quinta-feira, 28 de abril de 2011

SUMIÇO

Um dia ela se levantou e quando se olhou no espelho notou que o olho direito tinha sumido. Simplesmente sumido de sua face branca. A sobrancelha ainda estava lá, mas o olho e os cílios não. Olhou intrigada para a face refletida no espelho. Ainda tentou procurar pelo chão do banheiro o órgão perdido, mas não encontrou. Pensou que talvez o gato o tivesse arrancado no meio da noite e ela, que tem sono profundo, sequer tivesse notado.

Procurou o bichano, mas ele estava calmamente refestelado na sua almofada predileta e mal lhe deu atenção.

Como farei para sair? Os outros vão notar que meu olho sumiu! Ai, meu Deus, justo o meu olho tinha que sumir?! Justo ele?!

Deus não lhe deu nenhuma ‘pelota’ e ela se conformou com ir para o trabalho sem o olho direito.

Que falassem, pensou, dando de ombros.

Saiu à rua e ninguém a parou. Ninguém sequer olhou para sua falta de olho. As pessoas passavam por ela, mergulhadas nos seus próprios problemas, e ela ficou ainda mais espantada com a nova situação. Afinal, perder um olho, ainda mais o direito, não é algo tão comum assim. Mas ninguém, ninguém mesmo a olhou, e ela seguiu para o trabalho sem causar nenhuma controvérsia entre os transeuntes.

Ah, mas no trabalho eles vão notar que perdi o olho. Do jeito que a rádio corredor é, rapidinho vão notar – pensou, conformando-se.

Passou pela portaria, pegou o elevador, subiu quinze andares e em nenhum momento uma alma sequer notou que seu olho direito estava faltando. Nada. Nenhum comentário. Nenhum disse-me-disse. Nada. Nadica.

Mas que coisa!

Quando chegou ao escritório de contabilidade ninguém a olhou também. Ela começou a ficar espantada porque inicialmente pensou que todos fossem notar a ausência do globo ocular. Mas ninguém falou nada.

Os dias foram passando e ninguém a olhava. Ela bem que tentou chamar a atenção se vestindo com roupas extravagantes, pintou o cabelo de vermelho pica-pau, as unhas ficaram verdes e azuis, os lábios roxos, tirou a sobrancelha. Nada adiantou. Ninguém a olhava. Quer dizer, teve uma vez que ela bem notou que a Terezinha e a Gertrudes olharam para o seu sapato de pele de oncinha falsificada, mas para o rosto, nada.

O sapato sequer serviu de comentário entre as duas, foi só uma olhadinha rápida dessas que a gente dá quando o ônibus passa depressa em frente ao outdoor: não causa espanto, e a curiosidade não precisa ser satisfeita, de tão efêmera que é.

E assim os dias foram passando, formando meses, tornando-se anos, e ninguém olhava sua falta de olho. Um dia ela acordou, depois de mais de trinta anos, e encontrou seu olho grudado numa fresta, atrás da porta. O gato já tinha morrido havia muito tempo e hoje ela morava sozinha com um vira-lata sem as pernas traseiras.

O globo ocular deve ter rolado enquanto ela dormia, caído e se escondido numa fresta que ninguém notou. Ainda era o mesmo, ou quase. O tempo passou e ele estava cheio de teias de aranha, muito sujo, um pouco arranhado, mas ainda era o seu olho.

Quando ela encontrou o olho direito, primeiro levou um pequeno susto, desses que a gente tem quando acha uma coisa há muito perdida. Depois olhou profundamente seu olho, deu um pequeno suspiro, levantou da cadeira, foi ao banheiro e jogou o olho na privada, dando a descarga em seguida. Deu de ombros e seguiu a vida, o resto de vida que ainda tinha.

Um comentário:

VIVER COM ARTE disse...

É Carla, às vezes nos preocupamos muito com nossa imagem e com o que os outros podem vir a pensar. Esquecemos que muitos vivem com menos e em situações limítrofes. Gosto da ideia do despojamento,do não mais precisar de algo que parecia imprescindível, mas me preocupa como estamos nos tornando displicentes para o que realmente importa. Parabéns, aprendo muito com seu modo de escrever. Boa semana. Elaine Spani