sexta-feira, 29 de abril de 2011

ABISMO

Todo dia é sempre a mesma coisa. Chego à cozinha e ela já se encontra lá. Cabelo desfeito do sono, camisola amassada, rosto inchado, parece que veio direto da cama.
Chego e falo bom dia, e ela nada responde. Me olha. Apenas me olha, com aquele olhar escuro de poço sem fundo. Já me perdi naquele olhar. Evito olhá-la de frente, não quero mais me perder naquele abismo que ela carrega e em que por muitas vezes me precipitei.

Ela me olha, insiste no olhar, e adagas invisíveis vão perfurando meu corpo. Sinto, mas finjo não sentir.
Como.

Como sempre a mesma coisa que ela coloca na mesa.
O café tem gosto de requentado.
Ponho pouco açúcar, minha vida não é nada doce.
O pão ela sequer tira do saco da padaria.
É sempre o mesmo requeijão sobre a mesa.
Odeio requeijão, mas como mesmo assim.
Ela não sabe dos meus gostos.
Ela esqueceu os meus gostos.
Ela é quem gosta de requeijão, não eu.

Eu a vejo de esguelha, encostada na pia e de braços cruzados, esperando.
Esperando não sei o quê.
Nunca soube.

Ela me olha, não desgruda os olhos de mim, e busco no jornal uma proteção, uma barreira que me impeça de ser vítima do seu precipício.
Eu a vejo.
Eu a enxergo.
Mas não quero ver.

Leio o jornal, mas as letras se embaraçam, as frases ficam soltas, e não consigo entender.
Não entendo nada.
Minha vida é um nada.

O bendito jornal é um escudo que me protege a cada manhã.
Seu silêncio me massacra, me mata. Quero gritar, quero falar, quero... Eu sei o que quero e o que eu não quero, e não quero mais este silêncio e o seu olhar de juiz a me julgar toda manhã.

O dia amanhece e tudo é igual. Dia após dia, tudo se repete.
O sol não traz novidades.

Seu silêncio acusador – não consigo entender. Ela não diz nada. Eu também nada digo, e assim somam-se os dias, intercalados com noites melancolicamente sombrias. Vivemos assim e sinto que a vida parou dentro de nós.

Eu continuo a ler o jornal. Ao abrir o copo de requeijão, a tampa escapole e voa para o ladrilho.
Não me abaixo.
Não quero sair da proteção do escudo do jornal. Continuo a ler, sem entender. Não entendo nada.

Um desespero vem me subindo, chegando ao peito e trazendo um gosto amargo à boca.
Não sei o que fazer.
Não sei.

Levanto depressa em busca de respostas no mundo. Arrasto a cadeira, saio e deixo-a parada na pia, com os braços cruzados, me olhando, me acusando, querendo uma resposta que não tenho para dar.
O precipício me chama, e fujo.
Fujo desesperado para o mundo.



Nota da autora: Este conto faz parte do projeto de um livro de contos chamado COTIDIANO. São ao todo quatro contos: ACORDAR, CEGUEIRA, ABISMO e DORMIR. Para melhor compreender o total da obra, sugiro que leia as quatro histórias nesta sequência.

DORMIR

A claridade da luz artificial da rua invade o quarto através das persianas, mostrando o contorno de um corpo na cama. A porta do quarto é aberta lentamente e em seguida fechada. Pés descalços caminham e seguem até o banheiro. A luz é acessa. O chuveiro é ligado. Ouve-se a porta do boxe sendo fechada. Silêncio. O chuveiro é desligado e a porta do boxe é aberta. Pés caminham em direção ao quarto, formando pequenas poças no tapete. A luz difusa do banheiro projeta uma sombra do corpo que caminha em direção à porta do guarda-roupa, que é aberta. A mão tateia, procurando a camisola no meio da pilha de roupas. O roupão é jogado no piso. As mãos vestem a camisola. Pés caminham em direção da cama, mãos levantam o edredom, e o corpo se deita. Silêncio. O corpo vira, e dois pares de olhos se encaram na penumbra do quarto iluminado pela luz do banheiro e pela claridade artificial da rua. Silêncio. A mão toca a pele da coxa do outro corpo devagar. Silêncio. Os corpos se aproximam. As bocas se buscam. Silêncio. Os corpos se enroscam. Mãos tiram as roupas com avidez. Silêncio. Ouvem-se respirações entrecortadas. Silêncio. Um gemido. Silêncio. O barulho dos corpos se chocando é ouvido. As respirações tornam-se mais apressadas. Dois longos gemidos inundam o ambiente. Silêncio. A luz do banheiro ilumina a cama desfeita. O corpo levanta e pega a camisola do chão. Mãos vestem a camisola. Pés caminham até o banheiro. A mão desliga a luz e os pés voltam para a cama. O corpo deita-se. Silêncio. Um ronco suave ouve-se no ambiente. Dois olhos olham para o teto. O ronco baixinho continua a ecoar no quarto escuro. Um suspiro profundo se ouve também.

