quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Carnegão

Carnegão não nasceu Carnegão. Tinha um nome digno de cantor romântico de rádio: Marcos Antonio de Oliveira Sá.

Bonito, não? Mas aí a vida fez com que se tornasse um Carnegão. Desde pequeno, feio, mirrado, canela fina e com tendência constante a pequenos tumores na pele amarelada, logo que foi visto pelo avô – que vivia encostado nas paredes de tanto beber – foi batizado com o infeliz apelido. Pegou na hora, e o rebento teve que levar a alcunha pelo resto dos seus dias.

Não importava o lugar: na vila, no colégio, no trabalho e mesmo entre a família, quem buscasse por Marco Antonio de Oliveira Sá não encontraria; mas, se falasse em Carnegão, todos logo sabiam de quem se tratava.

Carnegão era um rapaz esforçado, de pouco estudo, é bem verdade, mas com boa vontade para o trabalho. Mesmo franzino, não recusava serviço, fosse leve ou pesado. Era um bom rapaz.

Um dia conheceu Maria Rita e se entusiasmou com a moça. Não que Ritinha fosse uma belezura. Não era feia, é preciso que se diga, mas também estaria mentindo se dissesse que ela poderia concorrer a uma vaga em qualquer concurso de Miss, ainda que fosse dessas competições de clube de interior. Mas, comparada a ele, era um pitéu de formosura.

Carnegão ficou entusiasmado quando notou que Ritinha retribuía o seu olhar numa festa de Santo Antonio. Mas cadê coragem para chegar perto e se apresentar à donzela de fita rosa nos cabelos? Vixe! Só mesmo com a ajuda de outro santo, Santo Expedito, o das causas impossíveis, ele poderia se aproximar e dizer:

- Olá, sou Carnegão.

Era um nome muito feio para apresentar a uma lindeza daquelas. O apelido estava tão entranhado nele, que Carnegão esquecia que na verdade seu nome era Marco Antonio. Quando se lembrou disso, a festa já estava no final, e Ritinha tinha ido embora fazia tempo.

- Mas também, mesmo que me apresentasse como Marcos Antonio, ela logo saberia que eu me chamo Carnegão. Alguém com certeza iria contar para ela o meu apelido infame – pensava com seus botões o apaixonado.

Carnegão decidiu tomar coragem e se aproximar da garota, mesmo assim. Ritinha era a única filha de uma família de nove irmãos. A caçula era o xodó do pai, que trabalhava na estação de trem. Alguns irmãos tinham se mudado para a capital, mas ainda sobrava um grupo grande de machos protegendo a donzela da família.

A mãe de Ritinha era dona Milu, uma rezadeira dessas que só se encontram no interior, capaz de sarar qualquer tipo de doença com sua reza forte. Uma carola que vivia na igreja e se dizia Filha de Maria, apesar de o padre Euséquio não olhar com bons olhos suas rezas avulsas para a população.

Carnegão tentava se aproximar da garota, mas sempre acontecia alguma coisa que o impedia de ter a primeira prosa com a amada. As roupas humildes também não ajudavam muito, mas o enamorado nunca foi de fugir de uma labuta.

Por isso, começou a frequentar com mais constância as missas de padre Euséquio. Ritinha vivia grudada na mãe quando ela ia à igreja. A donzela não mostrava tanta intimidade com os sacramentos como sua genitora, mas era uma maneira de sair de casa e da vigília constante do pai e dos irmãos.

Foi nessas visitas à Casa de Deus que Carnegão, com a ajuda de um moleque, começou a trocar bilhetinhos com Ritinha. Mesmo com a letra feia e mal ajambrada, ele escrevia horríveis versos de amor que encantavam a garota.

O avô de Carnegão tinha sido caminhoneiro nos seus bons tempos e sabia de cor e salteado todos tipos de frases que enfeitam as placas das traseiras dos caminhões. Com esse repertório, Carnegão foi conquistando pouco a pouco a afeição de Ritinha. Detalhe: ele nunca assinava, mas ela sabia quem era o seu trovador predileto, apesar dela não ter nenhum outro.

Depois de quase dois meses nessa lenga-lenga de bilhetinhos para cá, bilhetinhos para lá, Ritinha e Carnegão se encontraram atrás da igreja, num sábado em que se realizava o casamento da filha do coronel Soares.

A cidade inteira estava presente, e Carnegão se esforçou, é preciso ressaltar, para causar uma boa impressão. Mas, coitado!, o paletó xadrez, puído na gola e no punho direito, não ajudava muito. O pior era a água de colônia, comprada de um mascate: custou-lhe os olhos da cara, mas o mau cheiro rescendia a léguas e léguas. O cabelo parecia que a vaca tinha lambido; o mesmo mascate lhe vendera uma pomada capilar para tentar amansar os fios rebeldes, porém, em vez de melhorar a aparência, piorou.

Mas como o amor é cego, Ritinha não notou nada disso. Excitada pelo primeiro encontro formal com o trovador amado, se descuidou e o pai percebeu quando ela saiu sorrateiramente da igreja. Seu Rutinho Condutor, como era chamado o pai da donzela, logo que viu o casal já foi levantando a voz e tomando satisfação.

