movimento feminista. O desejo de ser amado é inerente à natureza humana e é isso o que ela busca, seja através da busca do amor compartilhado com o príncipe encantado, seja o amor compartilhado pela figura paterna.<br /><br />Regina Horta Duarte, em seu estudo sobre espetáculos de circo e teatro em Minas Gerais no século XIX, definiu quatro tipos de personagens para o melodrama: vilão, heroína, herói e o tolo. Cida se enquadra no perfil da heroína: “fosse ela uma princesa ou plebeia, aparecia sempre como uma segunda figura, bela e extremamente virtuosa”. Cida era assim, não uma heroína chata, incapaz de seduzir o público. A personagem criada por Filipe Miguez e Isabel de Oliveira não foi tachada como ‘alguém doce demais’. Sua ingenuidade e boa-fé no ser humano cativaram quem assistia e torcia para que ela fosse feliz.<br />Samira Youssef Campedelli, em A telenovela, cita Theodor Adorno ao lembrar que a “indústria cultural tem uma necessidade voraz de novidade para recriar continuamente a mesma coisa”. É verdade. <br /><br />Apesar de todas as inovações que a novela trouxe, os autores utilizaram ferramentas que o folhetim e o melodrama têm e que são comprovadamente capazes de cativar o público. Eles beberam sua história nos contos dos irmãos Grimm, aliados os instrumentos do melodrama, para cativar o público e manter a audiência elevada. <br /><br />Cláudia Cristina lembra ainda que esta identificação do público é despertada também pelo sentido de moralidade e justiça e pela simplicidade das intrigas. Ela está certa. Basta lembrar que uma boa parte da novela foi dedicada a Cida deixando de ser capacho da família Sarmento e, depois, quando ela descobriu que na verdade era filha do seu patrão. <br /><br />A novela teve vários momentos de peripécias (reviravolta completa das ações) e reconhecimento (é o que faz passar da ignorância ao conhecimento) como os capítulos em que Cida descobre quem é seu pai e depois, mais à frente, ela é novamente surpreendida com outra verdade: que o seu patrão não é o seu pai, ele a tinha enganado. A cobiça foi o que motivou o tubarão do Sarmento a forjar o teste de DNA. A importância da peripécia e reconhecimento já se consolidou desde o tempo dos gregos com suas tragédias, como a de Édipo, e desde então tem sido utilizada nos folhetins e melodramas. <br /><br />Não se pode deixar de citar ainda outro fato importante para a composição desta heroína melodramática: a história da gata borralheira, menina pobre, mas com o coração nobre, já foi contada e recontada de diversas formas e a novela Cheia de charme foi mais uma a utilizar esta estrutura. Um exemplo disso é de onde vieram as três personagens: nada mais, nada menos, do que da Comunidade do Borralho. Rosário lá vivia com o pai adotivo e Penha também, com sua família composta de ex-marido, irmão, irmã e filho. Vale lembrar que Cida não vivia no Borralho, mas sim na casa dos Sarmentos. <br /><br />Contudo, depois de ter se libertado da família que a explorava e já tendo dinheiro suficiente para morar num imóvel da Zona Sul, foi justamente para a comunidade, sendo vizinha de Penha que nunca saiu de lá, apesar de ter condições financeiras depois do sucesso do clip Vida de empreguete. Cida e suas amigas são pobres, mas têm personalidade, não renegam suas origens. <br /><br />Até mesmo a busca pelo perfil do príncipe encantado teve sua vez na história das 19h. Entretanto, os autores escolheram trabalhar de forma diferente, não tendo um príncipe tradicional. Cida encontrou Conrado que, a primeira vista, teria todo o perfil do príncipe encantado tradicional: alto, magro, lindo, rico, nascido em berço de ouro. <br /><br />Contudo, ele se mostrou uma grande decepção para a Cinderela pós-moderna. Seu príncipe encantado estava mesmo era na figura de um jovem advogado, morador também do Borralho, pobre e não tão bonito quando o outro. Não chegava a ser feio, o jovem Helano, contudo, não tinha a beleza clássica do que se imagina como sendo de um príncipe encantado. Mas era outro pobre de coração e ideais nobres. Casal mais perfeito, nunca houve na história deste país. <br /><br />Podemos afirmar, ao final deste artigo que Maria Aparecida cumpriu seu papel de heroína clássica, sendo feliz para sempre ao lado de seu príncipe encantado na terra do Borralho. Como diria Cláudia Cristina: “ A arte dramática operando com os sentimentos do homem”. <br /><br />Ninguém resiste uma história bem contada, ou melhor, recontada. <br /><br />Enquanto houver um ouvido para ouvir, ou um par de olhos para ler e alguém para escrever, as histórias farão parte do nosso cotidiano. Os arquétipos estão aí para comprovar as boas histórias permanecem. <br /><br />Podem até se modificar na aparência, mas a essência humana continuará lá, porque, como já disse Joseph Campbell, “os mitos são sonhos públicos; os sonhos são mitos privados”. <br /><br />PS: Este texto foi o trabalho final para a matéria 'Ficção Televisiva' referente ao curso de pós-graduação em Roteiro para cinema e TV na Universidade Veiga de Almeida/2012. O curso teve como professor Rogério Sacchi e as fontes de pesquisas foram os textos dados em sala.<br />Carla Giffonihttp://www.blogger.com/profile/12830433045746106919noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5411023288808529609.post-6734027058648341752013-10-04T07:36:00.003-07:002013-10-04T07:36:24.405-07:00O avesso do avessoEle nasceu com a alma pelo avesso. <br />Melhor dizendo, sua alma era o avesso do avesso. <br />Ninguém nunca notou qualquer diferença quando era um rosado bebê. Mesmo durante a primeira infância, nada se notava. Mas sua alma era o avesso do avesso, e carregaria esta sina até o final dos seus dias.<br /><br />Foi só a partir dos dez anos que os primeiros sintomas começaram a surgir. Ele era um tanto ou quanto diferente dos outros meninos de calças curtas. Sim, no tempo dele, os guris tinham que vivenciar um rito de passagem ao usarem a primeira calça comprida, sinal de que já eram homens.<br /><br />A primeira a notar que sua alma era o avesso do avesso foi uma menina de longas tranças negras, que usava pesados óculos de grau. Foi ela quem lhe disse, na sua sapiência dos sete anos, que ele era diferente e que não queria brincar com ninguém tão estranho assim.<br /><br />Aquilo machucou seu ingênuo coração, porque na verdade o que ele queria era ficar próximo daquela menina que lhe despertava sentimentos inusitados no peito. <br /><br />Seu coração batia num compasso diferente e ele intuía – já naquele tempo – que aquele modo de bater não era normal. Séculos e séculos de cultura judaico-cristã incrustada no seu dia a dia fizeram aquele pobre garoto temer ir para o inferno de Dante antes mesmo de conhecer o bardo italiano.<br /><br />Ele crescia, e seu coração batia descompensado, já que trazia a alma pelo avesso do avesso. Em vão ele tentou esconder sua condição. Sempre tinha um infeliz – talvez um feliz, não sei dizer – que conseguia enxergar a índole precária do seu princípio vital.<br /><br />A família já desconfiava, principalmente sua Dindinha, mas todos fingiam – ou talvez não quisessem enxergar – que ele era um ser normal. Mas não era. Nunca seria.<br /><br />O tempo foi passando, e, na primavera da vida, inseguro como todos os que passam pela estação favorita dos amantes, ele tentou de todas as maneiras “desvirar” a alma e fazê-la ser igualzinha a tantas outras. Foi a um Pai de Santo, buscou os Orixás, fez regressão a vidas passadas, pediu ajuda aos padres, depois aos pastores, jogou tarô, leu todos os livros de seitas espiritualistas e até de deuses astronautas. <br /><br />Não satisfeito, fez análise com um renomado e caro psicólogo, mas nada, absolutamente nada adiantou. Seu destino não era ter um âmago comum. Ele teria que passar na vida pelo ônus e pelo bônus de carregar o avesso do avesso da alma.<br /><br />Já adulto, conformou-se com a situação e buscou viver a vida de maneira mais próxima do dito normal. <br /><br />Trabalhou num emprego público. <br />Namorou. <br />Estudou. <br />Amou. <br />Desamou. <br />Amou de novo. <br />Brigou. <br />Fez as pazes. <br />Xingou. <br />Casou. <br />Veio o primeiro filho. <br />Depois o segundo. <br />No total foram seis. <br /><br />Os netos chegaram, e durante todos esses anos teve que conviver com a alma desregrada, sem temperança, imoderada e descomedida. Às vezes esquecia que trazia consigo o avesso do avesso na alma, mas aí acontecia alguma coisa insignificante que o lembrava de sua condição.<br /><br />Hoje é um senhor que caminha pelas ruas de uma grande metrópole neste vasto mundo de meu Deus. Os mais jovens não sabem dizer o que o torna tão diferente, se o sorriso largo, se a voz grave e baixa, se a presciência no olhar. <br /><br />Mas notam-lhe um diferencial.<br />Carla Giffonihttp://www.blogger.com/profile/12830433045746106919noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5411023288808529609.post-58804474641594368502013-10-04T07:28:00.000-07:002013-10-04T07:28:16.609-07:00O palco e euMinha relação com o teatro começou muito, muito cedo. Desde que pisei no colégio, já me voluntariei para participar de algum evento que tivesse que ir à frente declamar meia dúzia de versinhos. <br /><br />Era sempre uma das primeiras a levantar a mão, toda contente e feliz. Sou uma exibida, admito, e sempre gostei de aparecer sob as luzes da ribalta.<br /><br />Lembro até hoje um dos muitos versinhos que declamei nos áureos tempos infantis. A primavera estava chegando, e o colégio promoveu uma grande atividade entre todas as séries, para saudar a estação das flores. Na minha turma, a professora deu para cada aluno que quis participar um pedaço de uma árvore. Para mim caiu a folha, e lá fui eu, toda vestida de verde e com dois pedaços de papel crepom recortados em formato de folhas. <br /><br />Na mão esquerda, uma folha amarela e, na direita, uma verde. Lembro como se fosse hoje que eu, alegre e saltitante, fui à frente, toda exibida, dizer os seguintes versinhos:<br /><br />– Sou a folha, sou verdinha, sou verdinha (mostrava o papel crepom verde), mas quando fico velha (escondia o papel crepom verde e mostrava o amarelo), fico toda amarelinha!<br /><br />Foi a glória!<br />Fiquei quase uma semana junto com minha tia-avó, carinhosamente chamada de Dindinha, ensaiando para não fazer feio à frente de colegas, professores, minha mãe e do pastor da congregação — eu estudava num colégio metodista.<br /><br />Dedicação total durante sete dias, até encontrar o tom ideal para declamar os tais versinhos primaveris. Não é para me gabar, não, mas acho que Meryl Streep não se dedicou tanto a uma performance como eu.<br /><br />É bem verdade que minha diretora teatral era uma mistura de Stanislavski e Zé Celso, com uma pitadinha de Gerald Thomas. Dindinha era rigorosíssima e não aceitava menos do que a perfeição. O resultado: fui ovacionada em cena aberta! Pelo menos, é assim que me lembro.<br /><br />Depois, o palco do colégio já era pouco para o meu grau de exibição. Já estava maior, tinha uns 12 anos, quando ingressei no primeiro grupo de teatro amador em Barra Mansa. Dos 12 aos 25 anos fiz teatro amador, participei de festivais (fui até cotada como finalista para ganhar o prêmio de melhor atriz; não ganhei, mas não me importei. Já valeu ter concorrido!); atuava em peças nos colégios e onde quer que nos chamássemos, no estilo mambembe mais legítimo. Era ótimo, e aprendi muito a compartilhar e a escutar o outro.<br /><br />Foram vários grupos de que participei: nóS OS nus , que brincava com o título ao escrever a palavra SOS, grupo Granada, Getape e Gatson (não me lembro dos significados das siglas) e, por último, participei de algumas oficinas dadas no Sesc Barra Mansa. <br /><br />Teatralmente, foi a melhor época de minha vida, porque tive professores como Luciano Maia (professor da Unirio), Roberto Lima (bailarino e professor da Escola Teatral Martins Pena), Zé Luiz, Carlos Pimentel, entre outros.<br /><br />Formamos uma turma boa e unida. O Luciano, que na época morava na Urca, abriu a porta de seu apartamento para a trupe de jovens alunos barra-mansenses, que eram apaixonados por teatro. Era tão bom! Guardo nas dobras do coração a felicidade que sentia quando andava por aquelas ruas da Urca, principalmente a Ramom Franco. <br /><br />A gente comia macarrão com salsinha, jogava ImaginAção e Batalha Naval e era feliz, muito feliz naquele quarto e sala. Eu sempre precisei de pouco para ser feliz, já naquela época. <br /><br />Durante a vida inteira, eu pensei que, quando crescesse, seria médica.<br />Uma vez, minha professora de português no ginásio determinou que cada aluno deveria entrevistar um profissional cujos passos quisesse seguir, então fui entrevistar o médico de minha família, o dr. Eros.<br /><br />Naquela época, tinhamos um gravador da National portátil, e fui munida com o aparelho e diversas perguntas – não sabia que isso era uma pauta. Quando mostrei o trabalho, a professora primeiro não acreditou que euzinha tivesse tido a ideia e elaborado as perguntas. <br /><br />Ela disse que podia contar a verdade, porque não tiraria ponto do meu trabalho. Eu garanti a ela que tinha feito tudo sozinha, e ela insistiu, ainda não acreditando. Para dona Efigênia – este era o seu nome –, eu tinha tido ajuda de algum adulto, tipo minha mãe ou pai. Jurei de pés juntos que tudo saiu da minha cabeça, e aí dona Efigênia, depois de um minuto de silêncio, olhando dentro dos meus olhos, perguntou com voz mansa:<br /><br />– O que você vai ser quando crescer ? (Eu tinha dez anos.)<br />– Vou ser médica! – disse, com o peito retumbante de orgulho.<br /><br />Mais trinta segundos de silêncio, e ela profetizou:<br /><br />– É, mas você poderia ser jornalista.<br /><br />Quando ouvi suas palavras, fiquei indignada, como se a mulher tivesse me chamado de rameira ou algo que o valha. Naquela época, ser puta era ofensa.<br /><br />Então quando, anos depois, na casa do Luciano, dei por mim e descobri que não queria ser médica, mas, sim, mexer com o teatro, foi uma grande descoberta. Sim, porque até então eu não encarava o teatro como algo que pudesse ter como profissão, era apenas algo que me fazia feliz e realizada. Parece coisa de maluco não associar felicidade e realização com profissão, eu sei. Mas não fiz esta associação até passar os finais de semana no apartamento do Luciano.<br /><br />Resultado: resolvi fazer a prova para artes cênicas na Unirio. O Luciano ainda não tinha feito o concurso para a faculdade federal.<br /><br />Escolhi para a prova prática a peça de Jean Genet As criadas. Eu e mais três amigos da trupe do Sesc de Barra Mansa prestamos vestibular para teatro. Fizemos duas provas: uma de conhecimento geral (matemática, física, português, biologia etc.); outra de conhecimento cultural (com nomes de diretores, dramaturgos, cineastas etc.); depois fizemos o teste de improvisação e, por último, uma cena escolhida previamente pelo aluno.<br /><br />Como a vida inteira estudei para ser médica, meu nível de conhecimento era bom o suficiente para passar sem dificuldade; também passei bem na prova de conhecimento cultural.<br /><br />O problema começou com a prova de improvisação, que foi até razoável, pelo que me lembro, mas a apresentação da cena da peça de Genet foi um desastre. O nervosismo me tomou a alma. Quando saí da sala onde me apresentei aos professores, o Luciano disse que eu estava amarela, com os lábios roxos. <br /><br />Resultado: não passei, e foi um momento muito triste e decepcionante para mim. Chorei horrores, acho que chorei todas as lágrimas de minha adolescência e juventude e, tive o colo amoroso do Luciano, do Roberto, do Zé Luiz, da Kátia (que era coordenadora do curso do Sesc de Barra Mansa na época) e do Pimentel.<br /><br />Chorei. <br />Chorei. <br />Chorei. <br />Chorei. <br />Chorei.<br /><br />Os três amigos de Barra Mansa que fizeram a prova comigo todos passaram, e aí me senti pior ainda. Alegre, porque eles tinham passado, mas infeliz, por não poder vir para o Rio.<br /><br />Hoje entendo que, realmente, mesmo que tivesse passado, não conseguiria me mudar para esta cidade que amo. Ainda tinha ‘toco de vela’ pra queimar em Barra Mansa.<br /><br />Ao voltar para minha cidade, fiquei sem saber que rumo tomar, porque já tinha perdido a ilusão infantil de que queria ser médica; o teatro tinha me rejeitado, e eu ia fazer o quê? Foi aí que minha tia Tereza sugeriu que fizesse uma faculdade em Barra Mansa mesmo. Fui para a Sobeu (era o nome da faculdade na época; hoje se chama Centro Universitário de Barra Mansa), e lá tinha várias cadeiras: Direito, Enfermagem, Jornalismo, Letras, Administração etc. Fiz o vestibular outra vez e passei com uma boa colocação.<br /><br />Naquela época, o aluno entrava na faculdade, fazia o primeiro ano básico e depois, dependendo da pontuação, poderia escolher a cadeira que quisesse. Ele podia escolher três cadeiras, como primeira, segunda e terceira preferência: meu primo Renno sugeriu que eu fizesse Direito. Mas eu fui categórica:<br /><br />– Renno, eu nunca vou aprender a fazer direito. Já nasci torta, não tem jeito.<br /><br />Ele pensou que eu estivesse brincando, mas era verdade.<br />Minha primeira escolha foi Jornalismo, a segunda opção foi Letras e, para fazer a vontade do meu primo, incluí Direito como terceira opção. Culpa dele. Mas acabei passando para Jornalismo, já que tive notas legais no ciclo básico.<br /><br />No primeiro dia de aula da cadeira de Jornalismo me apaixonei. Foi mesmo paixão à primeira vista. Rendi-me completamente e fui entusiasmada por todo o curso, que durou quatro anos. Antes do término do primeiro período já estava trabalhando na área. Era repórter política de um jornal semanário. Desde que comecei a atuar no jornalismo, sempre escrevi sobre política.<br /><br />Amo escrever sobre política. Adoooro entrevistar políticos, ir para câmaras e assembleias legislativas! Adoro mesmo, do fundo do meu coração. Vale ressaltar que não sou filiada a nenhum partido político e sequer digo em quem voto.<br /><br />Tem gente que não entende o meu amor por escrever sobre uma categoria profissional tão escorraçada no Brasil. Digo que amo e explico:<br />A política é um grande teatro. Tem o ator principal, tem o vilão, tem o pícaro, a mocinha, a mulher fatal, tem tudo que é personagem, e o melhor de tudo é que quem hoje faz o papel do mocinho pode se transformar em vilão amanhã! Nada é fixo, é tudo variável, é mutante. Uma grande encenação, uma grande arena, no melhor e no pior sentido.<br />Minha visão da vida é teatral.<br /><br />O teatro está dentro de mim, mesmo que eu não pise mais num palco interpretando algum personagem. Hoje eu escrevo sobre eles, os personagens. Sou jornalista e também escritora e estou entrando na seara do audivisual como roteirista.<br /><br />Hoje eles, os personagens, povoam minha mente, minha vida. Basta ir ao meu blog literário para ver que o que escrevo é verdade. Lá estão os vários personagens que criei: tem Carnegão, que é apaixonado por Ritinha; tem também Matilde e Donana, que buscam uma viúva no velório sem saber quem é ela; o Adão, que acha que se casou com a mulher perfeita; o Tuninho Hilário, que sofre porque ninguém o leva a sério. <br /><br />São mais de oitenta textos criados. <br />Meu pacto com a fantasia é grande. Muito grande.<br /><br />Na verdade, meu pacto com a fantasia é enorme mesmo; contudo, reconheço que este pacto é grande por causa da palavra. Se o teatro descobri aos cinco anos, quando entrei para o colégio, a palavra eu descobri um pouco antes. Antes mesmo de saber ler.<br /><br />Lá em casa, sou filha única e sempre via os adultos lendo muito. Eu queira a atenção egoística infantil e sempre encontrava alguém com a cara enfiada naqueles objetos pesados ou mesmo numa folhas grandes que mais tarde vim a saber que eram os jornais.<br /><br />Lembro-me de uma vez em que estava sentada na varanda da casa do meu avô, segurando um livro grande e pesado dele. Vô Fausto era farmacêutico e tinha uns livros pesados, com pouquíssimas figuras e que ele vivia lendo.<br /><br />Lembro-me de estar usando um vestido azul-marinho que pinicava a pele; eu odiava a roupa, mas minha mãe me obrigou a usar. Lá em casa criança não tinha querer.<br /><br />Se fechar os olhos, posso sentir o peso do livro nas minhas pernas gordinhas e a enorme curiosidade que sentia por descobrir o que tinha naquele negócio, aqueles sinais esquisitos (mais tarde descobri que eram letras) que faziam com que o pessoal da minha casa não me desse a atenção que eu queria.