Todo dia é a mesma coisa. Ele chega, resmunga um bom dia e senta para tomar o café. Não me olha. Não me vê. Não me enxerga. Nunca.
Ele come sempre a mesma coisa, não muda. O café preto, amargo como a minha vida, tem que estar pelando. O pão, no saco da padaria, tem que estar ainda quente. O requeijão tem que ser sempre light, da marca mais cara.
Ele não vê nada.
Não enxerga nada.
Só lê o jornal.
O bendito jornal.
Seu silêncio me oprime, me comprime. Quero gritar, quero falar, quero... nem sei bem direito o que quero, mas tenho certeza do que eu não quero e não quero este silêncio.
O dia amanhece e nunca traz novidades. Mesmo no domingo, tudo é o mesmo, só mudam os horários das refeições.
Seu silêncio nada me diz. Eu também não digo nada. Vivemos assim, envolvidos numa nuvem taciturna. Sinto que a vida parou aqui dentro.
Ele continua a ler, entre um gole de café e uma mordida no pão com requeijão. O jornal não traz notícias minhas. Mas ele continua a ler. Um desespero e uma impotência invadem meu peito. Não sei o que fazer. Não sei de não saber.
Ele levanta da mesa e abandona o jornal, migalhas espalhadas sobre a toalha, um resto de café sobra na xícara. São os rastros que ele deixa. A tampa do copo de rejeição permanece no piso de ladrilho. Ele não se digna a abaixar para pegá-la. Ele arrasta a cadeira e sai apressado. O mundo o chama lá fora. O mundo, vasto mundo.
Eu fico. Oprimida no rastro do seu silêncio. As migalhas permanecem sobre a mesa. Migalhas, como a minha vida.
Nota da autora: este texto faz parte projeto COTIDIANO - LIVRO DE CONTOS.
quinta-feira, 3 de março de 2011
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5 comentários:
O desprezo (ou descaso) é um abandono que doi feito bofetada (mas na alma). Abraços, Carla. paz e bem.
Oi Carla,
estou de visita. Primeira visita. Gostei de ler sua visão da perspectiva da mulher em relação ao texto que trabalhamos em sala de aula. Ainda mais por ser hoje, exatamente, o nosso dia. Um abraço da Elza.
Olá Carla,
Gostei muito do texto. Difícil é encontrar muitas pessoas vivendo essa mesma realidade e tudo virando migalhas; histórias e pessoas. Bjs Elaine Spani
...mas o pior cego não é aquele que não vê mas o que não quer ver - nesse caso, a cegueira de quem pode enxergar muito além dos cegos que impedem nossa sede em fitar o horizonte. Outro abraço do Jorge.
Provavelmente, Carla, essa cegueira (por falar em cegueira veio à minha mente José Saramago ...), é a cegueira provocada por um temperamento que os anos tornou
acido, frio, gélido, daquelas que os anos vão provocando na alma dum ser cansado de tudo e de todos. Dois mundos opostos, dois seres cujas vidas acabam por tomar consciência de que caminham em direções diferentes, lentamente, mas que, por qualquer motivo, recusam-se a mudar as suas rotas, quiçá na esperança de que, de um momento para o outro, tudo irá melhorar. Vidas reais, que existem, que doem.
Magnífica forma de descrever este episódio quotidiano, Carla. Não podia deixar de visitar o seu blog. Um abraço.
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