sábado, 5 de janeiro de 2013

O fim do mundo

É, o mundo não acabou.


Tobias, com a cabeça pesada de uma ressaca homérica, levanta-se no sábado, às 12h12, e tudo está igual ao dia de ontem. A torneira da pia da cozinha pingando ininterruptamente, a gritaria das crianças brincando na piscina do condomínio na maior arruaça, o filho metaleiro do 903 ensaiando em carga total, e ele mora no mesmo apartamento bagunçado de todos os dias. Quer dizer, não todos os dias, porque dona Matilde faz a faxina duas vezes na semana.

Ele acreditou que realmente o mundo acabaria na sexta-feira, dia 21.

O dia 21 veio.

O dia 21 ficou.

O dia 21 passou.

E agora o calendário marca o dia 22 de dezembro de 2012, e nadica das coisas ruins previstas aconteceu.

Quer dizer, tudo de ruim aconteceu, mas foi para Tobias: em primeiro lugar, depois de tomar alguns copos de uma batida chamada “pau na coxa”, ele deu um beliscão na bunda e lascou um beijo, de língua, no estilo desentupidor de pia, na secretária gostosa do chefe.

Não teria mal nenhum, se a criatura fosse desimpedida, mas corre à boca pequena que ela é teúda e manteúda do chefe, e quem se mete no terreiro alheio, principalmente quando o alheio é o chefe, é como se plantasse vento para colher tempestade.

“Maldita hora em que fui à festa de confraternização da firma”, pensa Tobias ao se olhar no espelho do banheiro e constatar uma gravata florida amarrada em sua cabeça, intensificando a dor que sente no crânio.

Tobias não pode garantir de quem é aquela gravata horrorosa. Ele jura de pés juntos que dele não é. Mas a infeliz está lá, e se ele chegou em casa e – o pior de tudo – dormiu com o bendito acessório masculino na cabeça é porque as coisas foram muito mais piores de ruins do que ele pensava.

“Ô, vida!!”, queixa-se.

Ao tentar utilizar o vaso sanitário, não pode: ele estava todo enxovalhado. Tobias supõe que, ao chegar em casa, tenha chamado o Raul, já que o entorno do vaso está todo emporcalhado. Uma nojeira só.

Quando está saindo do banheiro, buscando o outro, o da empregada, Tobias passa pela sala e lá encontra uma mulher esparramada no seu sofá. Ele chega perto e sacode a criatura, mas a garota aparenta ter morrido, de tão profundo que é o seu sono. A única coisa que mostra que ainda vive é o seu ronco, ainda mais potente do que a bateria do filho metaleiro do 903.

Tobias chega mais perto, para ver se reconhece a criatura, e constata, para seu espanto, que é a estagiária míope, que usa aparelho nos dentes e que tem pernas finas. Ela trabalha no setor de contabilidade, e todos a chamam de senhorita chata e certinha.

A senhorita chata e certinha não acorda nem por reza brava, por mais que o dono do apartamento a chame.

Ele insiste.

Insiste.

Insiste.

Insiste.

Desiste.

Nada vai acordar a criatura mesmo, nem uma chuva de meteoritos em chama, sequer o alinhamento de todos os planetas do sistema solar, ainda que isso tudo acontecesse ao mesmo tempo. A criatura ronca feio, e uma baba gosmenta escorre pelo canto da sua boca aberta.

“Como é que pode caber tanto ronco numa criatura tão franzina?” – questiona-se, enquanto caminha de volta para o banheiro.

Um banho deve melhorar o seu astral, porque o mundo não acabou, mas o hall de entrada do inferno Tobias deve ter subido, porque um calor descomunal impera; é como se o Tinhoso tivesse saído das profundezas e vindo morar na Cidade Maravilhosa. Tobias já não aguenta mais.

“Aqui só temos duas estações: a do verão e a do inferno”, sentencia, fazendo-se de vítima.

A água fria caindo no seu corpo é uma bênção, e ele quase sorri feliz. Não concretiza o sorriso porque a campainha da porta berra insistentemente, como se alguém quisesse tirar a família inteira da forca. Com tanto barulho, a dor de cabeça, que parecia querer ir embora, volta com carga total. Tobias, atrapalhado, sai do chuveiro com pressa de atender logo à porta, mas escorrega no tapetinho do banheiro, bate com a cintura no bidê e cai de bunda no chão.

“Já falei pra dona Matilde tirar este tapetinho horroroso daqui, mas ela acha que o apartamento é dela, e não meu. Que merda!”, reclama, xingando até a décima descendência da diarista.