Nem bem Carnegão tinha dado boa noite à amada, o pai apareceu com seu olhar de quem estava prestes a capar um porco. O rapaz, de uma palidez amarelada, ainda tentou articular algumas palavras, mas seu Rutinho não lhe deu a menor atenção.

- Ca... ca... calma seu Ru-ru-Rutinho, eu... euu... eu... te-te-tenho bo-bo-bo-boas in-in-in-ten-ten-intenções com a Ri-ri-ri-Ritinha, eu ju-ju-ju-juro!

- Quem você pensa que é para se aproximar assim de minha filha?! Ritinha é uma garota de família, tá entendendo?! – gritava, indignado, levando a filha pelo braço.

- É... é... é claro que Ri-ri-Ritinha é de fa-fa-fa-família, é por isso que te-te-te-tenho in-in-in-ten-ten... intenção se-se-se-séria com ela, quero ca-ca-ca-casar de pa-pa-pa-papel pa-pa-pa-passado – argumentava o jovem, que se tornara gago de repente.

Seu Rutinho parou, olhou para trás com olhar de desprezo e perguntou:

- Você?! Quem você pensa que é?! Qual é o seu nome?!

- Me... me... me... chamo... Car... car... car... Carnegão – disse humilde o Romeu apaixonado.

O olhar de desprezo cresceu, e Ritinha em prantos viu quando o pai disse:

- Carnegão?! Francamente! Vê se vou dar minha única filha para um infeliz que ainda por cima se chama Carnegão! Vá procurar alguém de sua laia e deixe minha filha em paz! – disse, arrastando a Julieta caipira, que tentava resistir à braveza do pai, sem sucesso.

Carnegão ficou ali parado, olhando seu amor ir embora pelas mãos do crápula do pai. A dor que sentiu pela separação poderia facilmente constar em qualquer peça de Shakespeare, mas, com um nome como o dele, dificilmente seria personagem do bardo inglês.

Desesperado, tropeçando na própria desgraça, seguiu para casa, até que no meio do caminho encontrou o avô, que lhe tinha dado o maldito apelido. Ele estava na birosca do seu Capão e, pela primeira vez na vida, o neto lhe fez companhia na bebedeira. Tomou de tudo, vinho, cerveja, pinga, conhaque e por pouco não pediu álcool puro para servir com a caipirinha.

O que Carnegão queria realmente era afogar a mágoa, o ressentimento, a vergonha de ser o que era, alguém indigno do amor de Ritinha. O que ele falou na birosca, o jovem nunca lembrou. O que comprou também não era capaz de relembrar, mas, ao acordar no dia seguinte, com uma enorme ressaca, tudo estava diferente.

Despertou com a porta esmurrada pelo avô e seu Zequinha. Mal a abriu e foi abraçado e chocalhado para tudo que era lado. O que eles diziam Carnegão não atinava, não fazia sentido. A cabeça doía mais do que tudo, e parecia que o coração tinha tomado o lugar do fígado, de tanto que este palpitava. A boca, ah a boca, meu Deus, que gosto horrível! Por isso os gritos entusiasmados de seu vô, que pela primeira vez na vida não estava bêbado, não faziam sentido, nenhum sentido.

Vendo que o neto não conseguia entender o que dizia, o vô de Carnegão decidiu preparar uma receita de levanta defunto. Como bebedor-mor da cidade, ele, mais do que ninguém, sabia como curar uma ressaca rapidinho, rapidinho.

Carnegão, depois de beber a gororoba, vomitar até acabar com toda bílis do organismo, sentou-se à mesa, então o avô e seu Zequinha lhe deram a notícia que mudou sua vida completamente.

O jovem não se lembrava de nada, isso o preparado do avô não foi capaz de restaurar, mas lhe disseram que ele tinha ganhado uma bolada na loteria federal, sozinho.

- Mas como? – perguntou Carnegão, admirado.

- Ontem, na birosca do Capão, o Zequinha aqui apareceu com o último bilhete da loteria federal, e lá naquela arruaça toda você, dizendo que desgraça pouca era bobagem, comprou com seus últimos tostões o bilhete. Hoje, o Zequinha viu que o número sorteado era o mesmo que ele tinha vendido a você, meu neto. Tu ‘tá rico! – anunciou o avô, rindo e batendo no ombro de Carnegão.

- Isso mesmo, Carnegão! Você agora é um homem rico, muito rico! – festejava o vendedor do bilhete.

- Vá lá buscar o bilhete, vá, Carnegão. Busca lá, pra gente conferir – mandou o avô.

Carnegão, ainda não acreditando na boa sorte, foi buscar o paletó puído e no bolso interno descobriu realmente um bilhete da loteria federal. Ao olhar aquele mísero papel em suas mãos, não acreditou.

- Uma nova vida! Não serei mais um simples Carnegão – murmurava baixinho consigo mesmo. Caminhou até a cozinha, e o avô e seu Zequinha viram o bendito papel.