<br /><br />O resultado disso é que, quando fui para o colégio, já sabia escrever meu nome inteiro – e ele é grande; sabia contar de um a cem; sabia formar pequenas palavras, como ‘ovo’, ‘papai’, ‘mamãe’, ‘mala’, ‘casa’, ‘rosa’ etc. <br />Meu amor pela palavra começou aí.<br /><br />Eu me lembro muito bem que numa ocasião…<br />Bem, mais isso é outra história.<br /><br />Carla Giffoni é jornalista, com 18 anos de atuação em jornais, rádio, TV, revistas e internet. É graduada em Comunicação Social/Jornalismo pelo Centro Universitário de Barra Mansa; fez também Letras/Formação de Escritor na PUC-Rio; tem pós-graduação em Jornalismo Cultura (Estácio) e atualmente faz uma segunda pós-graduação, em Roteiro para Cinema e TV (Universidade Veiga de Almeida). Tem um blog no Recanto das Letras (www.recantodasletras.com.br/autores/carlagiffoni), onde escreve ficção e faz análise literária de diversos autores e/ou obras. Carla está para lançar seu primeiro romance e também está escrevendo, no momento, uma peça teatral.<br /><br />Carla Giffonihttp://www.blogger.com/profile/12830433045746106919noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5411023288808529609.post-40514860770145120602013-10-02T17:29:00.000-07:002013-10-02T17:29:01.751-07:00Alexçandra Ela nasceu para ser uma estrela a brilhar no céu infinito da constelação artística. <br /><br />Era assim que dona Judith se referia à pequena que saiu de suas entranhas. Desde que ficou sabendo que estava grávida, a jovem mãe já profetizava que seu rebento faria a diferença no mundo. <br /><br />Por isso, a escolha do nome foi meticulosamente planejada e, depois de muitas e muitas pesquisas em revistas e livros comprados nas bancas de jornal, decidiu que a pequerrucha se chamaria Alexçandra Sylva e Souzza. <br /><br />Deste jeito mesmo. Juro!<br /><br />A pequena Alexçandra Sylva e Souzza já trazia na grafia do nome toda a singularidade que o olhar materno bradava a quem quisesse ouvir. <br /><br />Dona Judith, depois de noites em claro, calculando qual o melhor nome para combinar com os sobrenomes de sua família e do marido, chegou ao denominador comum de que a alcunha da filhota deveria ter a letra “z” do sobrenome dobrada, e que o “x” ao lado ao “ç” traria uma abertura para o infinito. O cedilha do “c”, aliado à perna do “y”, era como se fosse uma antena para captar energias positivas conspirando para o brilho estelar da pequena infante. <br /><br />Além disso, para ajudar um pouco mais, Judith resolveu colocar um “e” entre os dois sobrenomes, para que o epíteto tivesse mais glamour e status. <br /><br />Toda família chique tem um “e” unindo os sobrenomes, não é mesmo? Nem todo mundo concorda, mas esta era a opinião da mãe da little star.<br /><br />Com tanta certeza no peito materno, a pequena não teve outro caminho a seguir: seria miss-atriz-modelo-apresentadora-instrumentista-cantora-bailarina.<br /><br />Desde muito pequena, a mãe já matriculou a menina em diversas escolas: modelo, teatro, balé, jazz, danças cigana e afro, sapateado, piano, guitarra, teclado, violino e canto. A genitora carregava a certeza absoluta de que sua girl seria a primeira da turma em todas as matérias. <br /><br />Não foi bem isso o que aconteceu... mas a mãe, orgulhosa da cria que gerou, acreditava piamente de que as professoras estavam de implicância e inveja ao não reconhecerem o talento enorme e estrondoso de sua filha.<br /><br />Alexçandra era uma criança adorável, como toda criança é, e que carregava em si toda a potencialidade do mundo. Contudo, convenhamos!, estava muito longe de ser a nova Shirley Temple ou a versão feminina do século XXI de Michel nos áureos tempos dos Jackson Five!<br /><br />Alexçandra não teve a oportunidade de escolha. <br /><br />A mãe jurava de pé junto que desde muito pequena a filhota já pedia para ser fotografada e queria sempre estar à frente das outras menininhas de sua idade. Ainda nem engatinhava e só parava de chorar quando ela ou o marido davam um microfone de brinquedo para pequena se entreter. Nunca houve na história deste país bebê com mais suingue do que Alexçandra ao balbuciar:<br /><br />- Badabadá, badabadá, badabadá!<br /><br />Antes mesmo de completar um ano de vida, a pequena já era inscrita em todos concursos de pomada contra assadura para bebês. <br /><br />Depois, maiorzinha, começou a fazer desfiles e participar de concursos de beleza, tal qual aquela menininha de filme de Hollywood. <br /><br />A diferença é que Alexçandra nunca concorreu ao Oscar, mas isso era uma injustiça, porque se ela tivesse nascido na terra do Tio Sam, certamente a história seria outra, dizia sua mãe, cheia de empáfia.<br /><br />E foi assim, de ano a ano, que a jovem Alexçandra foi crescendo mimadinha e se firmando, ou pelo menos tentando se firmar no mundo artístico. <br /><br />Sempre conseguia papéis secundários no teatro, cinema, TV e propaganda, até que um dia ela conseguiu passar num teste para ser a atriz principal de um drama destes modernos, tipo “cabeça”, que só gente muito inteligente é capaz de entender, ou finge melhor que entende do que nós pobres mortais.<br /><br />A meia dúzia de quatro intelectuais presentes adorou a trama e teceu enormes elogios à peça em cartaz. Com isso, Alexçandra Sylva e Souzza foi elevada ao patamar de estrela-teen precoce, por encabeçar um texto tão maravilhosamente hermético. <br /><br />Como acontece frequentemente, as pessoas começaram a ir ao espetáculo porque, afinal de contas, só os inteligentes é que iam a este tipo de teatro, e como ninguém queria admitir ignorância e burrice, uma fila imensa se formou, e Alexçandra era a cada noite mais e mais ovacionada em cena. <br /><br />Em pouco tempo, a televisão a chamou e aí ela, que dava uns trinta autógrafos a cada noite, começou a dar centenas por dia. Era uma estrela agora, com todas as letras maiúsculas – sempre fazendo o mesmo papel é bem verdade. <br /><br />No meio disso tudo estava o orgulho de dona Judith. Seu orgulho era tão grande, que era capaz de chegar vinte minutos antes dela entrar num ambiente. <br /><br />A mãe de Alexçandra Sylva e Souza dizia a quem quisesse ouvir que sempre teve certeza absoluta de que sua pequena seria alguém que brilharia na constelação, no meio de outras estrelas de maior grandeza. Dona Judith batia no peito como deve bater qualquer mãe de miss-atriz-modelo-apresentadora-instrumentista-cantora-bailarina.<br /><br />Alexçandra, como toda boa estrela que se preze, começou a exigir regalias para seu camarim, tanto no teatro, como na TV, no cinema ou em qualquer evento de que participasse.<br /><br />Os itens mais frequentes de sua longa lista eram: <br />* quinhentas toalhas brancas e felpudas; <br />* dez caixas de água Perrier, <br />* arranjos de rosas cor-de-rosa (caules longos) e brancas (caules curtos), que deveriam seguir os modelos das fotos enviadas por seu personal-florist, <br />* filés de tilápia, <br />* mixed nuts, <br />* sucos e chás orgânicos, <br />* uma espreguiçadeira, <br />* um espelho da Baviera, <br />* cinquenta quilos de gelo feito com água mineral de Caxambu, <br />* a ausência de qualquer coisa em roxo no seu camarim ou roupa, <br />* os móveis deveriam ser de material orgânico<br />* e o camarim deveria estar sempre com o ar-condicionado ligado à temperatura de 15ºc, <br />* balas e jujubas diet <br />e outras cositas mais porque ninguém é de ferro, né, nega?<br /><br />De mimadinha, Alexçandra passou a ser uma estrela temperamental. <br /><br />A assessora de imprensa (sim, ela contratou uma, bem como um personal stylist) da jovem estrela sempre se desculpava devido aos atrasos e petis que a filha de dona Judith dava, alegando estresse. <br /><br />Houve alguns casos que foram abafados, como a vez em que ela avançou e arranhou a cara da cabeleireira que fazia seu penteado de época. A alegação dada é que a profissional tinha colocado a flor do lado errado. <br /><br />Teve também aquela vez em que Alexçandra bateu com o microfone na cabeça do operador de som, o que não teve grandes consequências, graças a Deus, só um traumatismozinho craniano leve, bobagem pouca! Enfim, Alexçandra Sylva e Souzza se tornou um entojo.<br /><br />Sua assessora de imprensa penava por ter que abafar os casos e conter o temperamento difícil da estrela. Mas como ela era uma profissional gabaritada e cheia de contatos, Alexçandra sempre aparecia em campanhas humanitárias, doando pipoca para as crianças abandonadas, ração para gatos e cachorros em canis públicos e posando ao lado de velhinhos nos asilos. <br /><br />Muito fofa!<br /><br />Em todas as fotos, dona Judith dava um jeito de aparecer como papagaio de pirata da filha. Às vezes dava certo; outra vezes, gentilmente era convidada a ficar de lado, sem aparecer na foto.<br /><br />Dona Judith, inclusive, abriu uma página numa rede social com o seguinte título: “Sou mãe de Alexçandra Sylva e Souzza”. Não é que bombou?! Em poucos meses, a genitora da estrela já tinha milhares de seguidores. <br /><br />Claro que a página de Alexçandra, feita pela sua assessoria de imprensa, bombava muito mais, mas Judith não se importava com o sucesso maior do seu rebento.<br /><br />Vou te contar um “bafo”: dizem à boca pequena que Alexçandra não tinha autorização de escrever nada na sua página virtual, para não danificar sua imagem tão duramente construída pela equipe. Todas as mensagens fofas e carinhosas eram criadas pelos competentes profissionais. Mas isso é tudo bobagem mesmo, coisa de gente invejosa, que não conseguiu um lugar no firmamento!<br /><br />Com tanto sucesso, tanto prestígio, tanto poder, a mãe da celebridade estava mais feliz do que pinto no lixo, até que chegou um dia em que a casa caiu. <br /><br />Sim. Veja você: tudo tão maravilhosamente planejado por dona Judith e depois pela equipe de produção de Alexçandra desmoronou quando a jovem, já com vinte e cinco anos, decidiu ir para o Tibet ser monja budista ou qualquer coisa que o valha. Queria sair da vida de brilho para buscar “sua essência interior” etc. etc. etc. etc. etc. etc..<br /><br />Ninguém entendeu nada: diretores, colegas de trabalho, assessoria de imprensa, público, jornalistas e, principalmente, a mãe, dona Judith. <br /><br />Se Alexçandra tivesse sido atropelada por uma manada de elefantes brancos tendo em cima de cada animal uma irmã carmelita descalça do Tibet, a notícia não teria tido tanto impacto no coração da senhora Judith Silva Souza. <br /><br />Coitada! <br /><br />Dava pena de ver o desespero da genitora, que não aceitava a “morte” profissional da filha, que se retirava para o exílio espiritual. De nada adiantou chorar, bater no peito, rasgar a roupa, ameaçar se jogar do primeiro andar do apartamento em que morava, se descabelar de tudo que é forma. Alexçandra virou as costas e foi embora, buscar sua essência interior. Simples assim.<br /><br />Como isso é muito raro, uma celebridade abandonar o estrelato por vontade própria, a mídia passou a seguir os passos de dona Judith, tentando entender o porquê de uma atitude tão drástica da jovem atriz. <br /><br />Com isso, Judith começou a aparecer em revistas e programas de TV para explicar, ou tentar explicar, a situação. Uma revista de celebridades a convidou para fazer uma reportagem num castelo francês, onde a mãe pôde falar pela enésima vez que a filha buscava seu lado espiritual. Judith garantiu que, assim como ela, a filha que nunca foi ligada às coisas mundanas.<br /><br />Não é que a velhota, quer dizer, a senhora da terceira idade, começou <br />a bombar mais e mais? Foi chamada para abrir ou fechar desfiles da Fashion Week de São Paulo e do Rio? <br /><br />Te mete!<br /><br />Logo dona Judith aproveitou a equipe (que já assessorava a filha) em proveito próprio e em menos de seis meses já estrelava uma peça de teatro de um cânone universal, um texto de Tchekhov; além de ser convidada para aparecer na telinha da TV.<br /><br />Não quero falar da “falecida”, que Deus tenha Alexçandra na paz celestial do Tibet, mas a mãe dava de dez a zero no quesito interpretação! Muito melhor do que a filha temperamental! Muito, muito melhor!<br /><br />E foi assim que todos foram felizes, cada um do seu jeito. Alexçandra tornou-se monja, raspou a cabeça e se veste de roxo, uma cor ligada à espiritualidade, e é feliz na montanha gelada do Tibet, enquanto sua mãe brilha nos palcos, telonas e telinhas pela vida afora.<br /><br />Sabe não? <br />Ela está cotada para concorrer ao Oscar como melhor atriz de filme estrangeiro. Uma interpretação notável teve Judith Silva Souza.<br /><br />Ela não quis utilizar a grafia do nome da filha. Consultando um místico, ele sugeriu que ela deixasse a grafia do jeito que era mesmo, sem papagaiar muito. <br /><br />Judith Silva Souza era um nome nascido para brilhar e brilhou mesmo!<br /><br /><br />Carla Giffonihttp://www.blogger.com/profile/12830433045746106919noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5411023288808529609.post-68561025290502970492013-10-02T17:26:00.001-07:002013-10-02T17:26:59.143-07:00A Duquesa - análise do filme (*)O filme A Duquesa (2008), com roteiro Jeffrey Hatcher e Anders Thomas Jensen, dirigido por Saul Dibb, mostra a vida da inglesa Georgiana Cavendish, duquesa de Devonshire: uma mulher que se mostrou, em determinados momentos de sua vida, uma pessoa à frente do seu tempo – numa época (século XVIII) em que o sexo frágil ainda não tinha queimado sutiãs em praça pública e o destino feminino certamente não era se envolver em política, sequer frequentando palanques, tampouco ajudando a eleger um primeiro-ministro e muito menos apoiando as Revoluções Francesa e Americana. <br /><br />Georgiana fez tudo isso, não apenas demonstrando inteligência e perspicácia perante a corte inglesa, mas se tornando a 'queridinha' do povo.<br /> <br />O filme britânico é baseado no best-seller de Amanda Foreman, que escreveu sobre a vida da aristocrata inglesa. O diretor optou para sinalizar desde o início que se trata de um filme “baseado numa história real”, tentando capturar a simpatia do espectador num mundo pós-utópico, onde tantas conquistas femininas foram realizadas, mas nem de longe todas.<br /><br />A duquesa de Devonshire é uma típica heroína do século XVIII, casando-se por conveniência com um aristocrata que só queria gerar um herdeiro e, depois, vivendo um amor impossível – que o diga Os Sofrimentos do jovem Werther (1774), obra-prima de Goethe.<br /> <br />A história desenvolvida pelo trio Hatcher-Jensen-Dibb mostra o quanto a jovem de 18 anos era ingênua, acreditando estar-se casando por amor, para descobrir, depois, que na verdade o marido queria apenas uma parideira que lhe gerasse uma porção de meninos que levassem o seu nome. O primeiro conflito surge na vida de Georgiana quando ela engravida – sempre de meninas, e quando lhe nasce algum menino, é natimorto.<br /> <br />A infelicidade matrimonial parece estar no cerne da vida aristocrática inglesa: no lançamento do livro, e também no do filme, não foram poucos os que traçaram um paralelo entre a infeliz vida matrimonial da duquesa de Devonshire e a de sua descendente direta, a princesa Diana (morta em 1997, mais de dez anos antes do lançamento do livro e do filme).<br /> <br />Mas o que torna, em pleno século XXI, uma heroína como Georgiana ainda atraente o suficiente para o livro virar best-seller e gerar um filme, que ganhou o Oscar de Melhor Figurino?<br /> <br />Podemos analisar que a necessidade dramática da heroína cumpre o seu papel: gerar conflito. Ela sofre, como deve sofrer toda heroína romântica: primeiro com a indiferença do marido – todos são cativados por sua inteligência, beleza e perspicácia, menos o duque.<br /> <br />O sofrimento não para aí: depois ela se vê traída pela única amiga que conseguiu, Lady Bess Foster, que se torna amante do duque. A duquesa a leva para viver debaixo de seu teto e recebe a punhalada ao flagrar o marido com sua melhor amiga.<br /> <br />A partir de então, com tanta desilusão no seu mapa astral, Georgiana só quer ser feliz e encontra a felicidade nos braços de um jovem político, idealista como ela: Charles Grey.<br /> <br />Sinto dificuldade em classificar o tipo arquétipo da bela duquesa. Ela é uma mistura de uma jovem heroína que une a 'criança impetuosa' (corajosa, verdadeira, leal até o fim; uma garota com determinação, que só quer ter seu próprio cantinho, ser amada pelo político idealista e viver uma linda história de amor) a características de outros arquétipos. A heroína é também a 'guerreira' – é uma lutadora dedicada, que cumpre seus compromissos; basta lembrar que ela, ao ser chantageada pelo marido, larga o amante para ficar com os quatro filhos, cumprindo sua sina de mártir. Já ela ter sido capaz de aceitar a filha bastarda do marido, que ela cria com se fosse sua, nos revela traços do arquétipo de uma grande 'mãezona'.<br /> <br />Isso a torna cativante? <br /><br />Cativante o suficiente para carregar o leitor por todo o enredo? Pulando fora das páginas do livro e da sala de projeção nos cinemas? <br /><br />Sinceramente? <br />Para a maioria dos leitores que tornaram o livro (que acabou gerando o filme) um best-seller, talvez. <br />Não para mim. <br /><br />Vale ressaltar que não li o livro, minha análise se baseia exclusivamente no filme. Certamente algum mérito a obra tem, porque senão não teria se tornado um livro mais vendido. Contudo, sinto no filme o eterno clichê romântico que não surpreende ao final.<br /> <br />Ok, ok, ok. Admito que é um ótimo filme para se ver na Sessão da Tarde, num dia chuvoso, quando a gente fica debaixo do edredom, tomando chocolate quente e vendo o amor impossível de uma mulher do século XVIII, aquelas belas roupas (o filme ganhou o Oscar não foi à toa!). Mas, se for para realmente me emocionar com uma mulher que sofreu, prefiro 'A cor púrpura' (1985), drama dirigido por Steven Spielberg e baseado no romance epistolar da escritora Alice Walker. É apenas uma questão de gosto, vou logo avisando.<br /><br />Ao se analisar a evolução da personagem principal, a duquesa, tenho a sensação de que este processo é previsível, não me surpreendendo enquanto espectadora.<br /><br />Está certo que a duquesa demonstra ter uma força interior – ninguém que renegue o amor de sua vida pelo bem dos próprios filhos pode se dizer um fraco; ela sublimou os desejos próprios em virtude do bem-estar da prole. Mais romântico do que isso, nem Goethe ou nenhum dos autores do Movimento Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto) pensariam em algo melhor.<br /><br />Alguns entendidos podem argumentar que este papel de sublimação do amor é próprio do gênero, ainda mais se pensando na época em que a personagem viveu. Pode ser.<br /><br />Talvez eu seja ‘muderna’ demais e não consiga acreditar neste tipo de heroína. Que a duquesa seja capaz de despertar em mim a verossimilhança tão necessária para criar empatia entre personagem/espectador/leitor.<br /><br />Analisemos o antagonista do filme, o marido da duquesa. Ele é um homem do seu tempo. <br /><br />Claro que não estou aqui defendendo que um homem pode estuprar a própria mulher num momento de raiva, longe disso! Admito que o conflito entre eles (heroína e antagonista) é crucial para o desenvolvimento do enredo; se ele fosse um banana, a história contada seria outra.<br /><br />Entretanto, não classifico os objetivos do enredo como algo vibrante e interessante, apesar de a oposição do duque ser tão forte quanto a personagem principal.<br /><br />Quando disse, no início deste texto, que a duquesa foi uma mulher que mostrou ser apenas em determinados momentos de sua vida uma pessoa à frente do seu tempo é porque me lembrei de outras personagens da “vida real” que também enfrentaram situações contrárias à moral vigente e realmente optaram por viverem à margem da sociedade. <br /><br />Um exemplo disso é a brasileira Chiquinha Gonzaga (1847-1935), que realmente enfrentou a sociedade patriarcal, largando o marido, os pais e a reputação para viver sua arte e seu amor por um jovem muitos anos mais novo do que ela – Chiquinha já tinha 52 anos, e o jovem era um adolescente, com 16 anos.<br /><br />Este é apenas um exemplo de uma personagem que quebra todos os tabus, mostra-se realmente à frente do seu tempo. É bem verdade que Chiquinha viveu um momento histórico completamente diferente do de Georgiana, mas ela sim é uma mulher à frente do seu tempo. <br /><br />O filme tem seus encantos, mas, no frigir dos ovos, não me convence.<br />Talvez se o foco da história fosse a luta de Georgiana perante a corte e sua influência política me convencesse mais. <br /><br />Entretanto, do jeito como foi conceituada, a história mais parece uma maneira de exaltar outra figura da aristocracia inglesa, a princesa Diana, que também sofreu por se casar com um lorde que na verdade só almejava ter herdeiros enquanto desfrutava da alcova alheia.<br /><br /><br />(*) Artigo feito para o curso de pós-graduação de Roteiro para Cinema e TV da Universidade Veiga de Almeida (UVA), para a matéria PERSONAGENS, ministrada pela professora Dayse Marques (2013).Carla Giffonihttp://www.blogger.com/profile/12830433045746106919noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5411023288808529609.post-35167099221765512782013-02-19T04:44:00.002-08:002013-02-19T04:44:21.370-08:00Cornélio <br />