A senhorita chata e certinha continua esparramada no sofá, sem se mexer um milímetro sequer. Tobias se atrapalha na hora de abrir a porta, porque o barulho infernal da campainha continua arrebentando seus tímpanos. Quando consegue destrancar a porta, abre-a de supetão e encontra ali parado em sua frente o ex-cunhado, Pedrão, junto com a mulher, o encapetado do Júnior e um carrinho contendo dois bebês gêmeos, de um ano.

– Cunhado! – grita, feliz, Pedrão, enquanto lhe puxa o corpo para dar-lhe um abraço de urso. O ex-cunhado e a família logo entram, sem ser convidados, rindo e fazendo mais barulho. Atordoado, Tobias não consegue falar nada, enquanto Pedrão não consegue deixar de falar.

– Eu, a patroa e as crianças decidimos vir passar o Natal e o Ano Novo com você. Afinal, o seu casamento com minha irmã acabou, mas você é meu brother e não vou deixar você passar essas datas festivas sozinho, não. Saímos lá de Botucatu para vir lhe fazer companhia, e nem precisa agradecer! – garante o ex-cunhado, já colocando as malas e as cuias na sala de Tobias.

O planeta pode não ter acabado, mas o mundo de Tobias acabou desde ontem.

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Arruda

Arruda é um ateu convicto. Daqueles que batem no peito e gritam para quem quiser ouvir, em alto e bom som:


– Este negócio de Deus não existe. É tudo besteira pra boi dormir! – diz, impávido colosso.

Contudo, Arruda não é um ateu comum. Ele tem algumas características inusitadas para quem bate no peito declarando-se ateu: Arruda é supersticioso. Sim, um supersticioso de carteirinha, com numeração superbaixa. Acredite se quiser.

Um primo meu – metido a intelectual – diz que quem é supersticioso é porque acredita que os objetos inanimados possam ter espíritos. Ora, como alguém que diz não acreditar em Deus e em coisas espirituais pode ter superstição, não é mesmo? Pois digo e repito, juro se for preciso: Arruda é supersticioso.

Passar debaixo de escada?

Nem pensar!

Dá gosto vê-lo correr como um corisco quando vê um gato preto!

Seu apartamento de quarto e sala no Centro da Cidade é todo decorado com enfeites de estátuas de elefantes, sempre posicionados com a tromba erguida e as costas voltadas para a porta da entrada.

Tudo isso tem um objetivo: evitar a falta de dinheiro. É bem verdade que ele vive pedindo dindim emprestado aos mais chegados, mas eu não estou aqui para falar mal de amigo.

E quando sua palma da mão começa a coçar?!

Nossa! Ele fica mais alegre do que pinto no lixo, porque tem a certeza de que ganhará dinheiro inesperadamente! Nunca ganhou, mas sempre acreditou.

Uma vez fomos almoçar e ele deixou cair um pouco de sal sobre a mesa. Você nem imagina sua cara de desespero. Imediatamente, Arruda começou a jogar o sal derramado pelos dois ombros. Como ele não lembrava se devia jogar pelo ombro esquerdo ou direito, jogou pelos dois, por via das dúvidas.

Quando perguntei o porquê do desespero, Arruda me contou que traz azar deixar o sal cair na mesa e que a pessoa que o derrubou deve jogar um pouco do tempero em um dos lados do ombro. O objetivo é espantar o diabo, que sempre fica à espreita, esperando pacientemente que o homem peque. Uma das jogadas do sal acertaria certamente o olho do Tinhoso, impedindo que o cramulhão viesse buscar sua alma pecadora.

Tenho que confessar que não entendi a lógica supersticiosa de Arruda, mas lógica e superstição são dois conceitos que não combinam, e não estou aqui para entender a mente humana, principalmente a mente humana de alguém como Arruda.

Agora, tenho que confessar: estou preocupado com o meu amigo. Afinal, o ano de 2013 está começando e, sinceramente, não sei como será a vida para Arruda. Veja você: o ano tem final 13, o calendário marca duas sextas-feiras 13 e, ainda por cima, tem o complicado mês de março, que tem os dias 3/3/2013 e 13/3/2013. São muitos números juntos numa cabeça tão supersticiosa.

No Natal, comprei os ingreditens necessários e montei dois kits de sorte. Na caixinha que dei de presente para Arruda, havia 13 objetos que, dizem os entendidos, dão sorte para quem os tem:

um pé de coelho,

um trevo de quatro folhas,

um quilo de sal grosso,

uma ferradura,

uma figa,

um olho de Hórus,

uma estrela de Davi,

13 fitinhas do Senhor do Bonfim devidamente benzidas,

um chaveiro de pimentas,

um pentagrama,

um olho de boi,

um patuá e

uma pedra de jade.

Arruda ficou emocionado com o presente e chorou cântaros de alegria com o que lhe dei.

Ah? Você quer saber o que fiz com o outro kit de boa sorte?

Bem, eu fiquei para mim.

Sabe como é, yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay.