quarta-feira, 5 de março de 2008

Nasci... (Capítulo 2)

Vovô Fausto, pai de mamãe, insistiu que a filha fosse ao médico da família. Sim, naquela época existia médico da família, que chegava em casa para ver o paciente, tomava café com leite e broa e no final consultava todos os membros, cobrando o preço de apenas uma visita. Bons tempos. Bons tempos. Tempos, como diria Nelson Rodrigues, do laquê em splay e em que o movimento de emancipação feminista ainda não tinha chegado à Barra Mansa.
Tenho que colocar uma ressalva aqui. Não era apenas mamãe e papai que eram descrentes do nascimento de um filho. Todos não levavam fé, e por isso, quando o médico chegou do simpósio, minha mãe marcou a consulta apenas por desencargo de consciência. Meu tio Plínio, seu irmão, ainda alertou:

- Vai, Carla (tenho o seu nome), pode ser um tumor. Nunca se sabe!

Ela foi, e o médico da família confirmou o que o doutor Eros já havia diagnosticado: era gravidez sim! O exame não deixava mentir.
Bem, a alegria se fez presente na família e, pelas contas do médico e de mamãe, a criança nasceria no final de março ou na primeira quinzena de abril, no máximo. Tudo leva a crer que eles (mamãe e o médico) calcularam errado o meu nascimento, pelo menos é o que imagino para errarem tão feio a data.
Os meses foram passando e minha mãe nada tinha do enxoval. Ela queria comprar todo ele no Rio de Janeiro e – como a criança nasceria apenas no final de março ou início de abril – dava tempo de esperar as férias de minha prima Fezinha (Letízia), que morava em Guaratinguetá, São Paulo, para que juntas comprassem o arsenal de macacõezinhos, mantas, roupas de cama etc. etc. etc. As poucas roupinhas guardadas eram as que haviam sido compradas por sua irmã, minha tia Tereza. Tudo em rosa, o que irritava minha mãe, pois a ultra-sonografia (sim, naquele tempo já existia esse exame, acredite!) já dissera que a criança que gerava era um menino. Já tinham escolhido até o nome do rebento: Paulo Marcelo (ou era Marcelo Paulo? Sempre me confundo com esse nome, mas enfim, você sabe que seria um nome duplo envolvendo um e outro).
Mamãe não se conformava com a teimosia da irmã.

- Tereza! A criança é homem!
- Não é. É menina.
- Mas Tereza, o exame deu que é homem! Você quer saber mais do que o exame?!
- Quero. É menina!

Não houve briga, porque o amor que as unia era mais forte do que tudo, mas mamãe contava o quanto ficou irritada com a tia Tereza devido a sua teimosia profética.
Tereza foi a primeira pessoa que acreditou em mim, antes mesmo de minha mãe. Não digo que mamãe e papai não tenham acreditado e me dado força durante o tempo em que estivemos juntos. Entendo suas crenças, afinal era a máquina dizendo, né? Como contradizer uma certeza absoluta? Eles estavam certos em acreditar na ultra-sonografia. Eu também acreditaria. Mas minha tia Tereza renegou todo o saber, todo o Lógos, e apostou no sensório, no Pathos, na emoção e na intuição, contradizendo todas as certezas absolutas dos homens e vendo e encarando a coisa pelo espírito. Quando todos diziam o contrário, ela acreditou na emoção.
Tereza era só emoção, uma alma generosa, amiga e que faltou apenas me parir, porque o resto todo ela fez por mim. Deus me abençoou com duas mães, só que mamãe foi embora cedo, para o andar de cima¸ infelizmente. Minha tia Tereza ficou comigo, me amparando, velando e incentivando ao longo da vida. Agradeço a Deus por isso, por ter me dado a oportunidade de ter convivido de perto com essas duas mulheres fortes, generosas, amigas e companheiras, que muito me ajudaram, que foram exemplos em minha vida.

terça-feira, 4 de março de 2008

Nasci...(Capítulo 1)

Nasci. Contradizendo todas as previsões dos médicos que examinaram minha mãe, nasci numa ensolaradamente quente tarde de 4 de fevereiro de 19.... (Ok, admito: como qualquer mulher não falo a minha idade). O médico tinha garantido à minha genitora que ela não poderia ter filhos devido a uma operação que fizera logo depois de casada. Mamãe sentia dores terríveis e em menos de 24h foi operada duas vezes. Como não foi encontrado em seu aparelho reprodutor nada que desse uma pista do porquê das dores, o médico decidiu cortar as trompas. Deixou apenas um pedacinho. Pedaço que, segundo ele, não lhe possibilitaria ovular e gerar uma criança. As chances eram tão mínimas, que ele foi categórico:

- Não poderá ter filhos.

Minha mãe contou que tal situação gerou muita dor a ela e à família inteira. Afinal, que recém-casada não gostaria de ter um bebê para acalentar nos braços?
Mas aí os dias foram passando, somando-se, transformando-se em anos, até que – passada uma década – um dia ela foi pegar um botijão de gás e sentiu umas dores fortes. O médico da família estava participando de um simpósio internacional e meu pai levou um outro lá em casa para examiná-la. Mamãe contava que o médico, apesar de formado, parecia estudante de medicina, cabelos negros como “a asa da graúna” e molhados como se tivesse acabado de sair do banho. Seu nome era doutor Eros e mais tarde ele se transformaria num dos melhores médicos da Região do Sul Fluminense. Ele a examinou e foi taxativo:

- Está grávida.

Minha mãe calmamente retrucou, sem acreditar por um só momento:

- Ah, é? Está bem.

Papai levou o médico para o centro da cidade de táxi – sim, nenhum dos dois tinha carro naquela época – e ao voltar para casa teve que ouvir o maior sermão da mulher.

- Onde já se viu, Gil (Gilberto era seu nome)?! Trazer um estudante de medicina para me examinar! Você sabe que não posso gerar filho!

Meu pai enfiou a viola no saco e concordou com ela. Afinal, durante todo aquele tempo eles tinham a certeza absoluta de que não poderiam gerar uma criança.