O mendigo, com ar de profeta, gritava sempre que Cornélio passava:<br />
<br />
– O homem nasceu para ser corno!<br />
<br />
Cornélio se segurava para não avançar em cima do profeta, quer dizer, do mendigo, e lhe dar uns golpes de MMA, que aprendeu vendo TV, tal era a sua raiva.<br />
<br />
Esta era sua sina: sempre ser motivo de piada de terceiros. Também, com o nome que lhe deram, seria difícil não ser vítima de chacota e risinhos irônicos. O pai foi o culpado por fazê-lo carregar o nome ingrato: carola de alto grau, seu Zé Maria decidiu o destino do filho ao querer homenagear o centurião Cornélio, o primeiro gentio, ou seja, não judeu, a se converter ao cristianismo.<br />
<br />
É por isso que Cornélio sempre se apresentava como Nélio, mas volta e meia alguém descobria seu nome inteiro e lá vinham a gozação e as piadas infames, sempre repetitivas.<br />
<br />
A vingança de Cornélio era que seu nome poderia até ser detestável, mas a falta de originalidade de alguns era medonha, repetindo sempre a mesma piada sem graça.<br />
<br />
Não sei se por sina ou se foi mesmo praga de alguma madrinha, mas Cornélio era sempre corneado.<br />
<br />
Teve uma vez em que, ao confrontar a traição de uma namorada, ela admitiu mesmo que o corneava e se justificou:<br />
<br />
– Você pega tanto no meu pé, com medo de ser corneado, que acabei te traindo mesmo. Agora tu tem motivo pra ser tão chato.<br />
<br />
Insegurança do jovem mancebo, é claro. Mas, também, com um nome deste, a insegurança virou companheira constante!<br />
<br />
Com isso, de tentativa em tentativa, Cornélio sempre via o momento em que o relacionamento ia pro beleléu. Não importava a plástica da garota, ele era sempre corneado.<br />
<br />
No início, Cornélio, como todo bom homem, buscava a aparência e, apesar de não ser nenhum galã de novela das oito, quer dizer, das nove, conseguia conquistar lindas garotas, que logo despertavam a cobiça dos outros também. Daí para a traição era um pulo.<br />
<br />
Depois, vendo que garotas lindas davam muito trabalho, resolveu apostar a conquista nas jovens que fossem ‘bunitinhas’.<br />
<br />
Sim, aquelas que a gente sempre diz que são ‘bunitinhas’, ou seja, mais simpáticas do que propriamente lindas.<br />
Deu certo.<br />
Mas só no início.<br />
Sempre aparecia alguém, e o namoro se transformava num triângulo amoroso, enfeitando mais uma vez a testa de Cornélio.<br />
<br />
Enfezado com toda aquela situação, Cornélio decidiu ser mais radical: só pegaria tribufu. Nada de lindas ou ‘bunitinhas’; seu negócio passou a ser namorar mulher feia mesmo.<br />
<br />
Cornélio foi fundo, tamanha era a sua raiva da vida e dos chifres que teimavam em lhe nascer na testa. Com isso, ele fez a alegria de qualquer mulher carente que encontrasse. Não importava a idade, não importava a condição social, se era bonita ou feia, gorda ou magra: sendo mulher, Cornélio se atirava de corpo e alma.<br />
<br />
Coitado. Parecia que bastava Cornélio conquistar qualquer tipo de mulher, para que os machos em volta passassem a se interessar pela donzela em questão.<br />
<br />
O resultado disso foi o enorme baque em seu coração e também, por que não dizer?, em sua autoestima.<br />
<br />
Cornélio passou a ter dificuldades para dormir, começou a ter pesadelos e, mesmo não namorando ninguém, via-se sendo traído até nos momentos em que buscava os braços de Morfeu. O pobre coitado começou a colecionar grandes e profundas olheiras, emagreceu e já não conseguia sair do quarto, tal era o seu nível de depressão.<br />
<br />
Depressão brava.<br />
Bravíssima.<br />
Bravérrima.<br />
<br />
Até que um dia, no meio de tantos pesadelos, o mendigo profeta lhe apareceu nos sonhos, quer dizer, nos pesadelos, e lhe falou a tão conhecida frase:<br />
<br />
– O homem nasceu para ser corno!<br />
<br />
E com o olhar rútilo completou, dando de ombros:<br />
<br />
– Se a vida lhe deu um limão, faça uma limonada! – disse, com um sorriso meio irônico, meio pedindo desculpas.<br />
<br />
Foi a salvação de Cornélio. Ele se levantou da cama naquele dia com um vigor nunca dantes sentido. Uma mistura de esperança e fé a lhe envolver o coração, e tomou a decisão mais sábia de sua vida: fundou a Associação dos Cornos e Amigos dos Cornos (ACAC).<br />
<br />
E logo tratou meio de fazer os três mandamentos básicos que deveriam nortear todo aquele que se filiasse à Associação dos Cornos e Amigos dos Cornos.<br />
<br />
Fez apenas três mandamentos, porque este negócio de dez é para as Escrituras Sagradas.<br />
<br />
Sentou-se à mesa, possuído por uma força poderosa, vinda de sua dor ‘cornística’, e escreveu:<br />
<br />
1º - Nunca chegue em casa antes da hora em que você está acostumado a chegar;<br />
2º - Se o Ricardão for valente, de uma de “celular”, ou seja, fique “fora da área”;<br />
3º - Nunca fale do chifre alheio, o próximo pode ser o seu.<br />
<br />
No início, Cornélio sentiu muita dificuldade de conseguir associados, porque ele só admitia homens para sócios:<br />
<br />
- O peso de uma traição é diferente entre os gêneros - alegava, convicto.<br />
<br />
Dá para entender tanta resistência entre os machos: uma ideia revolucionária sempre causa estranheza mesmo. Afinal, é extremamente difícil admitir-se corno, principalmente numa cultura machista. Por isso, ele decretou que – diferentemente de outros tipos de associações – o filiado à ACAC não pagaria nenhuma mensalidade. O fato de assumir os “galhos” já o isentava de taxa.<br />
<br />
Cornélio estipulou, ainda, que o associado recebesse uma carteirinha que lhe dava o direito de participar de bailes e eventos. A Associação dos Cornos e dos Amigos dos Cornos passou a organizar o famoso Baile dos Chifrudos e firmou “convênio” com bares para dar descontos de até 30% aos traídos, para que eles pudessem chorar suas mágoas.<br />
<br />
Nos casos mais graves, o associado ainda receberia, caso quisesse, assistência psicológica. Ele próprio abriu uma loja virtual, com diferentes artigos: camisetas, canetas; canecas; chapéus; capas para micros, protetores de tela, celular, iPhone.<br />
<br />
Todos os artigos sempre com o seguinte ditado italiano:<br />
<br />
“Se cada corno carregasse um lampião, que iluminação!”.<br />
<br />
Apesar da demora, o sucesso veio de forma avassaladora. A Associação dos Cornos abriu franquias em todo o Brasil e começou a exportar a ideia para o restante da América Latina, Europa e Estados Unidos da América.<br />
<br />
Cornélio virou empresário de sucesso e escreveu livros de autoajuda para os cornos deprimidos. Hoje seus livros sempre ocupam os primeiros lugares na lista dos mais vendidos no mundo; além disso, lançou resort-spa, para os cornos descansarem depois da descoberta da traição; dá palestras motivacionais pelo Brasil (tem agenda lotada!) e recentemente foi convidado para ministrar palestras numa importante faculdade americana, na Columbia.<br />
<br />
O convite para a palestra na terra do Tio Sam veio depois de ser capa da Revista The Time, onde foi elogiado por seu empreendedorismo.<br />
<br />
Além disso, há cerca de um mês estreou sua peça sobre as várias formas de ‘cornice’, sendo sucesso de crítica e de público.<br />
<br />
Sua vida está para virar filme dramático dirigido por um grande cineasta brasileiro, de renome internacional - contudo, maiores detalhes estão sendo mantidos em segredo, porque a história deverá ser uma coprodução com Hollywood.<br />
<br />
O sucesso foi sua maior vingança.<br />
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<br /></div>
Carla Giffonihttp://www.blogger.com/profile/12830433045746106919noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5411023288808529609.post-89473703682826239062013-01-05T13:41:00.003-08:002013-01-05T13:41:46.245-08:00O fim do mundoÉ, o mundo não acabou. <br />
<br />
<br />
Tobias, com a cabeça pesada de uma ressaca homérica, levanta-se no sábado, às 12h12, e tudo está igual ao dia de ontem. A torneira da pia da cozinha pingando ininterruptamente, a gritaria das crianças brincando na piscina do condomínio na maior arruaça, o filho metaleiro do 903 ensaiando em carga total, e ele mora no mesmo apartamento bagunçado de todos os dias. Quer dizer, não todos os dias, porque dona Matilde faz a faxina duas vezes na semana.<br />
<br />
Ele acreditou que realmente o mundo acabaria na sexta-feira, dia 21.<br />
<br />
O dia 21 veio.<br />
<br />
O dia 21 ficou.<br />
<br />
O dia 21 passou. <br />
<br />
E agora o calendário marca o dia 22 de dezembro de 2012, e nadica das coisas ruins previstas aconteceu.<br />
<br />
Quer dizer, tudo de ruim aconteceu, mas foi para Tobias: em primeiro lugar, depois de tomar alguns copos de uma batida chamada “pau na coxa”, ele deu um beliscão na bunda e lascou um beijo, de língua, no estilo desentupidor de pia, na secretária gostosa do chefe.<br />
<br />
Não teria mal nenhum, se a criatura fosse desimpedida, mas corre à boca pequena que ela é teúda e manteúda do chefe, e quem se mete no terreiro alheio, principalmente quando o alheio é o chefe, é como se plantasse vento para colher tempestade.<br />
<br />
“Maldita hora em que fui à festa de confraternização da firma”, pensa Tobias ao se olhar no espelho do banheiro e constatar uma gravata florida amarrada em sua cabeça, intensificando a dor que sente no crânio. <br />
<br />
Tobias não pode garantir de quem é aquela gravata horrorosa. Ele jura de pés juntos que dele não é. Mas a infeliz está lá, e se ele chegou em casa e – o pior de tudo – dormiu com o bendito acessório masculino na cabeça é porque as coisas foram muito mais piores de ruins do que ele pensava.<br />
<br />
“Ô, vida!!”, queixa-se.<br />
<br />
Ao tentar utilizar o vaso sanitário, não pode: ele estava todo enxovalhado. Tobias supõe que, ao chegar em casa, tenha chamado o Raul, já que o entorno do vaso está todo emporcalhado. Uma nojeira só.<br />
<br />
Quando está saindo do banheiro, buscando o outro, o da empregada, Tobias passa pela sala e lá encontra uma mulher esparramada no seu sofá. Ele chega perto e sacode a criatura, mas a garota aparenta ter morrido, de tão profundo que é o seu sono. A única coisa que mostra que ainda vive é o seu ronco, ainda mais potente do que a bateria do filho metaleiro do 903. <br />
<br />
Tobias chega mais perto, para ver se reconhece a criatura, e constata, para seu espanto, que é a estagiária míope, que usa aparelho nos dentes e que tem pernas finas. Ela trabalha no setor de contabilidade, e todos a chamam de senhorita chata e certinha.<br />
<br />
A senhorita chata e certinha não acorda nem por reza brava, por mais que o dono do apartamento a chame.<br />
<br />
Ele insiste.<br />
<br />
Insiste.<br />
<br />
Insiste.<br />
<br />
Insiste.<br />
<br />
Desiste.<br />
<br />
Nada vai acordar a criatura mesmo, nem uma chuva de meteoritos em chama, sequer o alinhamento de todos os planetas do sistema solar, ainda que isso tudo acontecesse ao mesmo tempo. A criatura ronca feio, e uma baba gosmenta escorre pelo canto da sua boca aberta.<br />
<br />
“Como é que pode caber tanto ronco numa criatura tão franzina?” – questiona-se, enquanto caminha de volta para o banheiro.<br />
<br />
Um banho deve melhorar o seu astral, porque o mundo não acabou, mas o hall de entrada do inferno Tobias deve ter subido, porque um calor descomunal impera; é como se o Tinhoso tivesse saído das profundezas e vindo morar na Cidade Maravilhosa. Tobias já não aguenta mais.<br />
<br />
“Aqui só temos duas estações: a do verão e a do inferno”, sentencia, fazendo-se de vítima.<br />
<br />
A água fria caindo no seu corpo é uma bênção, e ele quase sorri feliz. Não concretiza o sorriso porque a campainha da porta berra insistentemente, como se alguém quisesse tirar a família inteira da forca. Com tanto barulho, a dor de cabeça, que parecia querer ir embora, volta com carga total. Tobias, atrapalhado, sai do chuveiro com pressa de atender logo à porta, mas escorrega no tapetinho do banheiro, bate com a cintura no bidê e cai de bunda no chão.<br />
<br />
“Já falei pra dona Matilde tirar este tapetinho horroroso daqui, mas ela acha que o apartamento é dela, e não meu. Que merda!”, reclama, xingando até a décima descendência da diarista.<br />
<br />
A senhorita chata e certinha continua esparramada no sofá, sem se mexer um milímetro sequer. Tobias se atrapalha na hora de abrir a porta, porque o barulho infernal da campainha continua arrebentando seus tímpanos. Quando consegue destrancar a porta, abre-a de supetão e encontra ali parado em sua frente o ex-cunhado, Pedrão, junto com a mulher, o encapetado do Júnior e um carrinho contendo dois bebês gêmeos, de um ano.<br />
<br />
– Cunhado! – grita, feliz, Pedrão, enquanto lhe puxa o corpo para dar-lhe um abraço de urso. O ex-cunhado e a família logo entram, sem ser convidados, rindo e fazendo mais barulho. Atordoado, Tobias não consegue falar nada, enquanto Pedrão não consegue deixar de falar.<br />
<br />
– Eu, a patroa e as crianças decidimos vir passar o Natal e o Ano Novo com você. Afinal, o seu casamento com minha irmã acabou, mas você é meu brother e não vou deixar você passar essas datas festivas sozinho, não. Saímos lá de Botucatu para vir lhe fazer companhia, e nem precisa agradecer! – garante o ex-cunhado, já colocando as malas e as cuias na sala de Tobias.<br />
<br />
O planeta pode não ter acabado, mas o mundo de Tobias acabou desde ontem.<br />
<br />
Carla Giffonihttp://www.blogger.com/profile/12830433045746106919noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5411023288808529609.post-73927970566893351752013-01-01T12:04:00.002-08:002013-01-01T12:04:17.479-08:00ArrudaArruda é um ateu convicto. Daqueles que batem no peito e gritam para quem quiser ouvir, em alto e bom som:<br />
<br />
<br />
– Este negócio de Deus não existe. É tudo besteira pra boi dormir! – diz, impávido colosso.<br />
<br />
Contudo, Arruda não é um ateu comum. Ele tem algumas características inusitadas para quem bate no peito declarando-se ateu: Arruda é supersticioso. Sim, um supersticioso de carteirinha, com numeração superbaixa. Acredite se quiser.<br />
<br />
Um primo meu – metido a intelectual – diz que quem é supersticioso é porque acredita que os objetos inanimados possam ter espíritos. Ora, como alguém que diz não acreditar em Deus e em coisas espirituais pode ter superstição, não é mesmo? Pois digo e repito, juro se for preciso: Arruda é supersticioso.<br />
<br />
Passar debaixo de escada? <br />
<br />
Nem pensar!<br />
<br />
Dá gosto vê-lo correr como um corisco quando vê um gato preto!<br />
<br />
Seu apartamento de quarto e sala no Centro da Cidade é todo decorado com enfeites de estátuas de elefantes, sempre posicionados com a tromba erguida e as costas voltadas para a porta da entrada. <br />
<br />
Tudo isso tem um objetivo: evitar a falta de dinheiro. É bem verdade que ele vive pedindo dindim emprestado aos mais chegados, mas eu não estou aqui para falar mal de amigo.<br />
<br />
E quando sua palma da mão começa a coçar?! <br />
<br />
Nossa! Ele fica mais alegre do que pinto no lixo, porque tem a certeza de que ganhará dinheiro inesperadamente! Nunca ganhou, mas sempre acreditou.<br />
<br />
Uma vez fomos almoçar e ele deixou cair um pouco de sal sobre a mesa. Você nem imagina sua cara de desespero. Imediatamente, Arruda começou a jogar o sal derramado pelos dois ombros. Como ele não lembrava se devia jogar pelo ombro esquerdo ou direito, jogou pelos dois, por via das dúvidas.<br />
<br />
Quando perguntei o porquê do desespero, Arruda me contou que traz azar deixar o sal cair na mesa e que a pessoa que o derrubou deve jogar um pouco do tempero em um dos lados do ombro. O objetivo é espantar o diabo, que sempre fica à espreita, esperando pacientemente que o homem peque. Uma das jogadas do sal acertaria certamente o olho do Tinhoso, impedindo que o cramulhão viesse buscar sua alma pecadora.<br />
<br />
Tenho que confessar que não entendi a lógica supersticiosa de Arruda, mas lógica e superstição são dois conceitos que não combinam, e não estou aqui para entender a mente humana, principalmente a mente humana de alguém como Arruda.<br />
<br />
Agora, tenho que confessar: estou preocupado com o meu amigo. Afinal, o ano de 2013 está começando e, sinceramente, não sei como será a vida para Arruda. Veja você: o ano tem final 13, o calendário marca duas sextas-feiras 13 e, ainda por cima, tem o complicado mês de março, que tem os dias 3/3/2013 e 13/3/2013. São muitos números juntos numa cabeça tão supersticiosa.<br />
<br />
No Natal, comprei os ingreditens necessários e montei dois kits de sorte. Na caixinha que dei de presente para Arruda, havia 13 objetos que, dizem os entendidos, dão sorte para quem os tem: <br />
<br />
um pé de coelho, <br />
<br />
um trevo de quatro folhas, <br />
<br />
um quilo de sal grosso, <br />
<br />
uma ferradura, <br />
<br />
uma figa, <br />
<br />
um olho de Hórus, <br />
<br />
uma estrela de Davi, <br />
<br />
13 fitinhas do Senhor do Bonfim devidamente benzidas, <br />
<br />
um chaveiro de pimentas, <br />
<br />
um pentagrama, <br />
<br />
um olho de boi, <br />
<br />
um patuá e <br />
<br />
uma pedra de jade. <br />
<br />
Arruda ficou emocionado com o presente e chorou cântaros de alegria com o que lhe dei.<br />
<br />
Ah? Você quer saber o que fiz com o outro kit de boa sorte?<br />
<br />
Bem, eu fiquei para mim. <br />
<br />
Sabe como é, yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay.<br />
<br />
Carla Giffonihttp://www.blogger.com/profile/12830433045746106919noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5411023288808529609.post-63762371136610545012012-10-03T10:26:00.001-07:002012-10-03T10:26:47.856-07:00Tuninho Hilário Nunca houve na história deste país figura mais engraçada do que Tuninho Hilário. Ele era tão engraçado, que bastava dizer 'bom dia' para que todos caíssem na gargalhada, como tivesse falado a mais nova pérola piadista.<br />
<br />
<br />
Tuninho tinha este dom natural e, diferente do que se possa pensar, não era feliz por fazer os outros felizes.<br />
<br />
Na verdade, Tuninho Hilário trazia em si uma grande tristeza a lhe moer a alma.<br />
<br />
Não que sua vida fosse terrível. Não. Ele não sofria de nenhum mal irremediável, não havia nenhuma doença na família, tampouco tinha grandes dificuldades financeiras. Não estou dizendo que ele nadasse em dinheiro, não é isso, mas ele passava seus pequenos apertos, como 95% do povo brasileiro.<br />
<br />
Não podemos dizer também que fosse feio. Bonito não era, é bem verdade, mas feio… feio mesmo, daqueles de doer, não era, não, senhor. Façamos-lhe justiça.<br />
<br />
Mas, apesar de tudo, não era feliz, e o que lhe causava ainda mais depressão era que tudo o que dizia ninguém levava a sério. Todos pensavam, todos mesmo!, que o que dizia era brincadeira e, muitas vezes, o que ele queria era apenas um ouvido amigo que pudesse lhe escutar, sem risada, sem julgamento.<br />
<br />
Resultado: foi acumulando alegrias, prazeres, mágoas, ressentimentos, raiva e outros sentimentos, bons e maus, ao longo dos anos, sem poder compartilhar com ninguém.<br />
<br />
Este dom de fazer os outros rirem começou muito cedo. Desde o berço, os pais, avós e amigos da família, quando ouviam o pequeno Tuninho chorar, caíam na gargalhada. O dom que o Céu lhe deu se transformou numa maldição grega, daquelas com que os deuses desagraciam os pobres mortais.<br />
<br />
E quando numa conversa ele soltava alguma frase que os outros achavam serem pérolas, de tão engraçadas, e todos caíam na gargalhada, ele ficava aflito e dizia:<br />
<br />
– Não, eu não tô brincado, não! Juro!<br />
<br />
O riso dobrava, e tinha gente que perdia o ar, outros faziam xixi nas calças, de tanto rir.<br />
<br />
Com isso, a tristeza só aumentava, aumentava, aumentava. Uma vez, vendo um programa de TV destes que passam de tarde (porque ele já nem saía do quarto), Tuninho teve a ideia de procurar ajuda profissional, porque, afinal, profissional que é profissional mesmo não vai cair na gargalhada, não é mesmo?<br />
