quinta-feira, 27 de março de 2008

Destino

Shirley Terezinha tinha acabado de sair da igreja. O bispo garantiu que Paulo Marcelo estava endemoninhado e, por isso, a largou. Ela acreditava porque apenas o demônio, o Belzebu das profundezas mais profundas, poderia ser o único responsável pelo sumiço de seu grande amor. Um romance “muderno” que nasceu nas páginas de um site de relacionamento virtual, mas nem por isso menos verdadeiro. Shirley Terezinha desde que o amado tinha ido embora, há cerca de três semanas, já não era mais a mesma: triste, moribunda, avessa ao sol... justo ela que sempre ficava debaixo do Astro Rei pegando uma cor na laje, como se fosse uma nova Garota de Ipanema, só que do subúrbio. Ela, que nunca foi de ficar agarrada a nenhuma figura religiosa, agora só vivia de joelhos pedindo a tudo que era santo, de todas as religiões e mesmo até das seitas, que fizesse Paulo Marcelo voltar para sua cama, quer dizer, para sua rede virtual. Mas ele sumiu, não deixou recado, não responde mais as mensagens que ela manda para sua caixa postal. Sumiu, escafedeu-se, evaporou, virou pó nestas intricadas veredas cibernéticas. Desesperada, Shirley Terezinha saiu da Pavuna para a igreja que disseram ser um porrete: uma que fica na Rua São Clemente e que todo dia tem milagre. O Filho de Deus e seus anjos batem o ponto no local e diariamente cego começa a enxergar, pederasta vira homem, prostituta se transforma em santa e matador de aluguel vira pastor. Uma glória só! Afinal, atinou Shirley Terezinha, se tantos milagres destes calibres podem acontecer, por que Paulo Marcelo não poderia voltar, não é mesmo? Ao sair da igreja, a enamorada sofredora ainda carregava o coração pesado com medo de que as orações do bispo não fossem suficientes. Afinal, como o líder religioso bem ressaltou, Belzebu em pessoa estava administrando e tecendo uma teia maléfica em torno do seu amado, fazendo a separação de ambos. Distraída, Shirley caminhou uns 100 metros e chegou ao ponto do ônibus. Com os olhos vagando, deu de cara com um cartaz que dizia o seguinte: “Mãe Sílvia: jogo de búzios, cartas, tarô. Trago a pessoa amada em três dias”. A última frase saltou aos olhos de Shirley Terezinha porque era isso que ela queria. Era o prazo máximo que conseguiria ficar separada de seu grande amor, o único de sua vida, de sua longa existência cheia de vazio e uma pilha de carnês de prestações da Casa Bahia para quitar. Discretamente, tirou o papel da conta da Light que deveria pagar naquele dia e escreveu o endereço e o telefone com o que tinha restado do lápis de olho que estava quase no final, perdido no fundo da bolsa. Olhando para os lados, para ver se algum “irmão” da igreja estaria presenciando que ela estava copiando o endereço da vidente, Shirley Terezinha rabiscou confiante de que tomava a melhor solução, pois problemas extremos merecem remédios também extremos e cavalares. O consultório ficava na Zona Oeste, em Jacarepaguá, e o percurso seria longo, muito longo, principalmente para quem saiu de casa às 6h. Mas tudo “vale a pena se a alma não é pequena”, como estava escrito na traseira de um caminhão de mudança que ela viu tempos atrás. Shirley Terezinha decidiu apostar e pegou o ônibus que a levaria para a solução definitiva do grande impasse de sua vida: a volta triunfante de Paulo Marcelo para sua existência, mesmo que esta fosse apenas virtual. Ao subir para o ônibus, vários lugares estavam vazios, mas ela optou – sabe-se lá Deus o porquê - de sentar ao lado de um rapaz de boné vermelho e com a camisa do Flamengo. Ela nem era muito ligada a estes tipos de coisa, times, jogos, bola e trave. Mas, por força do destino, Shirley Terezinha ficou ao lado de Davideslon. O rapaz foi o primeiro a puxar conversa ao notar que cada vez que passava um poste, Shirley meio que se inclinava para ver os cartazes pregados. É que durante todo o percurso, os anúncios xerocados de Mãe Sílvia infestavam a trajetória. Conversa vai, conversa vem....Shirley Terezinha descobriu que Davideslon era um motoboy sem moto, pois trabalhava com veículo da empresa. Que morava no subúrbio como ela, pertinho de sua casa, na Pavuna, mas que ambos nunca tinham se cruzado. Coisas do destino. Foram se conhecer na Zona Sul, quando Shirley Terezinha procurava a Mãe Sílvia. A empatia entre os dois foi forte e gratuita. Um ficou à vontade na companhia do outro, apesar de Shirley não ter tido coragem de confessar que estava indo para Jacarepaguá em busca de uma mãe-de-santo. Disse apenas que estava passeando pelas redondezas, sem ter nada o que fazer. Deixando esta brecha, Davideslon a convidou para almoçar na casa de sua madrinha, que morava na Freguesia. Ele ia visitar a Dinda no seu dia de folga. E foi assim que Shirley Terezinha deixou de lado a idéia original de ir procurar a vidente e trazer o grande amor de sua vida de volta: Paulo Marcelo. O destino se encarregou de trilhar outros caminhos em sua linha da vida.

