quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Conversa no elevador - Episódio: Natal

Vigésimo segundo andar. Um casal de idosos entra no elevador.

- .... aí eu disse para ela que neste Natal eu não vou ficar me matando na cozinha enquanto a belezoca da Zumira fica na sala como se fosse uma visita muito importante! Eu, não. Nunca mais.

O marido abre a boca, mas logo é interrompido pela mulher.

- Onde já se viu! Lembra do ano passado, quando a Ruth foi fazer as compras para a ceia às seis horas da tarde?! O peru ficou um horror, com gosto de sangue na boca, lembra?! – olha para o marido com impaciência – Você nunca lembra de nada mesmo, né, Adamastor? – diz bufando.

Adamastor mais uma vez tenta responder, mas é interrompido novamente pela mulher.

- A palhaça aqui este ano está aposentada, isso eu garanto! – diz indignada.

O marido dá um longo suspiro. A mulher olha para ele com raiva.

- Não acredita, não?! Pois eu garanto que este ano serei visita na casa da Ruth, não moverei uma palha. E não adianta você querer chegar mais cedo para ver o jogo na TV a cabo, que só sairemos de casa depois das nove horas da noite, talvez só depois da novela! Onde já se viu! Todo ano é assim, eu e Isabel nos matamos na cozinha, a Ruth correndo igual a uma barata tonta, deixando para comprar tudo na última hora, e a lindeza da Zumira lá no bem-bom! O pior é que traz aquelas pragas de netos, filhos e noras que não têm nenhuma educação!

O marido olha para visor e nota que estão na metade do caminho. A mulher continua com sua metralhadora giratória.

- Lembra que no ano passado a neta da Zumira chegou para a ceia com um tipo mal encarado? Lembra? O rapaz era todo tatuado e cheio de… como é mesmo o nome daqueles negócios que as pessoas dependuram na orelha, nariz, colocam na boca? Como é o nome, Adamastor?!

Adamastor arrisca falar, mas é mais interrompido pela mulher:

- Você não sabe de nada mesmo, né, Adamastor?! – diz, bufando – Bem, não importa. Você sabe do que estou falando. Sinceramente, eu não sei por que hoje isso 'tá na moda. Uma perdição, isso sim. Artista faz isso porque é artista, quer chocar, e aí vem um Zé Ninguém e faz o mesmo. Ridículo, isso sim! Todo mundo agora quer ser artista hoje em dia.

O marido olha para o relógio e depois confere o visor do elevador. Faltam quatro andares. Dois segundos de silêncio.

- Ah, não me deixa esquecer de comprar as passas para a farofa e o arroz à grega, viu, Adamastor?! Não vai esquecer, 'tá? No ano passado você não me lembrou e ficou faltando a ameixa preta e a dondoca da Zumira logo disse que…

O elevador chega ao térreo e o marido sai rapidamente, sendo seguido pela mulher, que apressadamente anda atrás dele.

Um comentário:

Marcia Nolasco da Cunha disse...

Carlinha! Adorei! Me fez lembrar aquela história do moço que conduz o elevador e que passa o dia escutando trechos das vidas das pessoas que passam por ele durante todo o dia. São fragmentos de vida. Seu texto me fez lembrar disto, porque só pela conversa dos idosos sabemos como é dificil a vida do Adamastor, né? beijos, Marcia Cunha