<br />
Ledo engano.<br />
<br />
Tuninho procurou na lista telefônica um terapeuta perto de sua casa. Foi de pijama mesmo, tendo uma capa de chuva por cima.<br />
<br />
Quando chegou ao local, na hora em que o terapeuta abriu a porta, deu uma boa olhada na sua figura e ouviu Tuninho dizer 'boa tarde', o homem (que já era um senhor de idade, com alvos cabelos brancos) caiu na gargalhada.<br />
<br />
Tuninho nem entrou, deu meia volta, retornou para casa e foi direto para a cama. Mas a dor era tão intensa, que ele decidiu tentar novamente. <br />
<br />
Agora resolveu procurar um profissional de alta estirpe, não estes de lista telefônica, não, senhor. O bambambã tinha consultório na Delfim Moreira – com vista cinematográfica - de frente para o mar, e o valor da consulta equivalia a três meses de seu salário, mas Tuninho estava tão desesperado, que fez um empréstimo no banco e foi – cheio de esperança – ao consultório da celebridade terapêutica.<br />
<br />
O médico, um jovem com cabelos arrepiados, roupa descolada e óculos de intelectual de boutique, recebeu-o todo compenetrado, sem sorriso, sem gentilezas, com o nariz levemente arrebitado, e muito ciente de sua qualificação profissional.<br />
<br />
Um fio de esperança começou a nascer em Tuninho na mesma hora. Ele se animou, porque o terapeuta não riu neste primeiro momento e se mostrou antipaticamente sério. Mas como Tuninho não estava ali para fazer amigos e, sim, para resolver o seu problema e conseguir colocar suas aflições para fora, tendo um ouvido amigo que pudesse escutá-lo, não se importou. Profissionalismo era o que buscava e pagava além de suas posses para isso.<br />
<br />
A primeira pergunta que o terapeuta fez foi sobre sua mãe. As mães sempre são culpadas por tudo, não é mesmo? Pois é. Apesar de aparentar ser todo ‘modernoso’, o terapeuta tocou no ponto clássico: encontrar uma desculpa para xingar a genitora de qualquer um.<br />
<br />
Tuninho não se importou. Ele tinha um bom e amoroso relacionamento com a mãe, assim como com a família inteira. Não era este o problema. <br />
<br />
O problema é que ninguém o levava a sério; ninguém o escutava, inclusive a mãe, o pai e todos do clã. Mas Tuninho estava disposto até a inventar algumas calúnias contra a genitora, caso fosse necessário, mesmo se fosse apenas para que alguém o escutasse e não começasse a rir da história de suas aflições.<br />
<br />
Na primeira frase que falou, Tuninho olhou para o terapeuta, e este se mostrava com a dignidade que convém ao cargo que ocupava. Com a mão segurando o queixo, olhos atentos, o nariz ligeiramente arrebitado franzido, demonstrando grande concentração no que escutava. <br />
<br />
Tuninho se animou, porque pela primeira vez em toda sua vida ele dizia uma frase e ninguém ria.<br />
<br />
Cheio de esperança, Tuninho disse a segunda frase e notou que o nariz arrebitado do terapeuta franziu mais um pouco e que sua boca teve um leve franzido também, como se buscasse conter algum som que a garganta quisesse expressar.<br />
<br />
Desconfiado, Tuninho continuou xingando a mãe e rezando para que aquela careta que ele via na cara do terapeuta, não fosse um prenúncio de gargalhada.<br />
<br />
Tuninho falou a terceira frase, e a boca e o nariz ficavam mais e mais franzidos, como se o terapeuta estivesse buscando conter uma grande, imensa explosão.<br />
<br />
Na quarta frase, o descolado profissional não aguentou e soltou uma gargalhada que – valha-me Deus! – foi ouvida por todo o Leblon, quiçá, por toda a Zona Sul do Rio de Janeiro!<br />
<br />
Não adiantou xingar a mãe. O terapeuta perdeu toda a fleuma e se curvou de tanto rir; parecia uma criança se deliciando com um palhaço no picadeiro.<br />
<br />
Uma decepção.<br />
Uma não. Mais uma!<br />
Foi a última vez que Tuninho procurou ajuda profissional.<br />
<br />
“Sou um caso perdido, não tenho jeito, não”, disse a si mesmo e, ao se ouvir, teve vontade de rir, mas se conteve. <br />
Seria desmoralização demais para uma só pessoa.<br />
<br />
Carla Giffonihttp://www.blogger.com/profile/12830433045746106919noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5411023288808529609.post-41897382942175454702012-07-04T15:48:00.000-07:002012-07-04T15:48:00.906-07:00AdãoAnunciava a todos os que quisessem ouvir e também àqueles que não queriam escutar:<br />
<br />
<br />
– Minha mulher, sim! Isso é que é mulher!<br />
<br />
Casado há quinze anos com Maria de Lourdes, Adão tinha certeza absoluta da fidelidade da mulher, mãe amantíssima de primeira qualidade, escolhida a dedo. A última da espécie.<br />
<br />
Para ele, este negócio de emancipação feminina, queima de sutiã em praça pública, pílula anticoncepcional e todo este blá-blá-blá não passava de balela para boi dormir. Era ele que mandava na casa e pronto, e trazia a mulher, ali, no cabresto.<br />
<br />
– Comigo, não! Homem nenhum me passa para trás! Ricardão lá em casa não se fia, não, senhor! – garantia o arrogante marido.<br />
<br />
Adão demorou para encontrar a mulher ideal. Nascido na Cidade Maravilhosa, namorou muito e iludiu muita menina, mas ele sabia que não acharia a esposa, a que seria a mãe de seus filhos, onde ele vivia. <br />
<br />
Na verdade, Adão tinha a certeza de que só no interior do interior é que encontraria a mulher ideal, porque ele não era homem de sustentar periguete, não, senhor. <br />
<br />
E foi assim que ele encontrou Maria de Lourdes, numa cidade aonde essas ‘mudernidades’ do século XXI não haviam chegado. Num lugar tão longe, que Judas tinha perdido as meias, porque as botas havia deixado dez léguas antes.<br />
<br />
Maria de Lourdes era a personificação da mulher que ele sempre idealizou. Muito nova, recatada, virgem, do lar e temente a Deus de todo o coração. <br />
<br />
No final, a família se encantou com a possibilidade de o clã ter um parente na cidade mais maravilhosa do mundo e acabou insistindo que a filha desse o sim ao mancebo carioca. <br />
<br />
Maria de Lourdes, vexada com tanta atenção, ainda demorou a aceitar a corte, mas no final acabou subindo ao altar de véu, grinalda e flores de laranjeiras, conforme manda o figurino.<br />
<br />
Adão estava realmente certo: moça como Maria de Lourdes, se existia, eram poucas. Sua meiguice e mansidão só se encontram em livros água com açúcar do século XIX.<br />
<br />
O casamento foi uma festança de fazer gosto. Adão não se fez de rogado e pagou três garrotes de uns quatro anos cada. A festa durou um final de semana inteiro e por pouco não vai segunda-feira adentro.<br />
<br />
A noiva chorou muito ao se despedir da família e da amiga de infância, quase irmã, chamada Gracinha. A amizade vinha de longa data, e uma vivia agarrada à outra. Mas acabou se conformando e seguindo com o, agora, marido para a cidade grande.<br />
<br />
Adão sabia que voltar para a Cidade Maravilhosa era correr um certo risco, porque, sabe como é… cidade grande há muita tentação. Por isso ele era muito vigilante e não dava espaço para a esposa arrumar um amante e trocá-lo.<br />
<br />
– Demorei muito para encontrar Maria de Lourdes e confio nela, mas não dou oportunidade, não. Sabe como é: a ocasião faz o ladrão, como já dizia meu velho pai. E eu é que não vou ficar aqui dando boa vida para Ricardão nenhum! – dizia, gabando-se da vigilância cerrada que fazia com a esposa.<br />
<br />
Não demorou muito, o primeiro rebento chegou. Ainda na lua de mel, Maria de Lourdes emprenhou e nove meses depois nascia um lindo garotinho de olhos azuis, puxando a família materna, que era dada a ter olhos claros, segundo afirmou a esposa de Adão.<br />
<br />
– Macho como deve ser, levando o nome da família e perpetuando a espécie! – dizia o pai, distribuindo charutos para comemorar o nascimento do primeiro filho.<br />
<br />
Adão era assim mesmo, macho até a última mitocôndria celular. Não admitia ninguém ciscando no seu terreiro; não acreditava nas modernidades e avanços da espécie humana e dizia que macho era superior à fêmea.<br />
<br />
Por estes destinos da vida, Adão teve cinco filhos, e todos homens.<br />
<br />
– Que vocês cuidem de suas cabritas, porque estou criando um time de bodes! – falava, rindo das próprias palavras.<br />
<br />
Enquanto isso, Maria de Lourdes levava a vida de dona de casa e mãe amantíssima, não tinha grandes ambições. <br />
<br />
No início do casamento teve dificuldade de se adaptar à agitação da cidade grande e aprender a cuidar de uma criança. Caçula de uma grande família, não tinha experiência em limpar umbigo e dar banho no pequeno rebento. <br />
<br />
A solução encontrada foi chamar a grande amiga, Gracinha, que se prontificou imediatamente a ajudar a companheira de infância, mudando-se para a casa de Adão. Gracinha também vinha de uma grande prole, a diferença é que foi a primeira, e todos os irmãos que vieram depois ela ajudou a criar.<br />
<br />
E assim, a vida seguia em céu de brigadeiro. Adão a cada dois anos embuchava a esposa, que continuava naquela mansidão e recato, sempre contando com a ajuda da amiga de infância, que passou a morar definitivamente com o casal.<br />
<br />
Adão ficou feliz com a chegada de Gracinha, porque assim poderia dar suas escapulidas, não alterando em quase nada sua vida, mesmo sendo pai de família. Como ninguém é de ferro, Adão volta e meia pulava a cerca. Nunca teve um caso sério ou que durasse mais de três encontros. Afinal, ele não precisava de mulher, tinha uma em casa, escolhida a dedo. As outras, bem, eram outras, conforme ele mesmo dizia para os amigos nas rodas de bar.<br />
<br />
Foi assim até o dia em que ele, que não era dado a essas coisas de modernidade, decidiu seguir o conselho de um amigo e procurou na internet um vídeo destinado ao público adulto.<br />
<br />
Vamos no popular: Adão queria mesmo era ver filme com muita sacanagem, sem precisar pagar aluguel de locadora e também sem correr o risco de ser flagrado pela esposa ou por Gracinha vendo este tipo de película. Ao alugar a fita de alguma locadora, sempre corria o risco de ser descoberto, ainda mais tendo filho-homem, com os hormônios em ebulição. Então, ver pela internet lhe pareceu uma saída mais confortável, e foi isso o que Adão fez, sempre tomando o cuido com os horários, acessando em momentos em que a casa estivesse mais vazia.<br />
<br />
Numa tarde de abril Adão acessou uma dessas páginas e encontrou um filminho bem dos sacanas. O filme começava com duas mulheres no ‘rala e rola’. Quando começou a ver o espetáculo, algo passou a incomodar o marido de Maria de Lourdes. Ele não soube identificar imediatamente o que lhe causava o incômodo, mas de repente se deu conta:<br />
<br />
– Mas esta que está aí pelada é minha mulher, Maria de Lourdes! – exclamou, levantando-se de supetão da cadeira.<br />
<br />
E era mesmo. Sua mulher, mãe amantíssima, estava lá, em poses indecentes, com outra mulher. O pior ainda: a outra mulher era Gracinha. Sim, a grande amiga de infância estava ali, em rede mundial, fazendo as estripulias que os filmes de sacanagem mostram.<br />
<br />
Adão não acreditou. Tentou se convencer de que aquela ali era alguém muito parecida com a sua mulher, que não era Maria de Lourdes, a noiva que ele escolheu a dedo, que buscou a vida inteira para colocar a aliança e que lhe gerou cinco filhos-homens!<br />
<br />
Mas era ela mesma, sim. Maria de Lourdes poderia até ter uma sósia, mas seria muita coincidência atuar num mesmo filme uma sósia de Maria de Lourdes e outra de Gracinha. Não, isso não era capaz de haver, seria muita coincidência para um corno só.<br />
<br />
Quando a mulher chegou com Gracinha da rua, Adão foi logo lhe querendo tomar satisfação. Quando mostrou o vídeo às duas, Gracinha ainda teve o desplante de querer negar, soltando a clássica frase:<br />
<br />
– Não é nada disso que você está pensando!<br />
<br />
Durante todo o tempo, Maria de Lourdes ficou quieta, enquanto Gracinha tentava convencer o marido da amiga de que aquilo que ele via não era na verdade aquilo que ele via.<br />
<br />
O silêncio da mãe amantíssima durou quase sete minutos, mas de repente Maria de Lourdes deu um grito e bateu a mão na mesa, confessando tudo:<br />
<br />
– É verdade! Tu é um corno mesmo! Me vigiou a vida inteira com medo de ser corno, num foi? Cagava de medo que algum Ricardão aparecesse no seu terreiro? Pois bem, não foi Ricardão, foi Ricardona!!! É de mulher que eu gosto e sempre gostei! Eu e Gracinha sempre fomos um casal, e só você não via isso, não via porque não queria ver! Corno! Tu é um corno mesmo!!! C-o-r-n-o!!!!!! – gritava a mãe amantíssima de cinco filhos enquanto avançava agredindo o marido.<br />
<br />
Xiiiiiii… aí foi aquela confusão, nem te conto!<br />
<br />
Adão gritava, querendo matar, procurando faca de cozinha; as duas mulheres em cima dele, tirando sangue com as unhas e mordidas; os vizinhos logo vindo separar a briga; os “deixa disso” logo aparecendo para jogar água fria na quentura… um fuzuê daqueles de arrancar rabo, precisava ver.<br />
<br />
Para você ter uma ideia, teve até que chamar a patrulhinha, e foi todo mundo parar na delegacia ter que explicar tudo ao delegado de plantão. Um vexame, nem lhe conto!<br />
<br />
Os meninos foram levados para a casa de vizinhos e primos distantes; Adão, depois que saiu da delegacia, não sem antes ter passado o vexame de contar e registrar tudo, sendo declarado corno oficialmente, ficou na casa de um colega de trabalho, um conjugado no Catete; já as duas messalinas, conforme ele dizia, ficaram no apartamento.<br />
<br />
Mas é como já disse um filósofo popular cujo nome nunca sou capaz de lembrar: o tempo, ah o tempo!, cura qualquer dor, principalmente as de corno.<br />
<br />
Depois que a poeira baixou, Maria de Lourdes, Adão e Gracinha sentaram para conversar e decidir o que fariam da vida, porque, afinal de contas, ainda tinham os cinco filhos, que precisavam de amparo e proteção.<br />
<br />
Bem, ao menos foi esta a desculpa que Adão deu para todo mundo quando foi ao encontro do casal. Essa foi a justificativa, mas, cá entre nós, o que ele estava mesmo querendo era apaziguar o pobre coração. Sim, porque, apesar de toda a macheza, apesar de gostar de cantar de galo, Adão tinha os quatro pneus arriados pela mulher. <br />
<br />
Sempre foi apaixonado por ela, mas nunca confessou nem a si mesmo o grande amor que abrigava em seu coração. Desde o início. Foi amor à primeira vista, sim, senhor, o que ele sentiu quando botou os olhos em Maria de Lourdes!<br />
<br />
O resultado disso tudo: os meninos voltaram para casa; Maria de Lourdes e Gracinha continuaram juntas (como sempre) e Adão se conformou em fazer parte de um triângulo amoroso. Ele voltou para o santo lar, e todos vivem na paz e na concórdia.<br />
<br />
Hoje Adão é, inclusive, um bem sucedido empresário de uma produtora de filmes para adultos.<br />
<br />Carla Giffonihttp://www.blogger.com/profile/12830433045746106919noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5411023288808529609.post-4461981322676949802012-06-11T20:38:00.000-07:002012-06-11T20:38:28.767-07:00Guarda-chuvaSou um guarda-chuva preto e austero. <br />
Estou esquecido num canto qualquer e, como o dia está ensolarado, ninguém se importa com minha presença.<br />
<br />
Admito que minha austeridade e dignidade também não ajudam. Se ainda fosse uma alegre sombrinha colorida, talvez com bolinhas ou flores, vá lá! Mas não sou. Há quem diga que sou um guarda-chuva preto e feio, com uma dignidade de mordomo inglês, tão inapropriada em terras tropicais.<br />
<br />
Esta é a história de uma vida inteira: ninguém se dignifica a me olhar.<br />
<br />
Jogado, espero um momento certo para aparecer em cena, mas a meteorologia já sentenciou que a frente é de calor, e a chuva não surgirá tão cedo no céu de brigadeiro. É assim que vivo: de frente – ora frente fria, ora frente de calor, mas sempre, sempre de frente. <br />
<br />
Fazer o quê, não é mesmo?<br />
<br />
Sigamos em frente. <br />
<br />
Acabei esquecido e ninguém me nota a presença. Já disse isso, não? Pois é, estou me repetindo. Eu sempre me repito. Teve até aquela vez…<br />
<br />
Desculpe.<br />
<br />
É dura a vida de um guarda-chuva. Ninguém nunca escreveu – pelo menos eu nada soube até então – as memórias de qualquer guarda-chuva, ainda menos um tão austero e formal como a minha pessoa. <br />
<br />
Mas posso estar equivocado. Alguém pode ter escrito alguma coisa, existir algum livro, e eu, que não sou leitor profissional, posso não ter tomado conhecimento. <br />
<br />
Deve haver alguém que escreveu, mas, torno a repetir: desconheço. Eu conheço as memórias de um fusca, de um cabo de vassouras, de uma gueixa, de um sargento de milícias… mas de um guarda-chuva? Ah, não conheço, não. <br />
<br />
Deve ser porque, afinal de contas, nós, os guarda-chuvas, não devemos mesmo guardar grandes segredos, nem temos espaço para guardar grandes memórias… Ficamos lá, paradões, esperando o momento certo para aparecer como coadjuvante. Uma lástima mesmo. As pessoas só sentem falta de um quando a água desaba. Aí todos procuram algum da minha espécie para a sua própria proteção.<br />
<br />
A sombrinha não. Ela é alegre, versátil e tem o glamour próprio de uma senhorita feliz. É colorida e, em algumas culturas, nem precisa de chuva para ser aberta, basta alguém querer dançar.<br />
<br />
Lembra-se do pessoal de Recife com o seu frevo?<br />
<br />
Você conhece alguém que fez música para algum guarda-chuva? Repito mais uma vez: a minha pessoa desconhece. Nunca ouvi nenhuma música onde o guarda-chuva fosse acessório de alegria. <br />
<br />
Pode até haver alguma música em inglês, mas como só sei falar “I love you”, não tenho como garantir com certeza. Também pode ter algum compositor tupiniquim que tenha cantado em versos a beleza de um guarda-chuva, mas se existe, nunca ouvi.<br />
<br />
Por tudo isso digo e repito: Uma injustiça é o que fizeram comigo e com os meus companheiros de jornada, isso sim! <br />
<br />
Esta falta de prestígio deve ser porque atendemos, basicamente, ao público masculino. Sim, porque eu me lembro de que na fábrica onde nasci foi contada de geração em geração a história de nossa origem. Venho de uma família de alta estirpe. Já na Mesopotâmia meus tatatatatatatatatataravós protegiam a realeza do sol escaldante. <br />
<br />
Sim, porque naquela área é muito difícil chover mesmo.<br />
<br />
Continuando a aula de história ‘guardachuvesca’: depois, no Egito, subimos um pouco de posto hierárquico e adquirimos status de acessório religioso. Mas nossa desgraça mesmo foi na Grécia: transformaram-nos em acessório feminino e, sabe como é mulher, né? Logo quiseram colocar uns lacinhos, florzinhas e fru-frus e, voilà!, surgiu a sombrinha; daí o velho e digno guarda-chuva se transformou em sombrinha. <br />
<br />
Dizem que Eva veio da costela de Adão, eu não sei se isso é verdade, mas posso garantir que a sombrinha veio das costelas-hastes de nós, guarda-chuvas.<br />
<br />
Durante séculos e séculos ficamos relegados ao ostracismo, porque macho que era macho não queria usar nada que pusesse em dúvida sua masculinidade – os metrossexuais ainda não haviam dado o ar da graça. Mesmo sendo um acessório importante para a proteção contra intempéries e tendo um visual austero e impecável, fomos marginalizados durante muito tempo.<br />
<br />
Foi só no século XVIII que um comerciante inglês, visando a aumentar o faturamento de sua loja, começou a campanha de que guarda-chuva era chique e masculino. <br />
<br />
Vocês não sabem o que meus tatataravós sofreram com o escárnio dos lordes! Mas aos poucos estes acabaram se rendendo, e fomos aceitos.<br />
<br />
Depois, tivemos nossos momentos de glória, como coadjuvantes, é bem verdade, mas tivemos! Uma quase glória, poderia dizer. <br />
<br />
Meu tio-avô fez ponta em Hollywood, no filme “Cantando na chuva”; era ele lá, parceiro de Gene Kelly. A cena tornou-se lendária, mas ninguém se lembra de que sem as presenças da chuva torrencial e do guarda-chuva não haveria graça nenhuma. A cena não seria imortalizada.<br />
<br />
Um primo meu, de quarto grau, também participou de outros momentos memoráveis, sempre coadjuvante. É a sina dos guarda-chuvas, serem sempre escadas para outros aparecerem. Este primo teve seus minutos de fama como parceiro de Mary Poppins, quando ela descia dos céus para ajudar as crianças da família Banks e, no final, a empregada transformava a vida de cada pessoa da casa.<br />
<br />
Meu avô era par constante do lendário Mazzaropi. Ele apareceu em diversos filmes ao lado do mais famoso Jeca Tatu brasileiro. <br />
