sexta-feira, 4 de outubro de 2013

O palco e eu

Minha relação com o teatro começou muito, muito cedo. Desde que pisei no colégio, já me voluntariei para participar de algum evento que tivesse que ir à frente declamar meia dúzia de versinhos.

Era sempre uma das primeiras a levantar a mão, toda contente e feliz. Sou uma exibida, admito, e sempre gostei de aparecer sob as luzes da ribalta.

Lembro até hoje um dos muitos versinhos que declamei nos áureos tempos infantis. A primavera estava chegando, e o colégio promoveu uma grande atividade entre todas as séries, para saudar a estação das flores. Na minha turma, a professora deu para cada aluno que quis participar um pedaço de uma árvore. Para mim caiu a folha, e lá fui eu, toda vestida de verde e com dois pedaços de papel crepom recortados em formato de folhas.

Na mão esquerda, uma folha amarela e, na direita, uma verde. Lembro como se fosse hoje que eu, alegre e saltitante, fui à frente, toda exibida, dizer os seguintes versinhos:

– Sou a folha, sou verdinha, sou verdinha (mostrava o papel crepom verde), mas quando fico velha (escondia o papel crepom verde e mostrava o amarelo), fico toda amarelinha!

Foi a glória!
Fiquei quase uma semana junto com minha tia-avó, carinhosamente chamada de Dindinha, ensaiando para não fazer feio à frente de colegas, professores, minha mãe e do pastor da congregação — eu estudava num colégio metodista.

Dedicação total durante sete dias, até encontrar o tom ideal para declamar os tais versinhos primaveris. Não é para me gabar, não, mas acho que Meryl Streep não se dedicou tanto a uma performance como eu.

É bem verdade que minha diretora teatral era uma mistura de Stanislavski e Zé Celso, com uma pitadinha de Gerald Thomas. Dindinha era rigorosíssima e não aceitava menos do que a perfeição. O resultado: fui ovacionada em cena aberta! Pelo menos, é assim que me lembro.

Depois, o palco do colégio já era pouco para o meu grau de exibição. Já estava maior, tinha uns 12 anos, quando ingressei no primeiro grupo de teatro amador em Barra Mansa. Dos 12 aos 25 anos fiz teatro amador, participei de festivais (fui até cotada como finalista para ganhar o prêmio de melhor atriz; não ganhei, mas não me importei. Já valeu ter concorrido!); atuava em peças nos colégios e onde quer que nos chamássemos, no estilo mambembe mais legítimo. Era ótimo, e aprendi muito a compartilhar e a escutar o outro.

Foram vários grupos de que participei: nóS OS nus , que brincava com o título ao escrever a palavra SOS, grupo Granada, Getape e Gatson (não me lembro dos significados das siglas) e, por último, participei de algumas oficinas dadas no Sesc Barra Mansa.

Teatralmente, foi a melhor época de minha vida, porque tive professores como Luciano Maia (professor da Unirio), Roberto Lima (bailarino e professor da Escola Teatral Martins Pena), Zé Luiz, Carlos Pimentel, entre outros.

Formamos uma turma boa e unida. O Luciano, que na época morava na Urca, abriu a porta de seu apartamento para a trupe de jovens alunos barra-mansenses, que eram apaixonados por teatro. Era tão bom! Guardo nas dobras do coração a felicidade que sentia quando andava por aquelas ruas da Urca, principalmente a Ramom Franco.

A gente comia macarrão com salsinha, jogava ImaginAção e Batalha Naval e era feliz, muito feliz naquele quarto e sala. Eu sempre precisei de pouco para ser feliz, já naquela época.

Durante a vida inteira, eu pensei que, quando crescesse, seria médica.
Uma vez, minha professora de português no ginásio determinou que cada aluno deveria entrevistar um profissional cujos passos quisesse seguir, então fui entrevistar o médico de minha família, o dr. Eros.

Naquela época, tinhamos um gravador da National portátil, e fui munida com o aparelho e diversas perguntas – não sabia que isso era uma pauta. Quando mostrei o trabalho, a professora primeiro não acreditou que euzinha tivesse tido a ideia e elaborado as perguntas.

