sábado, 18 de setembro de 2010

Inveja

Ele estava deitado, apreciando o céu azul. Um papelão grosso era a cama, e o homem sujo, com barba quase chegando ao peito, desfrutava do sol de abril como se estivesse nas areias de Ipanema. O mendigo, de olhar perdido e pose de imperador intelectual, mirava fixamente a única nuvem que singrava a abóboda celeste, sem se dar conta de que estava no centro nervoso da cidade.

Pessoas passavam, algumas olhavam, outras – a maioria – já acostumadas com a miséria humana, sequer davam conta de sua figura ímpar, parecendo um profeta distraído na calçada, esperando a hora do juízo final.

Quem seria ele? Por que olhava com tanta atenção aquela nuvem que se instalara sobre o Largo da Carioca? O que ele via que os outros não viam? Por que os loucos e as crianças são sempre protegidos por Deus? Que Deus é esse que precisa protegê-los?

– ...Mas aí eu disse pra ele que não aguentava mais aquela situação e que era pra ele escolher entre eu e .... – falava uma morena baixinha para a colega alta.

– ... Eu já chegando. Não, pertinho, aqui no Largo da Carioca, me espera porque preciso .... – dizia ao celular um homem de terno.

– ... Mas, manhê, o meu pai disse que eu podia. A Sofia vai e... – reclamava a adolescente, arrastada pela mulher obesa.

Ele nada escutava. A nuvem no céu parecia ter-lhe mais importância do que todos aqueles dramas que passavam ao largo. Cada um carrega sua própria dor.

Quais eram as dores daquele homem invisível aos olhos dos outros? Será que tinha família, o que ele foi antes de ser mendigo? Um industrial que perdeu tudo? Um professor de filosofia que conjecturava a insuportável leveza do ser? Um funcionário público aposentado que fora vítima de todos os planos econômicos imputados à população? Será que ele tem o dom de falar com as nuvens? Será que elas respondem? Será? Tantos serás....

E o profeta mendigo continuava olhando aquela única nuvem, como se encontrasse ali todas as respostas que a humanidade sempre se fez e que sempre continuará se fazendo, pelo andar da carruagem.

Queria ser uma nuvem. Passear pelo céu sem a preocupação de ser mais nada. Apenas uma nuvem, semelhante a um algodão a singrar por ai. Ou, talvez (quem sabe?), o mendigo. Traçar um longo diálogo com o céu imperiosamente azul e desfrutar da vida assim, sem as amarras, sem ter que escolher entre uma coisa ou outra, desligado de qualquer compromisso a não ser aquele que traçasse comigo mesmo.

Invejo aquele mendigo.
Invejo aquela nuvem que corre o espaço ilimitado e indefinido onde se movem os astros.