<br />
Já eu nunca me atrevi a tentar ponta em nenhuma novela ou filme, muito menos em documentário. Eu não! Não estou aqui para ficar colocando azeitona na empada de ninguém, não senhor.<br />
<br />
Eu rezo sempre para padim Cícero, que é o único santo que conheço, pois sempre carregou um guarda-chuva, para que o final dos meus dias seja tranquilo e que eu não seja vítima de nenhum tipo de preconceito ou bullying. Sim, porque volta e meia ouço algum infeliz dizendo que guarda-chuva aberto dentro de casa traz infortúnios e problemas familiares.<br />
<br />
É brincadeira, não é não?!<br />
<br />
Outros ainda têm a petulância de dizer que deixar o guarda-chuva ou a sombrinha cair em casa é sinal de que vai acontecer um assassinato naquela moradia! <br />
<br />
E o pior é que tem gente que acredita! <br />
<br />
O cara toma uns gorós, bate na mulher, chuta o gato, xinga a sogra, sai por aí distribuindo palavrão e brigando com o Deus e o diabo, e depois, se alguém mete uma bala nos cornos da criatura, nós é que somos culpados?!<br />
<br />
Francamente!<br />
<br />
É como eu digo, vida de guarda-chuva não é fácil, não, senhor. Precisa ser muito macho para vergar estas frágeis hastes, sustentando um pano preto e austero, ser relegado sempre a coadjuvante e, no final, ouvir algum traste dizer que somos geradores de má sorte e assassinato!<br />
<br />
Mas não faz mal, não. <br />
<br />
Nós, os guarda-chuvas, temos como profissão de fé sempre sermos abertos para a vida.<br />
<br />Carla Giffonihttp://www.blogger.com/profile/12830433045746106919noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5411023288808529609.post-56176811166986472332012-05-23T11:26:00.001-07:002012-05-23T11:26:55.248-07:00Caixa de remédiosSou uma caixa de remédios muito <em>fashion</em>. <br />
<br />
Minha dona é uma jovem de trinta anos e ela me comprou justamente porque não sou como essas caixas comuns que carregam pílulas. <br />
<br />
Não! Sou descolada, com um estilo retrô século XXI, com brilho e espelhos. <br />
<br />
Tenho muito orgulho de ser como sou, afinal, minha dona me considera a salvadora de sua vida, porque nos meus compartimentos há remédios para sanar todos os seus males. <br />
<br />
Tem o remédio para o emagrecimento. Ela acha que precisa emagrecer no mínimo cinco quilos. Eu acho que está ótima, mas como minha opinião não vale neste caso, minha dona toma o remédio que vai deixá-la com o corpo perfeito. O problema é que depois ela fica nervosa, mas aí eu entro em ação novamente. e ela ingere um ansiolítico. Depois toma diurético, porque fazer xixi emagrece mesmo, elimina gordura. Ela leu isso numa dessas revistas de mulherzinha. Como eu e ela somos mulherzinhas mesmo, com muito orgulho, ela toma e eu guardo os comprimidos. <br />
<br />
Umas duas vezes na semana ela também engole três cápsulas de laxante, porque nada melhor do que limpar o organismo indo ao banheiro para eliminar todo o chocolate que ela gosta de comer. A culpa é eliminada quando ela aperta a descarga. <br />
<br />
Em um dos meus compartimentos também há as milagrosas pílulas anticelulite, e ela toma umas cinco vezes ao dia porque, afinal de contas, não adianta nada ser magra e estar cheia de casca de laranja, não é mesmo? <br />
<br />
Ah, também tenho em meus compartimentos remédio para ela dormir, porque o estresse da coitadinha é grande! Como sou sua amiga mais fiel, guardo o remedinho para ela nanar com os anjos. <br />
<br />
Também tenho remédio para ela acordar, porque a cápsula para dormir faz tanto efeito, que só tomando uma pílula para acordar de vez. <br />
<br />
Minha dona pensa muito na saúde e tem uma pílula feita com todas as cascas de árvores da Amazônia, cuja finalidade é repor todas as vitaminas e sais minerais de que um corpo saudável necessita. Afinal, tomar vitaminas em cápsulas não engorda. <br />
<br />
Sou uma super-heroína moderna! Estilo Mulher Maravilha, sabe? <br />
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Hoje em dia é muito comum ter remédio para todos os males e, com isso, graças a Deus!, eu e outras caixas de remédios estamos tão em voga. <br />
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Perdeu um amor? <br />
Tome um remédio. <br />
Ganhou outro amor? <br />
Tome um remédio. <br />
Brigou com o chefe? <br />
Tome um remédio. <br />
Foi promovida? <br />
Tome um remédio. <br />
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É a glória para nós, caixas de remédios, porque, com tantas cápsulas para administrar durante o dia, nos tornamos essenciais na existência de todos. <br />
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A vida tem remédio! <br />
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<br />Carla Giffonihttp://www.blogger.com/profile/12830433045746106919noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5411023288808529609.post-1527337760861265602012-04-29T18:55:00.001-07:002012-04-29T18:55:55.088-07:00O PaladinoEle nasceu para ser paladino. <br />
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Nasceu para ser O defensor dos “frascos e comprimidos”. Seu nome tinha até a pompa de um cavaleiro vindo ao mundo com uma missão maior: Carlos Magno!<br />
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Desde tenra infância, lá estava ele a defender gatos de cachorros, cães de felinos, meninas de meninos, garotos de garotas; um verdadeiro mini-herói, pronto para usar sua capa e espada infantis em defesa do mais frágil.<br />
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É bem verdade que nem sempre ‘o frágil’ queria ajuda, mas ele nem perguntava, ia defendendo e pronto. Se houvesse queixa, saía indignado, com o peito retumbante de orgulho, não entendendo a ingratidão que vigora no mundo. Fazer o quê, né mesmo? Paladino tem sempre como destino ser um incompreendido; ele não era exceção.<br />
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Quando ficou maiorzinho, saiu em defesa de coisas maiores: afinal, vivemos num mundo onde os micos-leões-dourados e as baleias-brancas precisam ser salvos, a floresta da Amazônia também e até aquele casarão caindo aos pedaços, que só tinha a fachada, é de suma importância para a vida de todos do planeta Terra. Neste momento, surgia a figura de Carlos Magno, pronto para defender tudo e todos que precisassem (ou não).<br />
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Por favor, não pense que estou criticando quem realmente busca salvar o dourado dos micos, os mamíferos aquáticos albinos, o pulmão do mundo e até aquele sobrado decadente. Não, não é isso. Falo apenas do paladino Carlos (fora de época) Magno, que nasceu para envergar a capa e a espada em pleno século XXI.<br />
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É bom que se diga que ele não era uma figura romântica, tal qual um Dom Quixote perdido nas veredas do mundo. Não, ele não era.<br />
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Falarei à vera: era um chato. Grande chato. Extremamente chato. Um chato de galocha, como se dizia no tempo da minha mãe. Um chato… bem, você já entendeu. Pois é. Carlos Magno sempre iniciava suas frases com expressões do tipo:<br />
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– Se eu fosse você…<br />
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Ou:<br />
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– Eu no seu lugar…<br />
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Ou ainda:<br />
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– Ah, mas você deveria fazer assim…<br />
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Não podemos esquecer também da frase que ele mais gostava de repetir:<br />
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– Faça dessa maneira …<br />
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Carlos Magno tinha conselho para tudo. Era capaz de explanar – durante três horas seguidas – sobre como salvou com seus conselhos o escondidinho de carne seca da sua vizinha do 303. Ele sabia tudo e tinha a resposta salvadora para qualquer pessoa, para qualquer perrengue. Eu disse qualquer, qualquer mesmo!<br />
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Quem não o conhecesse poderia até comprar sua figura, mas depois de algum tempo a pessoa já se conformava com estar realmente diante de um chato.<br />
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Foi assim com Creusa. Ela “comprou” a figura de Carlos Magno no início e, depois,… xiiiii… Nem te conto!<br />
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Mudando um pouco de assunto: você não acha que Creusa com “r” parece errado? Eu sei que nome próprio é complicado, cada um escreve do jeito que quer, e o cartório deixa passar, mas sempre achei que escrever Creusa é o mesmo que dizer Framengo. Você não acha não?<br />
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Bem, não importa. O que eu queria dizer é que foi assim que Carlos Magno conheceu aquela que viria a ser a mãe amantíssima de seus filhos.<br />
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Pois é, chato também se casa, se reproduz e pode, até, morrer dormindo. Eles, os chatos, estão soltos pelo planeta, e sempre cruzaremos com um paladino pelos corredores do mundo, quando não os encontrarmos na nossa própria casa!<br />
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Quando conheceu Carlos Magno, Creusa o achou simpático (tem chato que à primeira vista pode ser simpático), tinha boa presença – não era lindo de morrer, mas ela também não era nenhuma Vênus de Milo… –, falante e sempre querendo salvar qualquer um que encontrasse pela frente. Ele tinha, aparentemente, todos os ingredientes necessários para ser aquele príncipe encantado do subúrbio que ela queria encontrar. Encontrou. Mas a jovem enamorada estava tão carente, que não deu bola para as pequenas intuições que vagavam como diminutos relâmpagos repentinos em sua mente, alertando-a de que aquele príncipe, na verdade, era um sapo disfarçado. Resultado: casou-se.<br />
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Eu queria completar a frase com “e eles foram felizes para sempre”, mas, convenhamos!, quem se casa com um chato nunca, eu disse nunca!, será feliz, ainda mais para sempre! Tenha dó!<br />
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E a coitada da Creusa se casou de véu, grinalda e rosas vermelhas (ela achou cafona usar flores de laranjeira), bufê e salão de festa da igreja alugado para o grande evento. Tirou fotos com os padrinhos da noiva e os do noivo, jogou o buquê e foi passar a lua de mel numa praia paradisíaca no Nordeste brasileiro, viagem paga – por boleto bancário – em trinta e seis meses. Tudo certo, mas, no final do primeiro mês de casamento, ela já tinha confirmado a certeza de que havia realmente se casado com um chato. Ora, veja você a decepção da criatura!<br />
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Então, a jovem senhora entubou a decepção e seguiu com a vida, aguentando com paciência de Carmelita Descalça em penitência todo aquele blá-blá-blá interminável a lhe rondar os dias e as noites.<br />
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Não demorou muito, o Júnior chegou; dois anos depois, Creusinha Priscila; e, para coroar o clã familiar, o caçulinha, Maicon Aparecido. A família estava formada, e Creusa pôde constatar que aquele ditado antigo que diz que “filho de peixe peixinho é” não podia ser mais certo. Eita, crianças mais chatas! E olha que era a própria mãe falando dos anjinhos! Imagine então a vizinhança!<br />
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Mais uma vez a 'tadinha da Creusa entubou a situação, e assim os anos foram passando, passando, e a pobrezinha aguentando, aguentando, aguentando a cada amanhecer aquele karma, aquele inferno astral que o destino lhe tinha pregado.<br />
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Tenho uma teoria de que o que a pessoa é na juventude, com a idade, a característica, sendo boa ou má, se intensifica. Então, o velho chato foi um jovem chato. Carlos Magno, com o passar dos anos, foi ficando cada vez mais chato; os filhos, crescendo, tornaram-se também mais e mais chatos; e, no meio daquela chatice toda, estava a pobrezinha da Creusa. Ela foi acumulando, acumulando, acumulando ressentimento e mágoa, até que um dia, os filhos já crescidos, ela não aguentou mais e deu seu grito de independência. Arrumou um amante, uns vinte anos mais novo, e colocou um baita par de chifres na cabeça do chato do marido ex-amado.<br />
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Sabe como é, existe uma satisfação maquiavélica em saber que um chato se deu mal. Se a notícia é de que o chato virou corno, então, o prazer, literalmente, é maior!<br />
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Quando a vizinhança e os colegas da repartição souberam que o chato do Carlos Magno era portador de um ditoso par de chifres, ah, eles vibraram de satisfação e deram vivas, exaltando o nome da dona Creusa!<br />
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– Bem feito! – é o que diziam com um sorriso de gato que acabou de comer sua presa.<br />
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Se Carlos Magno já era chato na vida normalmente, imagine quando descobriu que era corno, que a mãe amantíssima de seus filhos o tinha traído? Xiii… quando alguém o via se aproximando, saía de fininho, para evitar ouvir as lamúrias. Sim, porque naquela época dona Creusa já tinha saído de casa e montado apartamento com o jovem mancebo.<br />
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Carlos Magno ficou deprimido, não se conformando com a situação. Dizia até que perdoaria a traidora, aceitando-a de volta ao santo lar. Os chatos dos filhos não aguentaram a chatice do pai; saíram também em disparada, não sobrando nenhum, nenhum mesmo!, para dar o conforto material e espiritual à figura paterna.<br />
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Com isso, ele virou um farrapo humano: barba crescida, cabelo sem corte, olheiras profundas, de pijama o dia inteiro, rondando a casa, que estava uma verdadeira zona sem a mão firme da dona Creusa a comandar aquele lar.<br />
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Além disso, ele trocava o dia pela noite e, no final, acabou despedido da repartição por justa causa. Carlos Magno nem ligou:<br />
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– Minha vida está acabada mesmo! – dizia o chato do corno, dramaticamente.<br />
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Até parecia que ele era o único corno do mundo; como todo chato que se preza, era dramático e superlativo.<br />
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Cada vez mais fundo no poço da depressão e da autopiedade, parecia que seu fim estava próximo, até que, numa madrugada, encontrou a salvação de sua vida: resolveu construir sua própria igreja e foi à luta.<br />
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A primeira providência foi transformar a sua moradia na mais nova igreja do pedaço. Foi fácil, e a procura, já na primeira noite, foi grande. Uns vizinhos chegaram ao local movidos pela curiosidade, porque conheciam o passado do chato do vizinho. Contudo, a maioria apareceu mesmo querendo ser salva.<br />
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Já no primeiro mês, Carlos Magno abriu quatro filiais nos bairros circunvizinhos.<br />
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Seis meses depois, já tinha trezentas e sessenta e cinco filiais no estado inteiro.<br />
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Sua conta corrente crescia a olhos vistos, e até o experiente gerente do banco ficou estupefato com tamanho crescimento financeiro em tão pouco tempo.<br />
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Sua vida realmente deu uma guinada completa, e hoje ele vive com a nova mulher, Shirley Matilde, o grande amor de sua vida, sua verdadeira alma gêmea, tão chata quanto ele! Teve mais três filhos com seu grande amor: Petrick Jorge, Melissa Matilde e Wallace Juarez. A feliz família mora num grande triplex de frente para o mar. Tem jatinho e helicóptero e já contratou um personal stylist e um assessor de imprensa. Carlos Magno pretende concorrer nas próximas eleições para o cargo de deputado federal.<br />
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E todos foram felizes para sempre!<br />
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<br />Carla Giffonihttp://www.blogger.com/profile/12830433045746106919noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5411023288808529609.post-16242604730884908572012-04-26T11:54:00.002-07:002012-04-26T12:09:39.491-07:00Pão DocePão Doce era um menino muito levado da breca.<br />
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Não era este o seu nome de batismo, é claro, mas nem a avó se lembrava de como o neto se chamava. A mãe morreu de complicações no parto, e o pai era desconhecido. <br />
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Resultado: Pão Doce foi batizado com algum nome cristão, mas a avó, que na verdade se tornou sua mãe, devido à idade avançada nem se lembrava mais do nome que tinha lhe dado. Precisava procurar a certidão de batismo para saber o nome do neto, mas, como ela não soubesse ler e os problemas da velhice não ajudavam muito, ela sempre deixava para depois. <br />
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O apelido veio desde antes mesmo de o umbigo cair. Ainda era petititico, alguém olhou para ele e o chamou de Pão Doce. A alcunha pegou na mesma hora. <br />
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Sabe como é, apelido, quando cai na boca do povo, nada trata meio de tirar. Pão Doce era um bom menino, apesar de arteiro. <br />
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Adorava mexer com as beatas, soltando pequenos camundongos na hora da missa em que elas estavam ajoelhadas. Era um alvoroço. Ele sempre fazia isso na missa das 11 horas, porque a igreja estava mais vazia e ninguém lhe notava a presença. <br />
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O padre Ezequiel ficava doido com bafafá das beatas, que interrompiam sua missa para subir nos bancos, com medo dos pequenos ratinhos. <br />
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Pão Doce ria, escondido perto da sacristia, e depois que via o mal que tinha feito, saía correndo como um corisco, destrambelhado ladeira abaixo. <br />
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Porém Pão Doce também tinha qualidades. <br />
Era um ótimo moleque de recados entre os enamorados. Havia uns quatro casais que utilizavam seus serviços, em troca de alguns trocados. <br />
Coisa pouca, o suficiente apenas para comprar cocada preta e algumas balas de coco ou de tamarindo na venda do seu Messias. <br />
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Outra qualidade de Pão Doce: era bom em lidar com os bichos de todas as espécies. Parecia que o moleque sabia se comunicar na linguagem deles, e qualquer cachorro vira-lata ou roedor de beco vinha saudar-lhe como se fossem velhos amigos. <br />
Daí a facilidade que tinha para arrumar camundongos e soltá-los na missa do padre Ezequiel. <br />
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Não pense que Pão Doce fosse um garoto mau; não, ele tinha um bom coração. Mas, como todo moleque saudável, era levado e fazia estripulias, desfrutando os curtos momentos da infância, que passa tão rápido. Pão Doce, apesar dos pesares, era querido e sabia cativar os outros com seu sorriso branco e largo. <br />
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Mesmo as beatas acabavam lhe desculpando e volta e meia utilizavam seus serviços para comprar alguma coisa na venda do seu Messias ou na farmácia do seu Fausto. <br />
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Foi assim até o dia em que o padre Ezequiel bateu à porta da casa de sua avó para contar que tinha conseguido um lugar para Pão Doce num seminário lá na capital. <br />
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A avó do menino, ciente de que já tinha idade avançada e que qualquer hora dessa iria se juntar a Nosso Senhor lá no meio do céu, havia pedido ao pároco que achasse uma posição para o neto em algum seminário, garantindo ao moleque estudo, moradia e proteção. <br />