Todos se abraçaram, festejaram e gritaram felizes.

Na mesma hora, Carnegão foi para a praça, tomou o táxi do seu Jonas, o único veículo da cidade, e foi junto o avô para a capital, em busca do dinheiro.

Enquanto isso, Ritinha, em sua casa, não tinha dormido a noite inteira, chorando, desgostosa do amor perdido. Não queria saber de comer, nem de beber. Uma tristeza de dar dó.

Quando a cidade amanheceu e a notícia se espalhou, seu Rutinho não acreditou na própria sorte, ou melhor, no próprio azar. Ele, que poucas horas antes, tinha escorraçado o infeliz, agora não só amargurava tristeza da filha, como também a perda de um genro milionário. Ritinha ficou de mal com o pai e, quando soube do ocorrido, aí e que não quis mesmo falar com seu Rutinho.

A cada dia que passava, chegavam notícias do milionário caipira. Seu Jonas ligava todos os dias para a família e contava da vida de Carnegão, das roupas novas, dos perfumes caros, do hotel de seis estrelas em que estavam hospedados. Seu Jonas foi contratado como chofer particular de Carnegão, ou melhor, Doutor Carnegão, como agora era chamado por todos.

A cada notícia, Ritinha ficava mais triste. O amor dela era verdadeiro, tanto que ela se interessou mesmo antes de ele ter ganhado toda aquela dinheirama. A pobre donzela chorava sem parar.

- Agora, na capital, Carnegão nem se lembrará de mim. Perdi meu trovador milionário – dizia, chorando para dona Milu, numa tristeza só.

Dois meses depois, Carnegão voltou à sua terra. Quando a mulher do seu Jonas contou que o novo milionário chegaria no dia seguinte, a cidade inteira se preparou para recepcioná-lo. O prefeito mandou chamar a banda municipal, as crianças do grupo escolar prepararam versinhos para recitar, o coral das Filhas de Maria cantou louvores e não havia um só estabelecimento comercial que não ostentasse em sua porta uma faixa de boas-vindas.

Carnegão, quando viu a festa em sua homenagem, não soube num primeiro momento como se comportar, mas ele já tinha aprendido o poder que o dinheiro tem e, estufando o peito, no seu melhor terno de giz riscado, sapato italiano e gel importado nos cabelos, abriu um sorriso de superioridade e desceu do luxuoso carro.

Para encurtar essa conversa, vamos aos finalmentes. Na festança, seu Rutinho, pelo intermédio do padre Euséquio, puxou uma prosa com Carnegão, ao pé do ouvido. Pediu desculpas. Alegou que perdeu a cabeça quando viu um desconhecido conversando com a filha querida, pediu desculpas outra vez, disse que, depois, com a cabeça fria, ficou sabendo que Carnegão era um rapaz direito, de família, trabalhador, pediu desculpas novamente, garantiu que a porta de sua casa estava aberta ao amigo, caso quisesse aparecer para comer uma broa com café que Ritinha preparava como ninguém, “muito melhor do que a mãe”, ressaltou o arrependido pai da Julieta caipira.

O Romeu milionário fez cara de tédio, fingindo que pouco escutava, mas o coração caipira ainda batia por sua amada.

No fim das contas, em menos de seis meses, o casal de pombinhos já estava casado, na igreja e no cartório. Festança igual nunca se viu. Nem o casório da filha do coronel Soares foi igual em boniteza. O pai da noiva estava mais feliz do que pinto no lixo. Ai de quem não tecesse elogios superlativos ao genro amado! Logo era escorraçado de seu círculo de amizade.

A vida de Carnegão mudou completamente em menos de três anos. Todos agora o chamavam de Doutor Carnegão. Tornou-se empresário de sucesso, candidatou-se para deputado federal e saiu vencedor. É feliz no casamento com Ritinha. O avô mora com o casal, e a harmonia impera no lar. Há poucos dias nasceu seu primeiro filho-homem. O avô quando viu o rebento, logo tratou de batizá-lo:

- É Carnegão Júnior!

4 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom Carla...criativo,engraçado,
parabens!!!
Stella

Anônimo disse...

Parabéns pelo artigo.
Saúde e sucesso !
Antonio Carlos Rocha

Daniel Moraes Giffoni disse...

PRIMA!

Parabéns! gostei muito da tragetória de Carnegão!
Vou aguardar pelos próximos contos.

om beijo!

Daniel Giffoni

Fanzine Episódio Cultural disse...

DECLAMANDO

Eu era um cara normal
Mas, no momento em que te vi,
Descobri que a poesia não era um sonho,
Uma fantasia, tampouco uma miragem.

Ela sempre existiu em seu sorriso,
Em sua simpatia,
Nos seus abraços,
No piscar dos seus olhos...
Em cada batida do seu coração.

Se me tornei assim, eu confesso: sou poeta,
E quero morrer escrevendo,
Lendo, declamando:
Minha linda e eterna poesia.

* (Agamenon Troyan)