Ela disse que podia contar a verdade, porque não tiraria ponto do meu trabalho. Eu garanti a ela que tinha feito tudo sozinha, e ela insistiu, ainda não acreditando. Para dona Efigênia – este era o seu nome –, eu tinha tido ajuda de algum adulto, tipo minha mãe ou pai. Jurei de pés juntos que tudo saiu da minha cabeça, e aí dona Efigênia, depois de um minuto de silêncio, olhando dentro dos meus olhos, perguntou com voz mansa:

– O que você vai ser quando crescer ? (Eu tinha dez anos.)
– Vou ser médica! – disse, com o peito retumbante de orgulho.

Mais trinta segundos de silêncio, e ela profetizou:

– É, mas você poderia ser jornalista.

Quando ouvi suas palavras, fiquei indignada, como se a mulher tivesse me chamado de rameira ou algo que o valha. Naquela época, ser puta era ofensa.

Então quando, anos depois, na casa do Luciano, dei por mim e descobri que não queria ser médica, mas, sim, mexer com o teatro, foi uma grande descoberta. Sim, porque até então eu não encarava o teatro como algo que pudesse ter como profissão, era apenas algo que me fazia feliz e realizada. Parece coisa de maluco não associar felicidade e realização com profissão, eu sei. Mas não fiz esta associação até passar os finais de semana no apartamento do Luciano.

Resultado: resolvi fazer a prova para artes cênicas na Unirio. O Luciano ainda não tinha feito o concurso para a faculdade federal.

Escolhi para a prova prática a peça de Jean Genet As criadas. Eu e mais três amigos da trupe do Sesc de Barra Mansa prestamos vestibular para teatro. Fizemos duas provas: uma de conhecimento geral (matemática, física, português, biologia etc.); outra de conhecimento cultural (com nomes de diretores, dramaturgos, cineastas etc.); depois fizemos o teste de improvisação e, por último, uma cena escolhida previamente pelo aluno.

Como a vida inteira estudei para ser médica, meu nível de conhecimento era bom o suficiente para passar sem dificuldade; também passei bem na prova de conhecimento cultural.

O problema começou com a prova de improvisação, que foi até razoável, pelo que me lembro, mas a apresentação da cena da peça de Genet foi um desastre. O nervosismo me tomou a alma. Quando saí da sala onde me apresentei aos professores, o Luciano disse que eu estava amarela, com os lábios roxos.

Resultado: não passei, e foi um momento muito triste e decepcionante para mim. Chorei horrores, acho que chorei todas as lágrimas de minha adolescência e juventude e, tive o colo amoroso do Luciano, do Roberto, do Zé Luiz, da Kátia (que era coordenadora do curso do Sesc de Barra Mansa na época) e do Pimentel.

Chorei.
Chorei.
Chorei.
Chorei.
Chorei.

Os três amigos de Barra Mansa que fizeram a prova comigo todos passaram, e aí me senti pior ainda. Alegre, porque eles tinham passado, mas infeliz, por não poder vir para o Rio.

Hoje entendo que, realmente, mesmo que tivesse passado, não conseguiria me mudar para esta cidade que amo. Ainda tinha ‘toco de vela’ pra queimar em Barra Mansa.

Ao voltar para minha cidade, fiquei sem saber que rumo tomar, porque já tinha perdido a ilusão infantil de que queria ser médica; o teatro tinha me rejeitado, e eu ia fazer o quê? Foi aí que minha tia Tereza sugeriu que fizesse uma faculdade em Barra Mansa mesmo. Fui para a Sobeu (era o nome da faculdade na época; hoje se chama Centro Universitário de Barra Mansa), e lá tinha várias cadeiras: Direito, Enfermagem, Jornalismo, Letras, Administração etc. Fiz o vestibular outra vez e passei com uma boa colocação.

Naquela época, o aluno entrava na faculdade, fazia o primeiro ano básico e depois, dependendo da pontuação, poderia escolher a cadeira que quisesse. Ele podia escolher três cadeiras, como primeira, segunda e terceira preferência: meu primo Renno sugeriu que eu fizesse Direito. Mas eu fui categórica:

– Renno, eu nunca vou aprender a fazer direito. Já nasci torta, não tem jeito.

Ele pensou que eu estivesse brincando, mas era verdade.
Minha primeira escolha foi Jornalismo, a segunda opção foi Letras e, para fazer a vontade do meu primo, incluí Direito como terceira opção. Culpa dele. Mas acabei passando para Jornalismo, já que tive notas legais no ciclo básico.