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Pão Doce, quando foi informado de que o padre havia conseguido a vaga, não quis ir de jeito nenhum. Largar a boa vida de moleque solto na campina, sem preocupação com estudo e hora? <br />
Ah, não queria, não! <br />
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O padre Ezequiel que tratasse meio de colocar outro garoto, que ele ia ficar por ali, subindo em árvore, dando recado para os enamorados, comendo a cocada preta e as balas de coco da venda do seu Messias, sendo feliz do jeito que era. Foi um rebuliço na casa. <br />
<br />
A avó de um lado querendo excomungá-lo pela heresia, e o padre Ezequiel tentado apaziguar os ânimos e buscando convencer o garoto de que a senhora estava fazendo apenas o que achava que seria bom para ele. Afinal, crescer um menino solto na vida não daria em boa coisa.<br />
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– Não lembra do filho da sinhá Madalena, o Zequinha fura-bolo, que morreu de morte matada? – questionava o padre ao garoto rebelde. <br />
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O pároco tinha razão: sinhá não entortou o pepino enquanto era novo e, no final, perdeu o filho para um facão bem afiado. A desgraça aconteceu no Sábado de Aleluia, na venda do seu Messias, há dois anos. <br />
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Pão Doce azedou no mesmo instante, fechou a cara, bateu o pé e jurou por tudo que é santo que não arredava dali, nem que a vaca tossisse por três meses. <br />
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Para encurtar a conversa, no fim das contas Pão Doce embarcou no trem, mesmo a contragosto, e foi estudar na capital. O coração de cada um, tanto o da avó como o do neto, ficou cortadinho, cortadinho de saudade. <br />
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Mesmo que Pão Doce não compreendesse na época que aquilo que sua avó fazia não era por maldade, mas por amor, o coração chorou de saudade, porque é sempre assim quando a gente é obrigado a ficar longe de quem a gente ama, e os dois se amavam muito, demais mesmo. <br />
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Pão Doce com o tempo se acostumou à vida do seminário, com relutância, é bem verdade, porque moleque como ele, criado solto, não se acostumaria facilmente às regras e imposições de um bando de padres, dizendo o que ele deveria ou não fazer. <br />
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Aprendeu muita coisa naquela escola, coisas que nem sabia que existia. <br />
Tinha dificuldades em matérias como Latim e com aquelas decorebas todas que era obrigado a guardar. Mas era bom em matemática e fazia conta de cabeça como ninguém. <br />
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Teve uma vez em que fez uma arte em sala de aula e como punição foi obrigado a ajudar na cozinha do seminário. <br />
Pão Doce foi de muito má vontade. <br />
Na cabeça dele, cozinha era lugar de mulher, e ele era macho, sim, senhor. <br />
Mas acabou indo e lá encontrou um novo mundo de cheiros e sabores. <br />
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Padre Joãozinho, o responsável, adorava cozinhar e sabia como ninguém fazer iguarias maravilhosas; iguarias a que só os padres tinham acesso, porque os meninos comiam aquele feijão com arroz básico mesmo. <br />
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Foi lá que Pão Doce descobriu sua verdadeira vocação: as massas. Parecia até que o destino tinha lhe pregado uma peça fazendo-lhe ter um apelido que condissesse com sua real vocação. <br />
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Qualquer massa nas mãos de Pão Doce se transformava em algo macio, leve e divinamente saboroso! <br />
Um grande pecado da gula, diziam sempre os padres do seminário, queixando-se e sem poder resistir às guloseimas do ex-moleque. É bem verdade que padre Joãozinho foi generoso, ensinando todos os truques que sabia. <br />
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Contudo, o aluno ultrapassou o próprio mestre e inventou seus próprios truques. Em pouco tempo sua fama corria solta fora dos portões do seminário, e ele era obrigado a fazer pães e bolos para bispos, arcebispos e cardeais. <br />
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Quando chegou a hora de ordenar-se padre, Pão Doce explicou à direção do seminário que não daria certo. Que não era esta a sua vocação, que o que ele queria mesmo era ser padeiro. Os padres ficaram tristes, principalmente aqueles mais gulosos, porque iriam perder as delícias feitas pelo jovem talentoso. <br />
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Mas, no final das contas, se conformaram e abençoaram o rapaz. <br />
E foi assim que o empresário Pão Doce, ou melhor, Duval Leite, começou sua fortuna e sucesso. <br />
Saiu do seminário, alugou com a ajuda do padre Joãozinho um quarto numa pensão barata, onde a dona deixava que utilizasse sua cozinha, e começou a fazer pães e bolos para vender de porta em porta. <br />
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Em pouco tempo já tinha uma pequena padaria, logo depois comprou uma pequena casa de vila e trouxe a avó para morar junto. Em menos de cinco anos era proprietário da maior e mais bem conceituada padaria do Distrito Federal. <br />
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Tinha filiais não só na capital, mas também em importantes cidades do país. Montou uma indústria e emprega uma porção de gente. Na próxima semana, ele inaugura uma escola onde ensinará aos jovens carentes os segredos das massas. <br />
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O nome da oficina é 'Broinhas do amanhã'.Carla Giffonihttp://www.blogger.com/profile/12830433045746106919noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-5411023288808529609.post-44088164458733885952012-04-12T07:50:00.004-07:002012-04-12T07:55:13.132-07:00Sexy fone - perfil de personagemMaria Izilda Barbosa = é uma mulher branca, 55 anos, virgem, moradora de Nilópolis, Baixada Fluminense, onde reside na companhia do pai, que tem sérios problemas de saúde devido ao estado avançado da diabetes. É filha única. Izildinha, como é chamada pelos conhecidos, é representante de produtos de cosméticos, mas sua maior fonte de renda é trabalhando num sexy fone, para onde solitários ligam querendo ouvir as fantasias sexuais de que ela fala.<br /><br />Izildinha é bem magra, baixa, cabelo pintado de vermelho intenso e tem uma voz que aparenta muito menos idade do que ela tem. A voz parece ser de uma jovem de vinte anos. Seu horário de trabalho é das 22h às 6h, no Centro da Cidade. Ninguém sabe que ela ganha seu dinheiro no sexy fone Garganta Profunda; ela diz que trabalha como camareira no Copacabana Palace. <br /><br />Seu nome de guerra é Priscila Tanajura.<br /><br />Seu Isauro Barbosa = é um torcedor fanático pelo América e tem ódio mortal do Botafogo. Carrega uma grande frustração na vida: não ter sido aceito no Exército. Tem alma de general: mandão, orgulhoso e dono da verdade. Trata a filha de maneira muito rígida e nunca aceitou que ela arrumasse namorado. É viúvo e tem 72 anos. Foi obrigado a se casar com a mãe de Izildinha, ela estava grávida; ele tinha 17 e ela 15anos. Como era arrimo de família, o Exército não o aceitou.<br /><br />Tem sérios problemas de saúde devido ao avanço da diabetes. Está quase cego, mas não admite isso, tampouco deixa de comer doces. Faz isso escondido. Tem um garoto que todo dia compra para ele, num botequim, pé de moleque, paçoca, doce de abóbora e canudinho. Come escondido da filha. Já perdeu dois dedos da mão e corre o risco de perder o pé por inteiro.<br /><br />Pedreira = José Pedreira, conhecido pelo sobrenome, é o gerente do sexy fone. O dono do estabelecimento é um político famoso, que não aparece. Pedreira é seu laranja.<br /><br />Baixo, mulato, bem acima do peso, tem 53 anos e usa no dedo mindinho um anel com rubi falsificado. Sua nas mãos e com toda funcionária mais jeitosinha ele quer fazer o teste do sofá. Humilha Izildinha, mas, às vezes, ouve-a falando ao telefone e se excita no escritório, masturbando-se diante da foto da Luana Piovani.<br /><br /><br />Ele mora no prédio onde está localizado o sexy fone, um sobrado decadente na Rua Mem de Sá.<br /><br />Regina da Silva = é a única amiga de Izildinha. Trabalha também no sexy fone. É negra, está acima do peso, tem 64 anos, seios fartos, bunda grande e foi dançarina de boate na década de 70. Tem voz rouca e sexy. Trabalha para sustentar os três netos menores, já que a mãe (sua filha) é viciada em crack. Foi casada quatro vezes. Mora em Madureira e é viúva. Enterrou os quatro maridos. Teve só uma filha.<br />Seu nome é Talytta Popozuda.Carla Giffonihttp://www.blogger.com/profile/12830433045746106919noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-5411023288808529609.post-35474737451890077992012-04-04T04:18:00.003-07:002012-04-04T04:27:25.400-07:00CarecaLicínio nasceu careca. <br /><br />Nada de mais nascer careca, poderão argumentar os mais desavisados. <br />É verdade. <br />A beleza de um bebê está em, muitas das vezes, ele nascer careca, vermelho e sem dente. <br /><br />Contudo, ele realmente nasceu careca e, com a passagem dos meses, que se acumularam em anos, não nasceram sequer alguns fiozinhos de cabelo. <br /><br />Nada. <br />Nadica de nada. <br />Era só testa, sem um mísero fio de cabelo para lhe voar aos olhos. Era portador de uma testa obsessiva, lustrosa e fluorescente.<br /><br />Pergunte a um homem se ele gosta de ser careca: a maioria esmagadora dirá um sonoro e retumbante ‘não’. Mesmo os que sobram podem não querer admitir, mas, lá no fundo de suas calvas generosas, dirão que a resposta também é um ruidoso e ressonante ‘não’!<br /><br />Veja você, então: se é difícil para um homem adulto ser portador de um crânio desprovido de tufos capilares, imagine uma criança em formação, tendo que brincar com outros pequenos na escolinha, ir ao parque e participar das festinhas infantis, que sempre existiram e sempre existirão, para desespero de alguns pais.<br /><br />Não há quem não se emocione com crianças, mas estes anjinhos que os Céus enviam podem muitas vezes se transformar em pestinhas a infernizar a vida de algum coleguinha. Hoje tem até nome científico para isso, o tal do bullying, mas no tempo de Licínio não tinha não, e o pobre sofria, porque criança careca não era muito frequente na aurora de sua vida. <br /><br />Hoje criança desfila com penteado de tudo que é maneira: os últimos dos moicanos, pajens, Mauricinhos etc., etc., etc.… Vai conforme a moda e o gosto do freguês. <br /><br />Mas no tempo dele não era assim que a banda tocava. Todas as crianças deveriam ter cabelos comportados e cortados conforme mandavam os bons modos e costumes.<br /><br />Menino de cabelo grande? <br />Nem pensar! <br />Menina de cabelo curto? <br />Fora de cogitação! <br />Com isso, o pobrezinho do Licínio não se encaixava em nenhuma das regras. <br /><br />O pior era que em sua família todos tinham uma vasta cabeleira, homens, mulheres, crianças e velhos. Da parte tanto da mãe como do pai nenhum careca se via nas reuniões familiares. Só ele é que sofria do mal da ‘carequice’ na família. <br /><br />Com isso, as crianças da própria família começaram a lhe dar os mais terríveis apelidos, que o constrangiam e irritavam: aeroporto de mosquito, pouca telha, bola de sinuca, cabeça de ovo – só para lembrar alguns.<br /><br />Como sofria! <br />'Tadinho dele!, era o que diziam as almas caridosas. <br /><br />Me dá um medo de gente assim… nem é bom falar! Gente que começa a frase dizendo que o outro é 'tadinho… sei não… este é um tipo de compaixão que humilha, e gente que tem prazer em humilhar o outro, sei não… pode até se revestir de cristão, mas na verdade…<br /><br />Bem, voltemos ao coitado… quer dizer, voltemos a sua careca lustrosa, que começou desde que nasceu e o acompanhou quando chegou à puberdade e juventude. <br /><br />Nos bailinhos… hiiiiiiiiii… era um desacerto, porque nenhuma garota, por mais mal-ajambrada, queria dançar com a criatura. <br /><br />Corria à boca pequena que Licínio tinha uma doença contagiosa no couro cabeludo. <br /><br />Esclareço desde já que tudo não passava de fofoca. Nenhum médico, especialista, pai de santo, padre ou pastor diagnosticaram qualquer problema físico que pudesse gerar a falta de cabelos, muito menos a presença de qualquer tipo de doença contagiosa.<br /><br />Teve um psicólogo, muito renomado em sua época, que disse que seu problema poderia ser de ordem emocional. <br /><br />Não descarto esta possibilidade, nós, seres humanos, somos um feixe enorme de emoções, certo? Mas acho que também há um pouco de exagero, porque, afinal de contas, pode ter sido apenas um karma (ou destino ou então má sorte…) que ele teria que viver, sei lá!<br /><br />O que sei é que Licínio chegou à juventude e só deu seu primeiro beijo aos vinte e sete anos. <br />Imagine você! Um virgem! <br />Sim, porque nem as prostitutas aceitavam sua companhia, com medo de pegar a decantada doença que a rádio corredor tratou de anunciar para toda a cidade. Elas aceitavam pegar sífilis, gonorreia, mas ficar careca, ah, isso não!<br /><br />Nem cantar perto dele o famigerado refrão “É dos carecas que elas gostam mais” se podia. Licínio logo dizia, revoltado, para quem quisesse ouvir:<br /><br />– Mentira!<br /><br />Também, pensa bem, ele comeu a vida inteira o pão que o diabo amassou por três dias! Então era natural o tom de revolta.<br /><br />Mas quem pensa que sua vida começou a melhorar, a se normalizar, após o primeiro beijo da amada, pode perder a esperança. Licínio beijou e, logo em seguida, já tratou meio de casar com a única moça que lhe aceitou os afagos pueris.<br /><br />Carminha era uns cinco anos mais velha (na verdade, oito; mas ela diminuía a idade entre os familiares), não era bonita, mas também não era feia. Era comum. Muito comum. Extremamente comum. Um tanto quanto seca no trato, é bem verdade. Mas o enamorado não se importou.<br /><br />Licínio mal sabia a fria em que estava entrando. Com medo de ficar sozinho, acabou se casando com a primeira que apareceu, literalmente, e que se mostrou uma megera que mais parecia a união de todas as madrastas das histórias infantis. Desde que pôs a aliança no dedo, em frente a padre e juiz, ela fez da vida de Licínio um pequeno inferno, humilhando-o de todas as maneiras.<br /><br />Desculpe o palavreado, mas era ela quem “colocava o pau” em cima da mesa, mandava e desmandava em casa e na vida do infeliz. Como sofreu, o bendito!<br /><br />Ela o fazia de gato e sapato, não importando se tinha gente perto ou não. Já na lua de mel, a recém-casada botou suas manguinhas de fora. Conta-se à boca pequena que Carminha só esperou a aliança no dedo para mostrar como era realmente o seu caráter. Dizem também as más línguas que ela já não era menina-moça e que se casou com ele só por medo de ficar para titia, porque, convenhamos, idade ela já tinha.<br /><br />Quando chegou o primeiro e único filho, a situação já tinha piorado muito. Ela só cumpriu o que mandavam os bons costumes do tempo: mulher tinha que casar e gerar, pelo menos, um filho. Ser mãe amantíssima era o que mais lhe convinha, e Carminha apenas utilizou o pobre para que seu objetivo de vida se concretizasse.<br /><br />Agora, veja você, além de ser careca num tempo em que os carecas não estavam na moda nem nada, ainda tinha que aguentar a esposa megera e o insuportável filho. Que via crucis, não é mesmo? Sim, porque Carminha casou na verdade com o filho. <br /><br />Era uma agarração para cá, uma agarração para lá, que só Freud explica. <br />Nem Jung explica, nem Jung!<br /><br />O garoto recebeu o nome de Eusébio. Eusebiozinho, como era chamado por todos. O diminutivo já demonstra a falta de caráter da criatura. Nem sempre o diminutivo quer dizer falta de caráter, mas no caso dele era. Era alguém menor, com o ego inflado graças à figura materna. <br /><br />- Graças a Deus - dizia Carminha em alto e bom som para quem quisesse ouvir - Eusebiozinho tem uma vasta cabeleira e não é careca como o imprestável do pai - clamava, humilhando ainda mais o marido.<br /><br />Era ou não um inferno a vida do infeliz? <br />Pois é. <br />E comparada ao inferno em que vivia, a ‘carequice’ às vezes até era esquecida. <br /><br />Quer dizer, só um pouco. Porque, na verdade, Licínio, sempre que se via no espelho ou tinha sua imagem refletida em algum lugar, lembrava-se do seu grande infortúnio e que toda desgraça acontecida em sua existência tinha o selo da ‘carequice’ a lhe imputar a falta de cabelos.<br /><br />E assim os anos foram passando, passando… passando… passando… Licínio se acomodou com as humilhações no sacrossanto lar e com a vidinha sem sal no trabalho; virou aquele homem bonachão, funcionário público de baixo escalão, que ia da casa para o trabalho e do trabalho para casa, usava pijama e chinelas e via pela TV uma vida que nunca teve e que nunca teria.<br /><br />Certo dia, já com idade avançada, morreu dormindo em frente ao aparelho de televisão. Carminha e o filho sequer choraram, afinal se livraram do traste do imprestável. <br /><br />Seu enterro se deu numa tarde fria e chuvosa, e apenas a mulher, o filho e meia dúzia de parentes distantes e vizinhos apareceram para acompanhar o corpo até sua última morada.<br /><br />Contudo, um fato estranho aconteceu tempos depois. Sobre seu túmulo nasceu um pé de milho, apenas um pé. Um único e exclusivo pé. A espiga era muito pequena, raquítica mesmo, mas o cabelo do milho era grande, vistoso, parecendo uma trança de Rapunzel. <br /><br />Um exagero, diziam alguns. <br />O administrador do cemitério mandou cortá-lo umas três vezes, mas o pé de milho sempre voltava a crescer do mesmo jeito, e o cabelo se tornava lustroso, forte, encorpado. <br />Uma belezura!<br /><br />Tempos depois, começou a ocorrer uma romaria ao seu túmulo. Desde o momento em que um homem começou a tomar o chá daquele cabelo de milho, os próprios cabelos começaram a crescer e as entradas que tinha pronunciadas sumiram completamente. Imagine a confusão que houve no cemitério quando a notícia se espalhou! <br /><br />Pois é. O que teve de homem querendo um chumaço de cabelo do moribundo careca não está no gibi! <br />Virou santo para o povo: São Licínio, o protetor dos calvos e carecas. <br /><br />Amém!Carla Giffonihttp://www.blogger.com/profile/12830433045746106919noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5411023288808529609.post-40195898098729348072012-03-17T07:42:00.002-07:002012-03-17T07:46:35.481-07:00AeroportoA claridade surge no horizonte, e Valdomiro ainda se encontra no aeroporto, esperando o voo.<br /><br />É sexta-feira de Carnaval, e ele se junta a um elenco de rostos. Seu olhar vagueia pelo salão, procurando distrair-se. Algumas pessoas estão deitadas no chão, outras nas cadeiras cochilam.<br /><br />Um homem e uma mulher parecem recém-casados, tal a ‘melação’. Valdomiro lembra-se da ‘patroa’ em casa e de que no início do namoro e do casamento era aquela mesma paixão, aquela efervescência de hormônios; talvez fosse até mais intensa do que o casal que agora espia. Mas o tempo passou, o mato cresceu, e a rotina, a presença das crianças e depois dos netos chegados precocemente fizeram o fogo se extinguir, deixando só um espectro do que fora.<br /><br />Valdomiro olha para o relógio com impaciência. Cada ponteiro caminha tão lentamente, que parece não se mexer. Uma lentidão de operários em greve branca.<br /><br />Uma mulher senta-se do seu lado. Ela empurra um carrinho de bebê de dois lugares, e os gêmeos choram desafinadamente. Valdomiro suspira porque prevê que o dia será longo, compassivamente longo.<br /><br />O garotinho de verde faz birra, não querendo a chupeta que a mãe tenta lhe impingir, enquanto o outro, de azul, bate as perninhas, chora e berra ainda mais alto. Ambos parecem estar num concurso para medir quem ultrapassa o limite de decibéis que os ouvidos humanos conseguem aguentar. <br /><br />Ele pensa em tomar um cafezinho para ver se fica mais animado, mas, dando mostras de sua presença, a úlcera expele fogo, tal qual uma dragoa com TPM, e ele desiste da ideia.<br /><br />Uma velhota, com acompanhante, senta-se à sua esquerda. A idosa não para de falar um só minuto, e a outra, provavelmente a empregada, olha placidamente em volta. Deve estar acostumada ao falatório de metralhadora giratória da patroa. O pior é que a voz da anciã é horrível, fina, penetrando nos ouvidos como um punhal estreito, frio e afiado.<br /><br />Valdomiro não aguenta. Está no meio de dois fogos cruzados. Levanta-se e busca distração na loja de revistas e jornais. Procura o setor dos jornais, mas seu olhar é atraído pelas mulheres peladas das revistas masculinas.