Nota da autora: Este conto faz parte do projeto de um livro de contos chamado COTIDIANO. São ao todo quatro contos: ACORDAR, CEGUEIRA, ABISMO e DORMIR. Para melhor compreender o total da obra, sugiro que leia as quatro histórias nesta sequência.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

SUMIÇO

Um dia ela se levantou e quando se olhou no espelho notou que o olho direito tinha sumido. Simplesmente sumido de sua face branca. A sobrancelha ainda estava lá, mas o olho e os cílios não. Olhou intrigada para a face refletida no espelho. Ainda tentou procurar pelo chão do banheiro o órgão perdido, mas não encontrou. Pensou que talvez o gato o tivesse arrancado no meio da noite e ela, que tem sono profundo, sequer tivesse notado.

Procurou o bichano, mas ele estava calmamente refestelado na sua almofada predileta e mal lhe deu atenção.

Como farei para sair? Os outros vão notar que meu olho sumiu! Ai, meu Deus, justo o meu olho tinha que sumir?! Justo ele?!

Deus não lhe deu nenhuma ‘pelota’ e ela se conformou com ir para o trabalho sem o olho direito.

Que falassem, pensou, dando de ombros.

Saiu à rua e ninguém a parou. Ninguém sequer olhou para sua falta de olho. As pessoas passavam por ela, mergulhadas nos seus próprios problemas, e ela ficou ainda mais espantada com a nova situação. Afinal, perder um olho, ainda mais o direito, não é algo tão comum assim. Mas ninguém, ninguém mesmo a olhou, e ela seguiu para o trabalho sem causar nenhuma controvérsia entre os transeuntes.

Ah, mas no trabalho eles vão notar que perdi o olho. Do jeito que a rádio corredor é, rapidinho vão notar – pensou, conformando-se.

Passou pela portaria, pegou o elevador, subiu quinze andares e em nenhum momento uma alma sequer notou que seu olho direito estava faltando. Nada. Nenhum comentário. Nenhum disse-me-disse. Nada. Nadica.

Mas que coisa!

Quando chegou ao escritório de contabilidade ninguém a olhou também. Ela começou a ficar espantada porque inicialmente pensou que todos fossem notar a ausência do globo ocular. Mas ninguém falou nada.

Os dias foram passando e ninguém a olhava. Ela bem que tentou chamar a atenção se vestindo com roupas extravagantes, pintou o cabelo de vermelho pica-pau, as unhas ficaram verdes e azuis, os lábios roxos, tirou a sobrancelha. Nada adiantou. Ninguém a olhava. Quer dizer, teve uma vez que ela bem notou que a Terezinha e a Gertrudes olharam para o seu sapato de pele de oncinha falsificada, mas para o rosto, nada.

O sapato sequer serviu de comentário entre as duas, foi só uma olhadinha rápida dessas que a gente dá quando o ônibus passa depressa em frente ao outdoor: não causa espanto, e a curiosidade não precisa ser satisfeita, de tão efêmera que é.

E assim os dias foram passando, formando meses, tornando-se anos, e ninguém olhava sua falta de olho. Um dia ela acordou, depois de mais de trinta anos, e encontrou seu olho grudado numa fresta, atrás da porta. O gato já tinha morrido havia muito tempo e hoje ela morava sozinha com um vira-lata sem as pernas traseiras.

O globo ocular deve ter rolado enquanto ela dormia, caído e se escondido numa fresta que ninguém notou. Ainda era o mesmo, ou quase. O tempo passou e ele estava cheio de teias de aranha, muito sujo, um pouco arranhado, mas ainda era o seu olho.

Quando ela encontrou o olho direito, primeiro levou um pequeno susto, desses que a gente tem quando acha uma coisa há muito perdida. Depois olhou profundamente seu olho, deu um pequeno suspiro, levantou da cadeira, foi ao banheiro e jogou o olho na privada, dando a descarga em seguida. Deu de ombros e seguiu a vida, o resto de vida que ainda tinha.