No primeiro dia de aula da cadeira de Jornalismo me apaixonei. Foi mesmo paixão à primeira vista. Rendi-me completamente e fui entusiasmada por todo o curso, que durou quatro anos. Antes do término do primeiro período já estava trabalhando na área. Era repórter política de um jornal semanário. Desde que comecei a atuar no jornalismo, sempre escrevi sobre política.

Amo escrever sobre política. Adoooro entrevistar políticos, ir para câmaras e assembleias legislativas! Adoro mesmo, do fundo do meu coração. Vale ressaltar que não sou filiada a nenhum partido político e sequer digo em quem voto.

Tem gente que não entende o meu amor por escrever sobre uma categoria profissional tão escorraçada no Brasil. Digo que amo e explico:
A política é um grande teatro. Tem o ator principal, tem o vilão, tem o pícaro, a mocinha, a mulher fatal, tem tudo que é personagem, e o melhor de tudo é que quem hoje faz o papel do mocinho pode se transformar em vilão amanhã! Nada é fixo, é tudo variável, é mutante. Uma grande encenação, uma grande arena, no melhor e no pior sentido.
Minha visão da vida é teatral.

O teatro está dentro de mim, mesmo que eu não pise mais num palco interpretando algum personagem. Hoje eu escrevo sobre eles, os personagens. Sou jornalista e também escritora e estou entrando na seara do audivisual como roteirista.

Hoje eles, os personagens, povoam minha mente, minha vida. Basta ir ao meu blog literário para ver que o que escrevo é verdade. Lá estão os vários personagens que criei: tem Carnegão, que é apaixonado por Ritinha; tem também Matilde e Donana, que buscam uma viúva no velório sem saber quem é ela; o Adão, que acha que se casou com a mulher perfeita; o Tuninho Hilário, que sofre porque ninguém o leva a sério.

São mais de oitenta textos criados.
Meu pacto com a fantasia é grande. Muito grande.

Na verdade, meu pacto com a fantasia é enorme mesmo; contudo, reconheço que este pacto é grande por causa da palavra. Se o teatro descobri aos cinco anos, quando entrei para o colégio, a palavra eu descobri um pouco antes. Antes mesmo de saber ler.

Lá em casa, sou filha única e sempre via os adultos lendo muito. Eu queira a atenção egoística infantil e sempre encontrava alguém com a cara enfiada naqueles objetos pesados ou mesmo numa folhas grandes que mais tarde vim a saber que eram os jornais.

Lembro-me de uma vez em que estava sentada na varanda da casa do meu avô, segurando um livro grande e pesado dele. Vô Fausto era farmacêutico e tinha uns livros pesados, com pouquíssimas figuras e que ele vivia lendo.

Lembro-me de estar usando um vestido azul-marinho que pinicava a pele; eu odiava a roupa, mas minha mãe me obrigou a usar. Lá em casa criança não tinha querer.

Se fechar os olhos, posso sentir o peso do livro nas minhas pernas gordinhas e a enorme curiosidade que sentia por descobrir o que tinha naquele negócio, aqueles sinais esquisitos (mais tarde descobri que eram letras) que faziam com que o pessoal da minha casa não me desse a atenção que eu queria.

O resultado disso é que, quando fui para o colégio, já sabia escrever meu nome inteiro – e ele é grande; sabia contar de um a cem; sabia formar pequenas palavras, como ‘ovo’,  ‘papai’, ‘mamãe’, ‘mala’,  ‘casa’, ‘rosa’ etc.
Meu amor pela palavra começou aí.

Eu me lembro muito bem que numa ocasião…
Bem, mais isso é outra história.

Carla Giffoni é jornalista, com 18 anos de atuação em jornais, rádio, TV, revistas e internet. É graduada em Comunicação Social/Jornalismo pelo Centro Universitário de Barra Mansa; fez também Letras/Formação de Escritor na PUC-Rio; tem pós-graduação em Jornalismo Cultura (Estácio) e atualmente faz uma segunda pós-graduação, em Roteiro para Cinema e TV (Universidade Veiga de Almeida). Tem um blog no Recanto das Letras (www.recantodasletras.com.br/autores/carlagiffoni), onde escreve ficção e faz análise literária de diversos autores e/ou obras. Carla está para lançar seu primeiro romance e também está escrevendo, no momento, uma peça teatral.

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