<br /><br />Cada pose!<br /><br />No tempo em que era moleque, ver mulher pelada era uma dificuldade. Tinha todo um esquema para comprar as revistinhas proibidas de Carlos Zéfiro. Teve uma vez em que ele e seu primo Betinho encontraram nas revistas de sua mãe um anúncio de sutiã e meias no qual as modelos – nem eram mulheres reais, mas desenhos – usavam espartilhos e meias sete oitavos. Foi o suficiente para ambos passarem horas e horas no banheiro.<br /><br />Hoje tudo é diferente. As fotos mostram cada posição que parece ter sido feita durante uma consulta de médico de senhoras!<br /><br />“Os tempos são outros”, pensa, conformado.<br /><br />Compra o jornal e uma revistinha de palavras cruzadas. Não tem coragem de adquirir as revistas masculinas. Afinal, chegar em casa com aquelas publicações despertará a indignação de Isaura, sua ‘patroa’. O ciúme já não lhe visitava a vida matrimonial havia algumas décadas, mas, sabe como é, melhor não facilitar.<br /><br />Além do mais, ele não tem mais idade para ficar levando revistas escondido para o banheiro, não cai bem a um senhor de sua faixa etária, por isso desistiu de concretizar a compra. Mas que ficou tentado, ah, isso ficou!<br /><br />Procura um lugar para sentar-se, bem longe dos gêmeos e da matraca giratória da velhinha. O aeroporto está cheio, mas encontra um assento vago perto dos banheiros. Da porta do lavabo feminino sai uma mulher super alta. Um mulherão de mais de metro e noventa. Valdomiro sabe que existem mulheres altas, cada vez mais isso é uma realidade, mas ele fica na dúvida.<br /><br />“Será mulher mesmo?” – questiona-se.<br /><br />Roupa chamativa, muito maquiada, cílios que devem ter sido comprados em alguma loja especializada em maquiagem feminina para o Carnaval, um perfume forte que lhe causa uma crise de espirros, Valdomiro questiona-se mais uma vez se realmente é mulher a criatura. Na bolsa que ela usa dá para carregar o bairro de Vila Isabel inteiro e ainda sobra espaço para o Parque do Aterro do Flamengo.<br /><br />“Muito exagero, muito exagero para ser uma mulher”, argumenta Valdomiro consigo mesmo.<br /><br />Mas, como hoje tudo é normal, ele abre a revistinha de palavras cruzadas, procura uma caneta no bolso interno do paletó e começa a buscar as palavras certas para preencher aqueles quadradinhos.<br /><br />Valdomiro gosta muito de fazer palavras cruzadas. Dizem os médicos que isso é bom para pessoas que têm a sua idade, mas não é por isso que ele faz o joguinho. É por prazer mesmo, e não para evitar aquelas doenças que afetam o cérebro e que acompanham a velhice.<br /><br />Durante algum tempo, Valdomiro não prestou atenção ao burburinho natural do aeroporto, de tão concentrado que estava em encontrar as palavras certas; às vezes ele olha atrás da revista, para conferir se a sentença em que pensou estava correta; ou então espia quando não sabe mesmo que vocábulo deve escrever. Isaura diz que ele trapaceia no jogo.<br /><br />– Mentira! Calúnia! – nega, indignado, sempre, para quem quiser ouvir; nunca deixou de olhar as respostas de vez em quando, porém agora sempre faz isso escondido dos olhares da esposa e dos outros.<br /><br />Uma voz de mulher de aeroporto se ouve nos alto-falantes. Valdomiro sempre teve vontade de conhecer aquela voz, que dá a impressão de acompanhar uma figura feminina muito bonita. <br /><br />“Deve ser um tribufu!” – pensa – “Quem vê cara não vê coração, já dizia minha vó Dorinda”, lembra-se.<br /><br />A voz diz que o check-in está sendo iniciado e que os passageiros devem encaminhar-se ao balcão da companhia aérea. <br /><br />Quando Valdomiro faz o movimento de levantar-se da cadeira, parece que uma manada de elefantes é liberada. A empregada arrasta a velha pela mão ao mesmo tempo em que tenta levar as duas malas; a mãe com o carrinho dos gêmeos grita que tem prioridade, o casal recém-casado vai atropelando qualquer um à sua frente. Desespero total.<br /><br />Valdomiro é levado naquela onda e nem sabe como sair do tumulto. A asma ataca e a úlcera dá pinotes de cavalo xucro. Ele é arrastado pela multidão insana. Ainda tenta resistir, mas é espremido entre um homenzarrão e um rapazote. O homem, que mais parece um armário, de tão largo, impede a visão de Valdomiro. Já o rapaz parece ter saído de um filme de terror, destes atuais, tal a quantidade de piercings e tatuagens que carrega, além do cabelo arrepiado, pintado de preto e roxo.<br /><br />Outro homem, pesando uns cento e oitenta, pisa no pé de Valdomiro, justamente naquele pé em que joanete e unha encravada fazem parceria de Batman e Robin. Valdomiro solta um grito de dor, mas no meio daquela manada destrambelhada não é ouvido e o seu urro se perde no meio do tumulto.<br /><br />Quando consegue chegar ao balcão, Valdomiro se sente triturado por uma máquina de moer carne: camisa fora da calça, cabelo despenteado, rosto vermelho, olho rútilo, boca seca como se tivesse atravessado três desertos, e mancando devido à pisada no joanete e na unha encravada dada pelo gordo.<br /><br />Valdomiro pensa: “Agora, sim! Vou sair desta loucura. No avião tudo se resolverá, e logo estarei em casa!”.<br /><br />De posse dos documentos necessários para entrar no avião, Valdomiro caminha pela passarela que leva ao transporte, que é mais pesado que o ar, com a certeza de que o pior já passou.<br /><br />Procura seu lugar na fileira e constata que não há ninguém dos lados direito e esquerdo. Valdomiro suspira de felicidade, senta-se na poltrona estreita e fecha os olhos, esperando o momento em que o aeroplano (sim, no tempo dele avião era chamado de aeroplano) decolará. <br /><br />A temperatura ambiente é agradável, e Valdomiro quase cochila, mas é acordado com um toque insistente no ombro. Abre os olhos e depara-se com o rosto vermelho e redondo do homem de cento e oitenta quilos que havia pisado ao mesmo tempo no seu joanete e na unha encravada. <br /><br />E pensa: “Oh, não!”.<br /><br />Sim, desgraça pouca é bobagem, Valdomiro! Acredite.<br />O gordo senta-se à sua direita, do lado da janelinha, e Valdomiro vê-se espremido entre o homem e sua senhora, tão gorda quanto ele.<br /><br />É Carnaval, e Valdomiro sente as agruras da carne.Carla Giffonihttp://www.blogger.com/profile/12830433045746106919noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-5411023288808529609.post-84583822567341124332012-03-13T19:17:00.004-07:002012-03-13T19:19:46.908-07:00CarnavalDe repente, a sala foi invadida de fantasias. <br /><br />Eram baianas, Supermans, Colombinas e Carlitos de diversas cores. Cada um buscava remédio para sanar suas próprias dores no Pronto-Socorro. Médicos e enfermeiras mostraram-se perdidos naquela confusão inesperada de paetês e serpentinas.<br /><br />Uma baiana em crise de nervos, histericamente desesperada, gritava pela perda de seu tabuleiro, e outras, solidárias, choravam junto, tal um coro grego.<br /><br />Dois Supermans em coma alcoólico precisavam, com urgência, tomar soro glicosado.<br /><br />Sete Colombinas, nas cores do arco-íris, zanzavam para cima e para baixo. A van em que elas estavam tinha capotado, mas (graças a Deus!) ninguém se feriu gravemente. Apenas sofreram escoriações diversas, mas como nenhum Arlequim as acompanhasse, batiam as cabeças uma às outras, mais parecendo baratas tontas.<br /><br />Um Carlito alto, magro e negro apoiava outro Carlito, baixo, gordo e branco, que tinha ferido o pé numa garrafa quebrada e sentia os cacos de vidros tragicamente penetrarem sua pele.<br /><br />Uma mulher titanicamente gorda era carregada – com dificuldade – por cinco homens parrudos e um anão. A maquiagem dos olhos pintados em branco e preto derretia gota a gota, formando lágrimas cinzentas a escorrer sobre a papada flácida, até se estilhaçarem no chão. De sua boca saia uma gosma amarelada, como se tivesse comido pão com ovo mole.<br /><br />Um velho trajando fralda de bebê gigante e de toquinha de babadinho mal respirava, em crise asmática. A chupeta do neném quem segurava era uma jovem fantasiada de babá sexy, que tentava consolá-lo, enquanto exigia que a enfermeira o atendesse, dando prioridade aos maiores de sessenta e cinco anos, conforme determina a lei.<br /><br />Ainda não era meia-noite, e a sala do Pronto-Socorro já estava empilhada de fantasias, dores e aflições.<br /><br />– Será uma longa noite adentro – profetizou, sentado num canto perto da porta do banheiro, um Pierrô roto, agarrado à sua garrafa.Carla Giffonihttp://www.blogger.com/profile/12830433045746106919noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5411023288808529609.post-64329711178363117932012-01-16T06:34:00.000-08:002012-01-16T06:35:09.275-08:00CanalhaEla se casou com um canalha.<br />Não aquele canalha rodriguiano por quem a gente se apaixona à primeira baforada de Continental sem filtro nos cornos.<br />Não.<br /><br />Era um canalha vulgar, encontrado em qualquer definição de dicionário. Estava lá: conjunto de pessoas desprezíveis. Era assim. Assim era ele.<br /><br />Desde o início do flerte (no tempo dela, era flerte mesmo) ele já mostrava a que veio. Mas ela, carente e já quase passando da idade de arrumar matrimônio, resolveu aceitar, como se ele fosse a última coca-cola do deserto.<br /><br />Ela detestava coca-cola, preferia mil vezes um guaraná ou suco de caju, mas mesmo assim resolveu aceitar e investir no que ela achava que poderia tornar-se um namoro firme, com vistas a um casamento de véu, grinalda, flores de laranjeiras e caminhada pela nave do Outeiro da Glória.<br /><br />Ele passava em frente à sua casa, diariamente, e ficava por alguns minutos sob o poste, com a desculpa de acender e fumar um cigarro.<br />Ela, como toda boa moça de família que se preza, sempre no mesmo horário tinha por costume estar ‘casualmente’ na janela vendo a vida passar, tal qual uma musa à espera de um poeta para eternizá-la.<br /><br />Não era feia. Mas dizer que era bonita seria exagero. Estava ali entre a linha tênue do quase belo com uma pitada de ‘normalidade’. Mas a juventude (ah, a juventude!) é capaz de trazer em si qualquer tipo de beleza, elevando-a a um patamar onde a pele firme, os olhos vivos e a boca rósea fazem qualquer mulher transformar-se numa quase Ava Gardner tropical.<br /><br />Ela sondou entre a vizinhança e ficou sabendo que ele morava nas redondezas, numa pensão barata, bem mixuruca mesmo, que ficava três quarteirões abaixo da rua onde ela residia. Sua casa ficava numa ladeira, um casarão antiquado precisando de reformas urgentes, mas que trazia em si a opulência de um passado machadiano que ficou lá atrás, no pretérito bem longe.<br /><br />Aquele chove-não-molha durou quase três semanas. O tempo era outro, e as horas passavam numa lenta morbidez de filmes ‘cabeça’, aqueles que só intelectuais sabem entender.<br /><br />Até que um dia o mancebo encontrou ‘ao acaso’ sua – nem tão jovem – Julieta na quermesse de uma festa de Santo Antonio, na igreja do bairro. Galante, ofereceu-lhe uma maçã do amor, que ela aceitou imediatamente. <br /><br />Antes não tivesse aceitado o mimo, porque a guloseima açucarada lhe custou a quebra do roach que tinha colocado havia pouco menos de três dias. Uma pequena fortuna que deveria ser paga em seis suaves prestações pela prótese parcial.<br /><br />Para esconder a quebra, ela, durante todo colóquio, abria a boca o mínimo necessário e só dava um sorriso um tanto ou quanto amarelado, sem mostrar os dentes, para qualquer gracejo que o jovem fazia. <br /><br />Gracejo sem graça, devo dizer, mas como o interesse mútuo era visível, o jovem se esforçava para parecer inteligente e bem-humorado, e ela se esforçava por acreditar que ele era realmente inteligente e bem-humorado. <br /><br />O que não faz uma mulher carente!<br /><br />Mas não era disso que estava falando, e sim contando história da pobrezinha.<br /><br />A quermesse durou uma semana, e durante sete dias ele e ela se encontravam em diferentes barracas para não despertar suspeita na família, que a vigiava com uma fidelidade de cachorro pequinês.<br /><br />Um dia encontraram-se na barraca de tiro ao alvo, onde ela ganhou de presente uma feia boneca de pano depois que ele acertou meia dúzia de garrafas; no outro, encontraram-se na barraca do leilão, e desta vez ela foi agraciada com um buquê de flores de plástico, que ele arrematou por alguns trocados. <br /><br />No terceiro dia, o dinheiro dele já tinha acabado e foi ela quem acabou pagando o sorvete de morango para os dois. Ele fingiu esquecer a carteira em casa. Como ela já tinha dado duas lambidas na casquinha, não poderia devolvê-la ao sorveteiro. Teve então que desembolsar os trocados para quitar a dívida e não passar vergonha. Aquilo já deveria tê-la alertado sobre o caráter canalha do mancebo, mas ela fingiu não ouvir a intuição – ou mesmo o anjo da guarda, sei lá! – que lhe gritava sinais de alerta.<br /><br />No tempo dela, não havia essas normalidades de hoje, em que mulher paga a conta e tudo bem. Não. O tempo dela era outro; um tempo em que o cavalheirismo era tão comum quanto usar guardanapo de pano na mesa do almoço e do jantar de qualquer família remediada. <br /><br />Bons tempos, bons tempos…<br /><br />Mas não era disso que estava falando. Não quero aqui ficar emitindo nenhum juízo de valor. Meu desejo é apenas contar a história de uma mulher que se casou com um canalha no tempo em que a palavra canalha não podia ser dita na sala de visita de uma família.<br /><br />Após se encontrarem em uma barraca diferente a cada dia, ele lhe pediu para namorar. <br /><br />Ruborizada como uma virgem austeniana, ela aceitou, mas impôs a condição de que o jovem galante fosse pedir permissão à mãe viúva e aos três irmãos mais velhos, que moravam no casarão machadiano com ela.<br /><br />Ele foi.<br />Foi e enfrentou a nobre papada de bócio da viúva e as caras amarradas dos irmãos mais velhos, que mais pareciam três mosqueteiros retirados de um cais de porto qualquer, maltrapilhos e cheirando a peixe.<br /><br />Depois de um interminável interrogatório, os quatro decidiram que ele não era digno que ter a mão (e as outras partes do corpo muito menos!) da nobre donzela.<br /><br />O mancebo saiu de lá humilhado como contínuo de repartição pública quando vai pegar o salário no caixa.<br /><br />A Julieta tropical esperneou. <br />Chorou. <br />Gritou. <br />Ameaçou que se jogaria na frente do primeiro bonde que aparecesse (sim, no tempo dela os bondes ainda circulavam) e que também atearia fogo ao corpo, tal qual uma passional viúva italiana.<br /><br />De nada adiantou.<br />Nadica de nada.<br /><br />Os quatro juraram – solenemente – que ela só sairia de casa com aquele indivíduo por cima do cadáver de cada um.<br /><br />Eram quatro.<br />Ela apenas uma.<br />A enamorada fingiu se conformar, mas só depois de ter ficado quatro dias tomando água e comendo pão dormido como uma forma de autoflagelo indignado.<br /><br />Os irmãos e a mãe fingiram não ligar para os maus modos.<br /><br />Depois de quatro dias, já enjoada de pão seco e água de bica, largou o papel de mártir incompreendida e se atracou com um frango com quiabo e angu que a mãe havia preparado para o almoço. Fartou-se até lamber as pontas dos dedos.<br /><br />De bucho cheio, o pensamento é mais desanuviado, e ela começou a bolar uma maneira de ficar com o mancebo de quinta. Agora ficar com ele tinha um caráter de honradez, porque se eles, irmãos e mãe, pensavam que ela ficaria em casa limpando a baba de cada um até que a velhice se apresentasse, pois sim! Eles veriam do que ela era capaz!<br /><br />A escravidão do ego é a perdição da raça humana, já disse… quem mesmo? Ah, sei lá! Não importa.<br /><br />Mas onde estava mesmo? Ah, sim, lembrei!<br /><br />Pois foi assim que ela e o jovem Romeu decidiram marcar encontros na igreja, velha conhecida de todos os amantes incompreendidos por séculos e séculos, não é mesmo? É verdade… é verdade…<br /><br />Não foi diferente entre a quase madura donzela e o amásio. Lá se encontravam e arquitetavam um plano de fuga para que pudessem vivenciar aquele grande amor que se iniciou com a quebra de um roach.<br /><br />Cá entre nós, longe querer recriminá-la, mas ela bem que deveria ter se mancado de que uma pretensa história de amor que começa com a quebra de um roach – ah, vai me desculpar! – não poderia dar boa coisa não, <br /><br />Você não acha que estou certa? Pois sim!<br />Se ele era bonito?<br />Assim, assim…<br />Se você acha bonito galã de filme B mudo, tudo bem.<br />É como já dizia minha avó Cotinha: o que é de gosto é o regalo da vida.<br /><br />Agora tenho que confessar que o danado tinha lá seu quinhão de charme. Todo canalha tem charme, faz parte da genética do camarada ter um quê de charme. Ele era um Clark Gable fajuto. Usava um bigodinho que, para quem gostasse, tinha lá o seu encanto. Eu, particularmente, sempre fui mais um Gary Cooper ou então um John Wayne.<br /><br />Mas não sou eu a personagem da história, e sim ela, a pobre iludida que numa madrugada de garoa fina e constante fugiu pela janela do quarto levando três vestidos, duas meias, duas anáguas e um paletozinho de lã já desbotado, que já vira dias melhores.<br />Ele jurou de pé junto que iriam casar-se etc. etc. etc.<br /><br />Juras de amor para cá, juras de amor para lá, e em menos de vinte e quatro horas a enamorada já não era mais moça-donzela.<br /><br />Naquele tempo não era como hoje, não! Mulher direita tinha que permanecer direita até o último suspiro de vida, caso não arrumasse um pobre coitado para descansar o pé cansado e cheio de joanete.<br /><br />Mas sabe como é, a carne é fraca, a carência é grande e a pobrezinha caiu na lábia do canalha. Todo canalha tem uma lábia de que nem é bom falar, pode ter criança por perto nos ouvindo.<br /><br />Durante uma semana, os amantes desfrutaram do paraíso sem pensar que a serpente poderia aparecer a qualquer momento. No final do sétimo dia apareceu uma, aliás, apareceram três cobras-corais machos peçonhentas para desmanchar o ninho de amor e pecado dos pombinhos.<br /><br />Os irmãos parrudos, mal encarados e fedendo a peixe apareceram com garruchas em punho, exigindo reparação do rapto da ex-donzela. Não se sabe como eles conseguiram o endereço da pensão de quinta em que o jovem casal se hospedara em Petrópolis, mas conseguiram, e foi o maior fuzuê quando apareceram lá arrombando a porta e encontrando-os em trajes menores.<br /><br />Quer dizer, na verdade já sem traje nenhum, mas isso não é para a gente ficar falando em público porque não fica nem bem…<br /><br />Ao ver o casal tal qual Adão e Eva, os irmãos enfurecidos os levaram embrulhados em lençóis até a delegacia mais próxima e os forçaram a casarem-se na marra. <br /><br />O escrevente ainda tentou argumentar que a garota já não era menor, mas o delegado, pai de quatro filhas, resolveu aceitar as queixas e casou-os enrolados em lençóis baratos mesmo.<br /><br />Este foi o início martírio da pobrezinha. Sim, porque se fosse hoje em dia cada um desfrutaria dos pecados com outro e, depois, beijinho e tchauzinho. <br /><br />Uma pouca vergonha, é o que acho. <br />Você não acha?<br /><br />Mas, no tempo dela, casamento era para sempre, ou pelo menos até que a morte os separasse. Um tinha que aguentar o outro até o final, e a coitadinha ficou atrelada àquele canalha por anos e anos.<br /><br />Você precisava ver. Foram morar numa pocilga destas bem infectadas mesmo. Os irmãos não os aceitaram, mesmo tendo eles casados perante a Justiça. Não, não aceitaram, e os recém-casados foram morar numa cabeça de porco.<br /><br />Tudo bem que ela não vivia na abastança na casa antiga, mas também não estava acostumada à penúria que encontrou.<br /><br />Coitada… tsiu, tsiu, tsiu…<br /><br />Ela, justamente ela, que esperava casar de véu, grinalda, flores de laranjeiras e caminhada pela nave do Outeiro da Glória, acabou em Irajá.<br /> <br />Por favor, não estou aqui desprezando Irajá. Não é isso. Nestes tempos em que tudo tem que ser politicamente correto, não quero meu nome em bocas de Matilde, dizendo que estou menosprezando o charmoso bairro carioca.<br /><br />Não, não é isso.<br /><br />O que estou tentando dizer é que ela foi morar muito longe e em condições precárias porque, naquela época, Irajá era longe para dedéu e as condições de vida dos moradores eram uma vergonha para qualquer político com um mínimo de ética e responsabilidade.<br /><br />Entendeu?<br />Ah, então ‘tá.