domingo, 23 de março de 2008

O homem que não refletia

Já se passaram muitos e muitos anos desde a última vez que decidi não me olhar mais no espelho. Ainda era um moleque de calças curtas quando resolvi que nunca mais veria a própria imagem refletida. Desde então, tenho me mantido fiel a esta resolução.
Durante todo tempo, sinto na pele que os anos transcorreram devido os olhares dos outros. Hoje, sei que sou mais velho porque garçons, porteiros, o jornaleiro e minha empregada - ou mesmo qualquer transeunte na rua - me chamam de “senhor”.
Poucos sabem que não me olho. A maioria deste pequeno grupo que tem conhecimento da decisão que tomei, pertence à minha família. São primos, primas, tios e tias mais velhos, poucos da nova geração estão conscientes de que recuso a me olhar. Eles só descobrem o fato quando alguém mais velho do clã – um primo ou tia que primam pela ironia e o deboche – querendo assustar a figura mais jovem, logo dizem que sou vampiro e que, por isso, não posso ver a minha imagem refletida no espelho. Bobagens, tento não ligar. Contudo, me incomoda profundamente quando um adolescente me olha de esguelha com um olhar ao mesmo tempo de fascínio e medo, dividido na incerteza gótica de um romantismo pós-moderno. Criei a fama, agora deito na cama, conforme diz o ditado. Aliás: obrigaram-me a deitar.
Nunca senti falta de me olhar. Acho que sou igual àquela pessoa que acorda um dia, e ao ver um bife diz: não estou com vontade de comer carne. Passam-se os anos e não se dá conta que os dias foram se somando, transformando-se em meses, e os anos em décadas.
Porém, não olhar a própria imagem, tenho que admitir, causa pequenos transtornos. O pior que enfrentei foi quando ainda era jovem, e não tinha pêlos suficientes para compor uma impávida barba. Coisa de adulto: serrada, cheia, criada com o acúmulo dos dias. Com a chegada da idade, o que era antes um tufo aqui e outro ali, se transformou numa respeitável, primorosa e densa floresta negra que foi se modificando também, aos poucos, e hoje está dividida entre a brancura do algodão e o cinza das asas de um pombo. Resultado: hoje, vou a um barbeiro mensalmente para apenas aparar a barba, não deixando que cresça no estilo selvagem. Sempre quando estou na sua cadeira, fecho os olhos e deixo ser cuidado por suas habilidosas mãos profissionais.
Mesmo não me olhando no espelho, consigo chegar a esta conclusão apenas olhando para os pêlos do meu peito, vejo a textura de minha pele. Não preciso ver minha imagem refletida para ter consciência de que a velhice se instalou completamente.
Uma vez me perguntaram, era uma estudante de psicologia com pretensões filosóficas, se não querer me olhar era uma forma de fuga freudiana. Como pouco entendo sobre Freud e suas teorias edipianas ou não, nada respondi. O que sei, e isso posso garantir, é que passo muito bem a minha vida sem querer me ver. Leio muito e os livros refletem as imagens que quero enxergar. Não preciso de espelho para ver o mundo e a mim mesmo.
Dizem as más línguas que sou anti-social. Pode ser. Não levo muito a sério, pelo menos tento não levar, as opiniões que os outros têm de mim.