sexta-feira, 4 de outubro de 2013

O avesso do avesso

Ele nasceu com a alma pelo avesso.
Melhor dizendo, sua alma era o avesso do avesso.
Ninguém nunca notou qualquer diferença quando era um rosado bebê. Mesmo durante a primeira infância, nada se notava. Mas sua alma era o avesso do avesso, e carregaria esta sina até o final dos seus dias.

Foi só a partir dos dez anos que os primeiros sintomas começaram a surgir. Ele era um tanto ou quanto diferente dos outros meninos de calças curtas. Sim, no tempo dele, os guris tinham que vivenciar um rito de passagem ao usarem a primeira calça comprida, sinal de que já eram homens.

A primeira a notar que sua alma era o avesso do avesso foi uma menina de longas tranças negras, que usava pesados óculos de grau. Foi ela quem lhe disse, na sua sapiência dos sete anos, que ele era diferente e que não queria brincar com ninguém tão estranho assim.

Aquilo machucou seu ingênuo coração, porque na verdade o que ele queria era ficar próximo daquela menina que lhe despertava sentimentos inusitados no peito.

Seu coração batia num compasso diferente e ele intuía – já naquele tempo – que aquele modo de bater não era normal. Séculos e séculos de cultura judaico-cristã incrustada no seu dia a dia fizeram aquele pobre garoto temer ir para o inferno de Dante antes mesmo de conhecer o bardo italiano.

Ele crescia, e seu coração batia descompensado, já que trazia a alma pelo avesso do avesso. Em vão ele tentou esconder sua condição. Sempre tinha um infeliz – talvez um feliz, não sei dizer – que conseguia enxergar a índole precária do seu princípio vital.

A família já desconfiava, principalmente sua Dindinha, mas todos fingiam – ou talvez não quisessem enxergar – que ele era um ser normal. Mas não era. Nunca seria.

O tempo foi passando, e, na primavera da vida, inseguro como todos os que passam pela estação favorita dos amantes, ele tentou de todas as maneiras “desvirar” a alma e fazê-la ser igualzinha a tantas outras. Foi a um Pai de Santo, buscou os Orixás, fez regressão a vidas passadas, pediu ajuda aos padres, depois aos pastores, jogou tarô, leu todos os livros de seitas espiritualistas e até de deuses astronautas.

Não satisfeito, fez análise com um renomado e caro psicólogo, mas nada, absolutamente nada adiantou. Seu destino não era ter um âmago comum. Ele teria que passar na vida pelo ônus e pelo bônus de carregar o avesso do avesso da alma.

Já adulto, conformou-se com a situação e buscou viver a vida de maneira mais próxima do dito normal.

Trabalhou num emprego público.
Namorou.
Estudou.
Amou.
Desamou.
Amou de novo.
Brigou.
Fez as pazes.
Xingou.
Casou.
Veio o primeiro filho.
Depois o segundo.
No total foram seis.

Os netos chegaram, e durante todos esses anos teve que conviver com a alma desregrada, sem temperança, imoderada e descomedida. Às vezes esquecia que trazia consigo o avesso do avesso na alma, mas aí acontecia alguma coisa insignificante que o lembrava de sua condição.

Hoje é um senhor que caminha pelas ruas de uma grande metrópole neste vasto mundo de meu Deus. Os mais jovens não sabem dizer o que o torna tão diferente, se o sorriso largo, se a voz grave e baixa, se a presciência no olhar.

Mas notam-lhe um diferencial.

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