<br /><br />É preciso explicar mesmo porque senão a gente é logo acusada de …<br /><br />Calma, eu vou contar. Vou contar tudinho. Também você fica me interrompendo toda hora! Já disse que vou contar.<br /><br />Onde estava mesmo?<br /><br />Ah, sim, lembrei! Estava dizendo que ela casou e foi morar numa pocilga. <br /><br />Precisa ver… tsiu… tsiu… tsiu… Não é à toa que se chama aquilo de joelho de porco.<br /><br />Como? Ué, eu disse cabeça de porco, não disse? Disse joelho, é? Ah, mas você fica me interrompendo a toda hora, que fico atrapalhada! Afinal, você quer ou não quer escutar?! Então cale a boca e escute.<br /><br />Bem, voltando: ela foi morar na cabeça de porco e lá encontrou todo tipo de miséria e podridão. Ela era uma moça pobre, mas muito limpinha, e ir para aquele lugar fez com que ela envelhecesse em seis meses o que levaria dez anos se tivesse ficado na casa da mãe, em companhia dos irmãos mosqueteiros do cais.<br /><br />Logo embuchou. Acho que na primeira noite com o ainda não marido já pegou filho. <br /><br />Também pudera, você já viu canalha estéril? <br />Eu nunca vi. <br />Em todos estes anos de vida, nunca vi um canalha que não deixasse atrás de si uma penca de filhos pela cidade inteira e, quiçá!, até em outros estados e países. <br />Uma fertilidade a toda prova, isso sim!<br /><br />Depois de casado, já na primeira semana morando na pocilga, o canalha colocou as manguinhas de fora, e ela conheceu sua verdadeira face, que, apesar do charme, não era nada bonita. Só saía da cama depois do meio-dia, só chegava da rua com o dia claro, cheirando a bebida e a perfume feminino barato. Ela, que nunca precisou lavar uma meia, teve agora que virar lavadeira de roupa de cama, mesa e banho. <br /><br />O pouco dinheiro que conseguia, ele levava tudo para a farra e o jóquei. Ela no início até acreditou em suas palavras de que a sorte estava lhe sorrindo naquele dia e que ele acertaria o milhar na cabeça e eles iriam mudar-se e morar na rua principal do bairro, num sobrado que ele compraria e reformaria com a bolada.<br /><br />Mas os dias foram passando, e o grande amanhecer não chegava. As pernas inchavam cada vez mais, e as varizes começaram a aparecer. Quando o rebento nasceu, ela só tinha a companhia de outras lavadeiras na beira do córrego onde lhe fizeram o parto. Na verdade, era não um rebento, mas uma menina.<br /><br />Não gosto de falar mal de ninguém, cruz-credo de pecar contra um anjinho, porque afinal de contas toda criança é um anjinho com aquela carinha de joelho, né mesmo? Mas cá entre nós, que ninguém nos ouça, que criança feia aquela menina que ela pariu, hem? <br /><br />Cruz-credo!… Feia como a fome e a miséria que aquela pobre criaturinha teve que enfrentar, porque o canalha sequer deu uma olhada para a criança, que foi colocada num caixote de feira que lhe serviu de berço.<br /><br />E não é que a mulher ainda defendia o canalha no início? Dizia que ele era um incompreendido, que passou fome, que foi largado pela mãe quando criança etc. etc. etc.<br /><br />Agora me diga você: quantas pessoas você conhece que tiveram uma vida desgraçada na infância e mesmo assim se tornaram pessoas de bem?! <br />Uma porção, não é? <br /><br />Eu mesma tenho um primo de segundo grau que… <br />Está bem, está bem, vou voltar à história dela, mas depois não me deixe esquecer de contar-lhe a história do meu primo Valdemar, tá?<br /><br />Eu tenho a impressão de que ela o defendia assim porque ele era bom de cama. Só pode ser! Talvez ele nem fosse lá estas coisas, sabe-se lá! Mas uma mulher que conheceu os prazeres da carne tão tarde perde a cabeça quando descobre as doçuras de um chamego. Só isso pode explicar aquela defesa toda e ela se matar de trabalhar para sustentar a feia filha e o traste do canalha.<br /><br />Se digo que ela o defendia provavelmente por estar envolvida nos prazeres da carne é porque, nem bem pariu a feiazinha, ainda de resguardo, embuchou de outra.<br /><br />Para encurtar esta prosa, posso lhe dizer que foram cinco filhas, sim, tudo um bando de menina-mulher feia como a fome; uma seguidinha da outra, não dava nem tempo nem de respirar direito. Já embuchava no resguardo mesmo. Uma calamidade. Naquele tempo não havia estes remédios que o médico receita para evitar de as mulheres emprenharem, não. Mas sempre teve jeito de se evitar, né mesmo? <br /><br />Não estou dizendo que era para tirar o anjinho, mas que ele pelo menos não fizesse filha uma atrás da outra, ainda nem bem acabado o resguardo. Ah, isso ele não devia fazer não. Isso chega até ser pecado! É o que eu acho.<br /><br />Mas depois de quase quatro anos de casamento, quando estava nos últimos dias de dar à luz a caçula, a ficha dela caiu, como se diz hoje em dia, e ela viu que realmente tinha casado com um canalha, e a fantasia de que ainda viveria com ele um final feliz de filme de Hollywood foi por terra. Ela descobriu que tinha se casado com um bígamo e que não era sua primeira mulher. <br /><br />Você não acredita? <br />Pensa que estou enfeitando a história e transformando a vida dela num dramalhão de novela mexicana? <br />Pois sim! Antes fosse. <br /><br />A coitadinha sofreu o pão que o diabo amassou por três dias com o rabo. Passava fome, trabalhava igual a um burro de carga com as filhas agarradas à saia, tudo para não faltar o cigarro, o conhaque e o dinheiro do jóquei de Sua Alteza, o marido. <br /><br />E tudo isso por quê?! <br />Por quê? – pergunto eu. <br />Porque – eu mesma respondo – o canalha era bom de cama, ou melhor, ela é que nunca tinha desfrutado de uma boa f… quer dizer, não fica bem uma mulher, uma dama como eu, ainda mais na minha idade, ficar falando palavrão. <br /><br />Sou uma mãe de família, mãe amantíssima, segundo meu finado marido. Sim, aquilo é que era homem! Alfredinho chegava pontualmente todos os dias às seis horas da noite, tomava banho, comia uma papinha de batata com carne moída passada três vezes na máquina que eu lhe preparava e ficava vendo televisão até o sono chegar. Antes das dez horas da noite, já ia para a cama, onde sempre encontrava seu leitinho morno para acalmar a úlcera, que lhe escravizava a vida. Sua úlcera era tratada como gato siamês de grã-fina, tais eram o carinho e a atenção que ele lhe dedicava.<br /><br />Aquilo, sim, é que era marido! Não aquele canalha com quem ela se casou e que a fez parir cinco filhas feias como a miséria humana. Eu não estou aqui para julgar ninguém, afinal de contas nem é cristã tal atitude, mas… sabe que eu acho que ela bem mereceu? É triste dizer isso, mas quem mandou sair da casa materna? Quem mandou enfrentar os irmãos? Quando a cabeça não pensa, quem paga é o corpo, já dizia minha vó Mariinha.<br /><br />Ué, eu não posso ter duas avós não, é? Tinha uma que se chamava Cotinha e outra, Mariinha, dá licença, viu?<br /><br />Depois que ela ficou sabendo que era a segunda mulher do bígamo e que o canalha ainda se casou outras três vezes durante os anos que eles permaneceram juntos – em sua porta apareceram as outras mulheres mostrando as certidões de casamento fajutas, mas que todas acreditavam ter alguma validade perante a lei, os homens e Deus –, ela não se separou da criatura, apesar dos pesares.<br /><br />Uma decepção atrás da outra a fez envelhecer muito rapidamente. Ela, que nunca foi um primor de beleza, envelheceu em dez anos meio século, pareceu um maracujá de gaveta de tão murcho que nem valia a pena descasar e voltar para casa.<br /><br />Não quero falar nada não, mas acho que ela não voltou para a casa materna por orgulho. Sim, porque só o orgulho é que deve tê-la impedido de dar o braço a torcer perante a família. Ficaram velhos juntos, viram a filha mais velha morrer atropelada por um ônibus, três casarem com estivadores do porto e uma cair na vida. Quando ele morreu, no enterro não chorou. Não demonstrou nenhuma emoção por enterrar o pai de suas filhas e o genitor de tantos outros filhos que ela nem sabia quantos.<br /><br />Antes de descer o caixão, ao invés de jogar uma flor, como assim o fazem muitas viúvas, ela apenas juntou saliva na boca e lhe deu uma grande cusparada na portinha do caixão, onde fica o rosto, e disse em voz alta para todos ouvirem:<br /><br />– Vá para o quinto dos infernos, canalha!<br /><br />Uma triste história, não? Esta é a vida… A vida como ela é.<br />Nem todo mundo tem a sorte que tive em encontrar um marido como o meu Alfredinho. Aquilo, sim, é que era homem!<br /><br />Mas aonde você vai?<br /><br />Ainda é cedo. Eu ainda não contei o caso do meu primo Valdemar! Este, sim, teve uma história triste, mas com um final feliz! Sabe, quando meu primo Valdemar nasceu…Carla Giffonihttp://www.blogger.com/profile/12830433045746106919noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5411023288808529609.post-56161956971442044852012-01-07T04:24:00.000-08:002012-01-07T04:29:28.252-08:00MACHO ALFAAs mulheres estão aí, mostrando para o que vieram: dinâmicas, independentes, senhoras de si e do mundo. Mas, no que diz respeito ao quesito relacionamento com homens, tudo como antes no quartel dos Abrantes. A maioria se queixa de que falta homem no pedaço, que só encontra homem casado, que casais monogâmicos só vemos em novelas ou entre os que são homossexuais etc., etc., etc..<br /><br />Perfeitamente compreensível, já que as mulheres mudaram, mas os homens nem sempre. Acredito que os homens não sabem o que fazer com esta nova mulher. Afinal, foram milênios de comportamento feminino muito diferente do que vemos hoje. Não se iludam, meninos: as mulheres sempre comandaram o jogo, a diferença e que não era tão visível assim.<br /><br />Por isso, aqui vão algumas dicas do que uma parcela significativa de mulheres procura num homem. Não digo todas as mulheres porque sempre encontraremos as do contra. Além disso, nem todas são fêmeas alfas, e também porque não quero ficar aqui ditando regras e dizendo que sei mais do que qualquer um. <br /><br />Não é isso. São apenas – como direi? – sugestões para você encontrar uma garota legal e ser feliz para sempre, até que o massacre do dia a dia estremeça as bases do coração e chegue o tempo da famosa DROP – Discutindo a Relação Outra vez, Porra!<br /><br />Tenho cá minhas teorias sobre casais que dão certo. São apenas teorias, e nenhuma grande universidade como Oxford comprovou minha tese. Mas vamos lá.<br /><br />Na natureza temos os chamados machos alfas. A biologia diz que entre animais superiores – como leões, lobos, primatas – existe a figura do macho alfa, que é o líder. Segundo definição do site Wikipédia, este tipo de macho tem força, habilidade para caçar, facilidade de tomar decisões, personalidade marcante e bravura. O macho é acompanhado pela fêmea alfa e, juntos, demonstram sua autoridade. Ela é sua PARCEIRA.<br /><br />O problema é que cada vez mais mulheres estão se transformando em fêmeas alfas, e os homens… bem, os homens andam um tanto ou quanto perdidos perante esta nova mulher. “O que fazer?” – indagam-se alguns.<br /><br />Revisemos a definição encontrada no Wikipédia; também aproveitei para acrescentar alguns pontos que acho importantes:<br /><br />Autêntico – Se você não é um macho alfa, tudo bem. Afinal, não existem só fêmeas alfas. Mas, por favor, queeeeerido, nunca se faça passar por aquilo que você não é. A mulher, qualquer que seja a fêmea em questão (Alfa, Ômega, Beta ou mesmo Gama), logo descobrirá, fácil, fácil. Nenhuma pessoa consegue manter o personagem com a vivência dos dias.<br /><br />Eu não estou dizendo que por isso qualquer macho, de qualquer outra categoria, vá ter que amargar o resto dos seus dias sem uma fêmea do lado. Não. Cada chinelo velho encontrará o seu par num pé cansado. Você encontrará sua parceira. Acredite.<br />O que estou dizendo é que não dá para tentar ser macho alfa sem o ser. Isso os cafajestes é o que fazem e, COM CERTEZA, macho alfa não é cafajeste.<br /><br />É o líder – Uma amiga disse que leu não sabia onde de que o macho alfa tem uma mão que guia. Sempre. É verdade. Se o casal sai, ele sutilmente guia a mulher com as mãos nas costas ou no cotovelo ou, melhor ainda, na nuca. Macho alfa não deixa sua fêmea solta por aí, não; ele cuida do que é dele e pronto. Não de forma possessiva, ciumenta, dando vexame. Cuida com firmeza. Ele demarca o território com pequenos gestos como este. Acredite.<br /><br />Vaidade – Ok, macho é vaidoso. A natureza está aí para provar que o pavão tem toda aquela plumagem para atrair a fêmea. Certo. Concordo. Concordo, mas em parte. Estamos falando do macho alfa da espécie humana e como o homem não precisa mais comer como as mãos, semelhantemente aos demais primatas – já inventou os talheres e os pratos – poderá, por isso, demonstrar sua ‘plumagem’ de forma mais ‘amena’. O ‘homo erectus sapiens’ não precisa ser um pavão.<br /><br />Macho alfa não disputa com a mulher espaço no espelho. Seu porta-joias não será do mesmo tamanho que o da sua fêmea; na verdade, ele não terá porta-joias. Não precisará, porque não usa brinco(s), anel(is), pulseira(s), colar(es), tudo isso junto.<br /><br />Se ele usa creme, é por recomendação médica. Filtro solar, tudo bem; qualquer pessoa, de qualquer idade, deve usar desde o momento em que nasce. Gente com pele seca também, independente de ser macho ou fêmea.<br /><br />O que estou tratando aqui é do macho alfa: sua mão não tem esmalte (base), ele não rói unha. A mão pode ser bem cuidada, assim como os pés, mas por um podólogo, e nunca por uma manicure.<br /><br />Aí os vaidosos poderão dizer: <br /><br /> - Ah, mas se as mulheres conquistaram o direito de usar calças, os homens também podem usar joias e passar creme.<br /> <br />Tudo bem, também acredito nisso. Afinal, não é o buraco da orelha que dirá que um homem é macho ou não. Não é isso que estou dizendo, o que estou explanando é sobre o <br />MACHO ALFA, e macho alfa que se preza não usa isso não, vai me desculpar. Unhas grandes, nem pensar! E não adianta dizer que toca violão e por isso que as deixam grandes. Não. Macho alfa tem as unhas cortadas, limpas. Não precisam de mais nada.<br />Outra coisa, meninos, cuidado com o quesito perfume: tem mulher que gosta, tem mulher que não gosta e tem ainda as que são alérgicas. <br /><br />A dica: se você não conhece bem a mulher em questão, melhor ir aos primeiros encontros usando uma boa loção pós-barba e um desodorante sem odor. Fêmea que é fêmea adora cheiro de macho, seja ele de qualquer espécie, por isso confie no que dizem os antigos: um homem prevenido vale por dois.<br /><br />Força – Atenção, marombeiros de plantão: não se trata de força física exclusivamente, não, viram? Claro que é legal ter ao seu lado um macho que seja capaz de carregar uma escada para trocar a lâmpada da cozinha, mas não é apenas de força física que se trata aqui.<br /><br />Tem um poema de Vinícius de Moraes chamado ‘Para viver um grande amor’, que é lindo e ensina direitinho. Vininha (perdoe-me a familiaridade com que trato o poeta, mas a mim ele é muito caro e vêm daí essas intimidades que tomo) já escrevia: “Para viver um grande amor perfeito, não basta ser apenas bom sujeito; é preciso também ter muito peito – peito de remador.”<br /><br />Antes de mais nada, quero dizer uma coisa ao mestre: <br /><br />– A bênção, mestre, você faz uma falta danada!<br /><br />Voltando:<br />O que é peito de remador? Quem faz remo ou já reparou no peito dos caras sabe que é um peito largo. Um peito prontinho para que a fêmea alfa descanse a cabeça depois de um dia agitado, de preferência deitados numa rede. Nem precisa ser uma tarde em Itapuã, basta ter aquele peito, que na verdade pode ser fisicamente estreito, mas deve ser acolhedor. <br /><br />Entenderam, meninos? <br />Então tá.<br /> <br />Facilidade de tomar decisões – As mulheres estão cada vez mais independentes, após décadas e décadas de luta por isso. Quando se ventilou a primeira vez o voto feminino, já se tinham acumulado passado séculos e séculos antes que esta voz começasse a soar pelas cidades. Tantos anos de sofrimento não podem ser jogados ao ralo. <br /><br />Elas são, SIM, capazes de tomar conta de si mesmas, mas é muito bom saber que o macho alfa é o tipo de homem que ‘faz’. Não fica lá, parado como um palerma, esperando que tudo caia em suas mãos. O macho alfa tem facilidade de tomar decisões e mesmo quando ela, a fêmea, não precisa, é sempre bom contar com uma pessoa que sabe fazer.<br /><br />Personalidade marcante – O macho alfa não é palhaço, mas também não é aquele cara ranzinza para quem tudo está ruim: a cerveja, o perfume, a minissaia, o tempo, o time, o… a… São inúmeras as razões para o constante mau humor de certos homens.<br /><br />Bravura – macho alfa não é covarde. Mas também não é aquele tipo valentão que briga por tudo. Pit bull não é macho alfa e nunca será. Por favor: não confundam agressividade com macheza. Gente agressiva tem mais é que se tratar, buscar ajuda psicológica e/ou psiquiátrica, e usar remédio de tarja preta. Não é disso que estamos falando.<br /><br />Não ser covarde é muito mais do que simplesmente cair em qualquer briga de esquina. Na espécie humana, a bravura está em aceitar as suas próprias limitações e as dos outros também. É não se levar tão a sério, é ri de si mesmo.<br /> <br />Habilidade para caçar – Sabe por que o macho alfa tem habilidade para caçar? Porque ele tem ‘pegada’. Mas a tal decantada e famigerada ‘pegada’ de que tanto se fala é de difícil definição. É fácil sentir; facinho, facinho; mas é muito difícil definir. Se você não é mulher ou homossexual, não entenderá o que é uma verdadeira ‘pegada’, porque nunca sofreu uma. Pode ter até sentido uma ‘pegada feminina’, mas não é a mesma coisa, não.<br /><br />‘Pegada’ é uma firmeza que faz com que… ai, meu Deus, de repente ficou tão quente aqui, você não sentiu, não?!<br /><br />Bem, voltando – depois de tomar um litro de água gelada, apesar da baixa temperatura que vigora no céu –, a pegada é uma firmeza.<br /><br />Você conhece quando um homem tem ‘pegada’, na maneira como ele segura a mulher para beijar, antes mesmo de beijar. Ele puxa o rosto da mulher com as mãos espalmadas nas laterais de sua face. É a maneira firme como ele puxa o corpo feminino para ir de encontro do seu.<br /><br />Repito: não tem agressividade nessa puxada, tem firmeza, e a boca que vai ao seu encontro e beija é… ahhhhhhhhhhh, melhor deixar pra lá. Pode haver crianças por perto e não cai bem uma escritora como eu ficar descrevendo assim as intimidades próprias ou as das outras. Melhor deixar quieto.<br /><br />É como já dizia o sábio Vininha: “Mas tudo isso não adianta nada, se nesta selva oscura e desvairada não se souber achar a bem-amada – para viver um grande amor”.Carla Giffonihttp://www.blogger.com/profile/12830433045746106919noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-5411023288808529609.post-40458244667029350952011-12-29T14:09:00.001-08:002011-12-29T14:09:25.509-08:00NatalEu me lembro muito bem de um Natal. Foi o primeiro Natal de que tive consciência ser Natal. A árvore de plástico com algodão intercalado entre as folhas era armada na sala de visitas, as bolas coloridas dependuradas buscavam reproduzir alguma árvore de novela que minha mãe assistia na TV.<br /><br />Em todos os Natais lá em casa sempre teve rabanada. Meu pai era um grande aficionado pela guloseima e esperava o ano todo para comer a iguaria. Não adiantava fazer rabanada fora do Natal, ele não comia, não gostava. <br /><br />Só o Natal era capaz de temperar com fantasia, esperança e amor aquele pão com leite, açúcar e canela em pó.<br /><br />Eu me lembro muito bem desse Natal porque foi nele que ganhei um Ferrorama. Sempre me encantaram os trenzinhos que via nos filmes americanos. Vida de americano é uma coisa, vida de brasileiro é outra, mas o Papai Noel foi generoso naquele ano, e ganhei uma enorme caixa com trenzinhos, vagões e trilhos infinitos.<br /><br />Eu me lembro muito bem do contentamento que senti. Naquele momento compreendi a alegria que meu pai tinha por ser Natal e poder comer rabanada. Meu trenzinho também veio temperado com fantasia, esperança e amor, e eu sorria, sorria, sorria na fé infantil de acreditar que nunca deixaria de sorrir.<br /><br />Outros Natais vieram. Mas nunca mais um como aquele consegui viver. O trenzinho me acompanhou a infância inteira, mesmo depois de meu pai ter partido. <br /><br />Eu cresci. <br />Tive alegrias, tive tristezas. <br />A vida seguiu, e hoje quando no Natal tem rabanada lá em casa penso no pai. Penso na sua alegria infantil e sinto saudades. <br /><br />“Raiva de não ter trazido o passado guardado na algibeira”. <br />O poeta estava certo.Carla Giffonihttp://www.blogger.com/profile/12830433045746106919noreply@blogger.com0