quinta-feira, 3 de março de 2011

Cegueira

Todo dia é a mesma coisa. Ele chega, resmunga um bom dia e senta para tomar o café. Não me olha. Não me vê. Não me enxerga. Nunca.

Ele come sempre a mesma coisa, não muda. O café preto, amargo como a minha vida, tem que estar pelando. O pão, no saco da padaria, tem que estar ainda quente. O requeijão tem que ser sempre light, da marca mais cara.

Ele não vê nada.
Não enxerga nada.
Só lê o jornal.
O bendito jornal.

Seu silêncio me oprime, me comprime. Quero gritar, quero falar, quero... nem sei bem direito o que quero, mas tenho certeza do que eu não quero e não quero este silêncio.

O dia amanhece e nunca traz novidades. Mesmo no domingo, tudo é o mesmo, só mudam os horários das refeições.

Seu silêncio nada me diz. Eu também não digo nada. Vivemos assim, envolvidos numa nuvem taciturna. Sinto que a vida parou aqui dentro.

Ele continua a ler, entre um gole de café e uma mordida no pão com requeijão. O jornal não traz notícias minhas. Mas ele continua a ler. Um desespero e uma impotência invadem meu peito. Não sei o que fazer. Não sei de não saber.

Ele levanta da mesa e abandona o jornal, migalhas espalhadas sobre a toalha, um resto de café sobra na xícara. São os rastros que ele deixa. A tampa do copo de rejeição permanece no piso de ladrilho. Ele não se digna a abaixar para pegá-la. Ele arrasta a cadeira e sai apressado. O mundo o chama lá fora. O mundo, vasto mundo.

Eu fico. Oprimida no rastro do seu silêncio. As migalhas permanecem sobre a mesa. Migalhas, como a minha vida.



Nota da autora: este texto faz parte projeto COTIDIANO - LIVRO DE CONTOS.